Ministério Público da União
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

13ª e 14ª Promotorias de Justiça Criminal de Brasília

 

Há lide no processo penal?

 

Marco Antonio Duarte de Azevedo

Assistente de Ministro no Superior Tribunal de Justiça

pós-graduado pela Escolha Superior do MPDF

 

Enquanto claramente existente no processo civil, a lide, no processo penal, não é de identificação tão fácil.

No processo civil, estando acordes as partes, a regra é que não haja ação, nem processo. E, havendo, deverá o Juiz decidir conforme o interesse das partes em acordo (salvo no caso de interesses indisponíveis, ou estando as partes em conluio visando fins ilícitos).

No processo penal, por outro lado, tomemos o seguinte exemplo: um réu confesso, que admite todos os termos da acusação, desejando mesmo que lhe seja imposta pena máxima, de que ele se julga merecedor. Não pode ser-lhe imposta qualquer pena sem o devido processo legal. Ou outro exemplo, no extremo oposto: o réu se defende, alegando inocência, e o membro do Ministério Público (ou o querelante, no caso de ação pública subsidiária) se convence plenamente daquela inocência, passa a agir em uníssono com o réu, pleiteando sua absolvição. Não está o Juiz obrigado a julgar de acordo com a vontade coincidente das parte. Onde está, nesses casos, o litígio, e a lide propriamente dita?

Entre outros, Calamandrei não acreditava ser possível utilizar o conceito processual de lide no processo penal. Além daquela crítica, segundo a qual não haveria lide estando concordes as partes, outra objeção é de que não poderia haver lide onde há um só litigante, pois o estado é titular do interesse de punir e também tutela o direito à liberdade.

A lide é um conflito de interesses, não de pessoas. O estado é um sujeito peculiar e multifacetário, como multitudinária é a própria sociedade. Ele tutela interesses às vezes antagônicos e inconciliáveis. Isso não lhe retira a possibilidade de defendê-los, ou de criar órgãos diferentes para defendê-los ou conferir a um único órgão, por motivo de conveniência, a possibilidade de defender mais de um deles.

Durante muito tempo o Ministério Público Federal defendeu judicialmente a União, além de atuar em suas funções típicas de parquet, sem desnaturar a unidade da instituição (ainda que se reconheça a extrema inconveniência dessa prática, felizmente banida pelo constituinte de 1988). Da mesmo forma, numa suposta ação de natureza civil entre uma sociedade de economia mista, ou empresa pública, contra a Fazenda do mesmo ente a que aquelas estariam vinculadas. Não se desnaturou, nesse exemplo, a existência de uma lide. Assim, o estado pode, em que pesem respeitáveis críticas, defender, num determinado caso concreto, interesses antagônicos. Ainda mais quando se tem em mente que o estado não é o sujeito do direito individual à liberdade, que permanece com o particular.

O estado detém o jus puniendi por que o retirou do particular. Na Inglaterra, através de uma ficção jurídica, os membros da sociedade ainda são os titulares da ação penal. Ao proibir o cidadão (ou cidadãos) de realizar a persecução criminal em juízo, o estado tomou-lhe essa titularidade. Tome-se o exemplo da ação penal dita “privada”. Ela não é privada, é pública, pois toda ação penal é pública, mas de iniciativa privada. Por razões de política judiciária houve o estado por bem permitir que o particular, em alguns casos, pleiteasse em juízo a punição do agente apontado como criminoso. A vítima será, nesse caso, substituto do estado, o que não retira o caráter público da ação.

O direito à liberdade pertence ao réu. Dada a sua altíssima relevância, o estado tutela esse direito, não se assenhora dele, como fez com o jus puniendi. Se assim fosse, ao particular não seria permitido exercê-lo, mas caberia a um órgão responsável realizar a defesa. E dessa forma está resolvida a esmagadora maioria das lides penais, onde o parquet acusa, pleiteando a aplicação da pena, e o acusado se defende, procurando eximir-se dela.

Naqueles casos em que não interessa ao réu, por qualquer motivo, exercer seu direito de defesa, ele permanece seu titular. O interesse na defesa é seu, como o é o de cada um dos membros da sociedade. O estado, como faz em muitos outros casos, em vista do interesse subsidiário da sociedade em que determinado acusado não tenha uma pena aplicada sem que tenha sido exercido o direito de defesa, determina que sua recusa em exercê-lo é irrelevante. Sendo o caso, nomeará um técnico para que exerça esse defesa, ainda em nome do acusado.

O estado tem apenas um interesse reflexo, secundário, na defesa do réu, dado o direito de todos em resguardar seus direitos individuais à liberdade. Um único réu indefeso, sem direito a uma defesa materialmente apta, pode, em seus desdobramentos, vir a lesar os mesmos direitos cujos titulares são todos os cidadãos. Como cada membro da coletividade não pode atuar no caso concreto em defesa de seu próprio interesse de não lhe ser imposta uma pena arbitrariamente, o estado assume essa posição, de modo secundário, e o resguarda em nome de todos.

Na verdade, há um outro interesse do acusado, também tido por todos. Enquanto o direito à liberdade nem sempre existe (o réu culpado não tem direito à liberdade; se o tivesse, estaria havendo uma violação quando, mesmo devidamente processado e condenado, houvesse e execução da pena), esse direito nunca se afasta. É um direito de conteúdo negativo, inalienável, que se consubstancia no direito a não lhe ser aplicada uma pena injusta ou arbitrária. Mesmo quando o réu reconhece sua culpa e, eventualmente, aquiesce com a aplicação da pena, embora ele não tenha direito à liberdade (é culpado!), seu direito a não ser punido injustamente prevalece. É o direito de, mesmo culpado, ser punido na exata medida da sua culpabilidade.

É o caso da lição carneluttiana de que a lide apresenta dois aspectos: o material (o conflito de interesses) e o formal (o conflito de vontades). As vontades podem até ser as mesmas (punir e ser punido ou não punir e não ser punido), mas os interesses permanecem diversos e conflitantes. Ou como diz Giovanni Leone [1]: no processo penal se estabelecem duas situações distintas: uma, imanente, de conflito entre o direito punitivo do estado e o direito de liberdade do agente e outra, contingente, de relação entre o Ministério Público e o acusado, que pode reproduzir a primeira situação ou divorciar-se integralmente dela.

Na verdade, o MP não é o titular da lide penal, cuja titularidade é do estado. O MP é o titular da ação penal, agindo como substituto processual, sendo mais exato denominá-lo dominus actionis, não dominus litis, como se costume fazer. Não do conflito (lide). O interesse é do estado, que é materialmente parte no processo. Formalmente, porém, o MP lhe faz as vezes, exteriorizando a “vontade” estatal de punir. O conteúdo daquele é sempre o mesmo: o interesse numa aplicação de uma pena justa; esta vontade pode variar, mostrando-se por vezes como de punir, por outras de absolver, conforme o caso concreto.

Abonando esta tese, por várias vezes o STF já se pronunciou admitindo a legitimidade para apelar de sentença onde sua posição inicial tenha sido acolhida. É o caso do HC 67.843/GO, relatado pelo Ministro Carlos Madeira, que tem a seguinte ementa:

“Habeas corpus. Decisão do tribunal do júri absolutória do réu, a pedido do órgão de acusação. Apelação do mesmo órgão, provida pelo tribunal de justiça. Pedido de habeas corpus ao fundamento de falta de interesse do órgão apelante.

A legitimidade para recorrer, por parte do Ministério Público, deve ser havida com maior amplitude, tendo em vista se interesse em que se aplique exatamente a lei.

(...)” (DJU de 16.03.90, p. 1869)

No mesmo sentido o HC 50.103/GB, assim ementado pelo rel. Min. Elóy da Rocha:

“Legitimidade da apelação do Ministério Público, de que resultou a condenação do réu. Questão referente à prova, que escapa ao âmbito da habeas corpus. Indeferimento do pedido.” (RTJ 63/59)

É o mesmo o entendimento do STJ, como demonstra recentíssimo julgado relatado pelo Ministro Vicente Leal, onde se lê:

“PROCESSUAL PENAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. PRINCÍPIO DA UNIDADE E INDIVISIBILIDADE. ALCANCE. VINCULAÇÃO DE PRONUNCIAMENTO DE SEUS AGENTES. INEXISTÊNCIA.

1. O princípio da unidade e da indivisibilidade do Ministério Público não implica vinculação de pronunciamento de seus agentes no processo, de modo a obrigar que um promotor que substitui outro observe obrigatoriamente a linha de pensamento de seu antecessor.

2. Se um representante do Ministério Público manifestou-se na fase das alegações finais em prol da exclusão de qualificantes, o que foi acolhido na sentença de pronúncia, um outro membro do Parquet que o substitui no processo pode interpor recurso pugnando para que se preserve a acusação inicial, não merecendo abrigo a tese de falta de interesse processual.

3. Recurso especial conhecido e provido” (RESP 92.666-RJ, DJU de 04.08.97)

Outro crítico da existência de lide no processo penal foi o professor da Universidade de Pádua, Giulio Paoli[2]. Este dizia que no processo penal o Ministério Público tem interesse na condenação do culpado, mas não do acusado, pois se este é inocente a instituição estatal tem interesse em sua absolvição. Daí, quando o juiz absolve, não sacrifica em nada o interesse do Ministério Público ou seja, do Estado-acusador, havendo então uma coincidência entre os interesses do estado e do inocente. A sentença absolutória então não comporia um conflito, mas sim o excluiria.

Esqueceu-se, todavia, o professor que, no conceito moderno de ação, esta é unisubsistente. O direito de ação se exerce no momento da sua propositura, aí esgotando-se. É nesse momento que deve existir a lide. No processo civil, proposta uma ação, vindo as partes a transigir, e homologando o juiz essa transação, não terá havido ação, nem processo, nem lide? É óbvio que sim, pois no momento da propositura da ação as partes estavam em litígio, havia lide. Apenas essa deixou de existir no curso do processo. Da mesma forma, o resultado da ação penal não invalidade a existência imanente de um conflito entre o jus puniendi e o jus libertatis.

Florian critica a existência da lide pela ótica do juiz. Diz o professor da Universidade de Turim[3] que existe contenda no processo penal, mas diferente do processo civil, pois conteria um ingrediente que neste caso não ocorre: os poderes de investigação do juiz. Por isso não haveria conflito de interesses, pois o interesse é único: a descoberta da verdade, em torno da qual pode ou não surgir controvérsia. Identifica ele um possível embate entre as partes, mas não de interesses, já que estes não seriam suscetíveis de disposição no processo.

Ora, a insuscetibilidade de disposição dos interesses não invalidade a idéia de lide, pelo contrário, reforça sua existência. E os poderes instrutórios do juiz em nada afetam o conceito. Eles decorrem de outro interesse avocado pelo estado: o da realização da justiça. Ele também está presente no processo civil. Se as partes, numa lide civil, entram em conluio para buscar um fim proibido pela lei, o juiz, percebendo a farsa, não pode dar-lhe guarida. É esse mesmo interesse, de resguardar a ordem jurídica, que se manifesta de modo muito mais amplo na justiça penal.

Fica dessa forma teoricamente fundamentada a posição do MP, na persecução da correta e justa aplicação da lei, não apenas da condenação do acusado. Posição essa amplamente majoritária nos dias de hoje. A ordem jurídica confia-lhe não o exercício cego do dever de acusar, mas a consciente posição de defender o corpo social, velando pela correta aplicação da lei, o que permite-lhe recorrer de uma sentença que haja atendido seu pedido inicial, ou acolhido suas razões finais.

A lide penal tem sempre, pelo menos, um conflito de interesses. Pode haver mais de um. Sempre, em qualquer caso, mesmo que o réu seja culpado e queira sofrer a sanção, subsiste esse direito à não ser punido. É também advindo desse direito a possibilidade de revisão criminal pro reo.

Assim, os litigantes são: o Estado, de um lado, circunstancialmente (ainda que em regra) substituído pelo MP (poderia ser o ofendido), defendendo seu jus puniendi, e seu interesse numa pena justa; d’outro o cidadão, acusado, defendendo seu jus libertatis, inalienável, de não sofrer pena alguma.



[1] Cf. Giorgis, A lide como categoria comum do processo, Lejur- Letras Jurídicas Editora Ltda., Porto Alegre, 1991, cap. IV.

[2] A noção de lide no processo penal, apostila, trad. Paulo F. E. Faria, apud Giorgis, op. cit.

[3] Apud Giorgis, idem, ibidem

 

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