A CORTINA RASGADA - Palavras no vento Leste

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Não faço ideia se as gavetas dos poetas do Leste europeu estão ou não a emergir repletas de obras primas. Certo é que o nosso desconhecimento destas literaturas é tamanho que levaremos anos e anos tão só a tomar contacto com o melhor que aí se foi produzindo por detrás do famoso cortinado. E foi muito. Particularmente pujante está a poesia polaca neste momento, a avaliar pelo que dela começa a aparecer. Eis aqui uma pequena selecção, engendrada um pouco ao acaso da leitura de revistas bem diversas, em francês ou em inglês, prejudicada também pela enorme falta de informação disponível sobre os autores.

Vladimir Vissotsky (1938-80) foi uma personalidade marcante de poeta, vagabundo e rebelde inconformista na Rússia brejneviana. Conhecido sobretudo como cantor (o poema aqui traduzido é notoriamente a letra de uma canção) e escritor de terríveis sátiras políticas que circulavam em samizdat. Foi também ocasionalmente actor de cinema. Desdenhou sempre o reconhecimento no Ocidente, de patrocínios duvidosos, em favor da sua via própria de intransigente autonomia crítica. Uma espécie de Woody Guthrie soviético, a sua morte precoce ajudou a fazer dele uma figura semi-lendária.

Cyprian Norwid (1821-1883) é um poeta e pintor polaco que, seduzido pelo simbolismo, tentou introduzir nas suas elegias pátrias uma linguagem simultaneamente moderna e nacionalista, pontuada por certas acentuações de um profetismo hermético. Uma voz sonora, profunda e complexa, desprezada pela arte oficial e oficiosa do seu tempo e do que se lhe seguiu.

Ewa Lipska nasceu já após a última grande guerra e é uma das figuras mais salientes da última geração polaca a conhecer alguma divulgação no estrangeiro. Os seus poemas combinam o universal e o concreto, num jogo imagético e conceptual algo vertiginoso em que o absurdo surrealizante toma algum assento.

Da Polónia ainda nos chega Adam Zagajewski, que começou a aparecer traduzido em francês já nos finais da década de 80. Como a sua poesia é densa e poderosa, podemos bem avaliá-lo pelo exemplar junto. É patente aqui numa sensibilidade educada pela linguagem cinematográfica, com os seus jogos de planos e sequências visuais conduzindo a momentos de grande intensidade dramática.

Mircea Dinescu é romeno, escritor, quarenta anos de idade. Ainda não há muito tempo pudemos vê-lo na televisão, discursando às multidões sublevadas em Bucareste. Ele foi um dos heróis do assalto ao palácio do conducator Ceausescu, que o mantinha aliás sob prisão domiciliária após uma entrevista sua ao diário francês “Libération” muito crítica para o regime. Aqui o temos em algumas melancólicas reflexões sobre o problema da habitação e outros conexos. Romeno também é Marin Sorescu, de quem tenho apenas a informção de ser também dramaturgo.

Nos aforismos do sérvio Petar Lazic encontramos, sob a superfície do coloquial e anedótico, um cepticismo profundo e um agudo sentido derrisório aparentado com Hasek.

Jaroslav Seifert (1901-86) é um consagrado poeta checo do primeiro modernismo. E todavia o seu nome seria ainda completamente estranho entre nós, não fosse... um Prémio Nobel da Literatura em 1984. Na altura, o seu patrício Jorge Listopad fez dele uma breve introdução e umas traduções no JL. Todos os outros autores são inéditos em português, excepto Dinescu que já teve um poema seu traduzido e publicado em ‘O Primeiro de Janeiro’.

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NO SAUNA
Aticem o fogo bem alto Quero-me dissolver, fundir totalmente; Estirado na ponta da minha bancada Aniquilarei finalmente minhas dúvidas. Deixar-me-ei invadir pelo calor. Um vaso de água fria erradicará o passado. E a tatuagem, feita na impressionável juventude, Esvair-se-á azulada, na esquerda do meu peito. Aticem o fogo bem alto, Perdi-me já para este mundo vil. Embriagar-me-ei pois em vapor, e rugirei alto em meu delírio. Que fés, que demolidas florestas; Que remorsos, que longos caminhos percorridos! No meu peito, lado esquerdo, um perfil de Estaline, E no lado direito a minha Marinka, a face inteira. Então por minha fé indivisa, perdi meus lustros anos de Paraíso. paguei pela minha insensatez Com uma vida despida de alegria. Aticem o fogo bem alto, Perdi-me já para este mundo vil. Embriagar-me-ei pois em vapor, e rugirei alto em meu delírio. Recordo-me de uma manhã bem cedo, Apenas o tempo de gritar a meu irmão “socorro!” - e dois jovens guardas, magnífica gente, transportaram-me de uma Sibéria para outra. E depois, na pista de corrida, entre os pântanos, saturados pelas lágrimas e pela humidade, tatuamo-nos com os seu perfil junto ao coração, para ele ouvir o som dos nossos corações quebrando-se. Não aqueçam mais a fornalha Esta história causou-me arrepios O vapor percorre-me o cérebro. Necessito tanto sacudir o passado, submergir no calor amigo do vapor; mas as memórias latejam na minha cabeça, e eu carrego em mim estes estigmas em vão tentando afugentar com varas de vidoeiro indeléveis recordações de dias passados. Vladimir Vyssotsky
MEMENTO
I Num castelo medieval uma vez vi Portadas de carvalho com umas elegantes dobradiças No formato de uma águia desgarrada pelo martelo: Assim, quando o vento, varrendo o terraço, Sacudia os maciços portais, A águia lacerada a meio oscilava para cá e para lá, Lastimando-se roucamente com a ferrugem das eras, Ansiando por sacudir as asas presas nos cravos. II O guardião das ruínas e passeantes nocturnos Confundiram as lancinantes dobradiças Com lamentações das almas por crimes desconhecidos; Poetas descreveram-nas com caneta e tinta; Turistas, havendo espiado de perto a portada, Haveriam de – a dobradiça permanecendo muda – Gravar uma data memorável ou nome célebre: Aqui “Lola Montez” – adiante “Os Margrave Boissy”, por vezes - dois corações “Speranza!”, “Nadar”, “Washington Irving”, “Sancho Panza”, “Jacek Przybylski”, e assim por diante... Assinando com as suas navalhas. III Mas quando por sobre a torre raios dourados Coriscam, acompanhando as densas e atroadoras nuvens, Ninguém ousa tocar nos portais – qual Monte Sião – todos à distância, aterrorizados, Escutando o rosnar dos raivosos portais, O rangido das águias – como um destacamento armado ao assalto...! IV “Assim – entre a exaltação da Ásia e o Ocidente...” Disse eu... e pensei em gravar um verso Em carvalho... e artisticamente juntar o meu nome e ex-libris Contendo duas pombas a arrulhar ou uma âncora acorrentada, De modo a que um grande historiador possa sugerir Que quando eu aqui vim... possuía uma lâmina. Cyprian Kamil Norwid
O CIDADÃO DE UM PEQUENO PAÍS
O cidadão de um pequeno país Nascido imprudentemente nos confins da Europa É chamado a reflectir sobre a liberdade. Reservista do seu Estado ele nunca tinha pensado nisso. Ele interrompe a alimentação matinal da sua baleia. Ele procura nos dicionários. Ele já lhe terá acontecido algumas vezes na vida atravessar a liberdade de passagem. Por vezes terá aí almoçado e bebido um copo de sumo de laranja. Por vezes eram as estações do metro as manchas negras dos túneis. As pequenas carruagens suspensas no precipício. Mas sempre ele regressava. À sua colecção de baleias. Ao lavadouro químico progressista condecorado recentemente com uma medalha de estima. Às grandes agências que desmentem formalmente a situação meteorológica geral. Aos lapsos prenunciando as grandes mudanças. Ele regressava aos seus próprios espaços de liberdade onde se passeava com o seu colete à prova de bala a farmácia de primeiros socorros na bandoleira. Esses espaços reencontrava-os ele à noite. O medo, mão de homem calçada de negro, perseguia-o. Por fim uma aurora polar lhe aparecia. Ele foi enforcado por sua mão na praça dos desfiles. Que escolheu ele – ele se interroga a si próprio. Um absurdo menor ou um problema bem mais sério. Ewa Lipska
VENDO SHOAH NUM QUARTO DE HOTEL NA AMÉRICA
Há noites delicadas como os pelos de um poldro, mas nós preferimos jogar às cartas ou ao xadrez. Eis aí que os habitantes do hotel se põem a cantar happy birthday to you enquanto o olho grande do televisor mistura as imagens, indiferente. As árvores da minha infância transpõem o oceano e saúdam-me friamente do ecrã. Os camponeses polacos mantêm disputas teológicas com uma inspiração jesuítica, só os judeus se calam fatigados pela sua longa agonia. Os regatos das minhas férias correm timidamente Por este continente desconhecido. As carroças, em lugar do feno, transportam cabelos; sob esta carga penugenta os seus rodados rangem. Nós estamos inocentes declaram os pinheiros. Os SS tornam-se velhinhos frágeis e os médicos lutam por suas vidas, seus corações, suas consciências. Faz-se tarde, sorrateiramente a vaga do sono invade-me. Dormir, quero dormir, mas os habitantes do hotel gritam ainda e outra vez happy birthday to you, (gritam mais forte que os judeus que morrem). Melancólicos, os combóios rolam sob a chuva, Os camiões chegam carregados das estrelas do firmamento. Estou inocente justifica-se Mozart, apenas o álamo estremece como sempre Ele carrega consigo todos os crimes. Onde está a minha casa, cantam os judeus checos, casa não existe já, ela arde, Dentro da casa, o silvo do gaz frio. Estou cada vez mais ensonado e inocente. O televisor afirma: nós ambos estamos acima de qualquer suspeita: a festa atinge o seu auge. Ela toca o céu, a pirâmide dos sapatos de Auschwitz que se lastimam em silêncio: pobres de nós, sobrevivemos à humanidade, dormamos, dormamos, não temos mais para onde ir. Nenhum sítio. Adam Zagajewski
A MANSÃO DO ARTISTA
O espaldar do sofá leveda como pão branco ele incha, ele ascende com doces estalidos, meu amor que bons momentos nós passaremos por trás do seu anteparo de cartão. Vem com os teus pais, estaremos melhor e trás o teu guarda-chuva se quiseres, é Outono nas palavras, chove em nossos pratos e os agentes do fisco caem-nos do céu como deuses. As montras hoje deixaram-me indiferente passo sem as ver, sem uma injúria, palavra de honra: carne de canhão, banha das abelhas no céu um pequeno anjinho de vodka vela por nós... Mircea Dinescu
SUICÍDIO
Havia em mim uma vintena de gerações, Assim pelo menos, E nessa manhã, vá-se lá saber porquê, Uma janela deixada aberta talvez, Alguém se atirou para o vazio. Então subitamente todos eles Se puseram a saltar Uns atrás dos outros, À bicha, como que fazendo a chamada Sobre um trampolim, Segundo o princípio da desintegração dos carneiros. Em menos de uma hora e meia Encontrei-me totalmente despido, sem nada, E de vergonha atirei-me para o vazio também eu, Devo ter morrido à altura do quarto andar, Ao décimo, em todo o caso, A coisa estava consumada. Tudo isto, É um mero passante, Quem vo-lo conta, Um de entre nós, Melhor dizendo, Que terá talvez caído menos mal. Marin Sorescu
AFORISMOS SÉRVIOS
A vitória é pura como o cristal, pois os mortos nunca acham nada que dizer. Ele tinha uma grande consciência dentro da qual podia escolher entre milhões de vias. Os jovens são o nosso futuro, pelo menos enquanto não tiverem mais o que fazer.
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Até que ponto o poder consegue corromper o homem, ignoramo-lo. Continuamos a trabalhar sobre a matéria. O povo gritava: - Abaixo os ladrões!, mas é proibido sapar o sistema.
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Quando terminou enfim a luta ideológica, puseram os retratos todos no prego. Os nossos vizinhos vivem nas cercanias da loucura.
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Vós haveis-nos conduzido ao futuro radioso. Agora, por favor, façam-nos sair. A família é a célula base da sociedade. A prisão, essa, é uma superestrutura.
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Um informador anónimo é o soldado desconhecido da polícia. Num momento de desvio da linha justa, cometeu-se lamentavelmente o suicídio do camarada X. Para os filhos que a revolução não devorou, o Estado paga pensões de sobrevivência. Petar Lazic
CAFÉ-CONCERTO
O dragnought em manobras em meio das vagas acha um violino o boné do capitão escapa-lhe e voa em torno do navio, branca ave. O arco, esse, arrastado pelas correntes quentes, foi levado até ilhas desconhecidas, mesmo até à enseada onde a água se detém. Só palmeiras de cartão podem florescer sob este céu, as conchas das ruas desertas no fundo dos serões. Lá, rodeado pelos perfumes da ilha, pavoneia-se um rei negro, com o arco na mão. Lá, as cabeças de um povo submetido como os pequenos pontos das notas pretas dançam em semi-círculo à volta dele. E, descrevendo a curva de uma clave de sol, as serpentes elevam-se faiscantes acima da erva. Tocai, pois, mas suavemente, violinos. A Europa quer dormir, nada mais que dormir, e vomita as estrelas. Jaroslav Seifert
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