O Sionismo na encruzilhada

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Muitas lágrimas têm sido derramadas sobre Itzhak Rabin (paz à sua alma tortuosa) e preces elevadas aos céus pelo bom entendimento entre Arafat e Netaniahu. Milhares de alvas pombinhas deixaram já as suas caganitas pelos jardins da Casa Branca. No entanto, a política que o primeiro concebeu com Shimon Peres, e que Netaniahu parece agora finalmente resignado a prosseguir relutantemente, não tem nada a ver com paz e com a autonomia política para o povo palestiniano. A ideia foi sempre e é ainda tão só, com o mais brutal cinismo: separação ou “desenvolvimento separado” que é a exacta tradução do afrikans apartheid. Esta política deriva das contradições que sempre perpassaram o fantasioso projecto rácico sionista e que estão na base da sua desequilibrada dinâmica política e demográfica actual. Mas antes, façamos um pouco de história.

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Tendo atrás de si, é certo, uma história multi-secular de anti-semitismo (que, curiosamente, nunca existiu nos países árabes, onde sempre existiram também numerosas comunidades judaicas), foi no século XIX que a questão judaica, como candente problema político, nasceu na Europa.

Os judeus na Europa desempenharam sempre um papel preponderante no comércio. Eram uma espécie de etnia-classe, um fenómeno aliás historicamente recorrente, algo semelhante, por exemplo, ao que se pode verificar ainda hoje em certos países da África oriental com as comunidades indianas aí radicadas. Esta relação foi-se mantendo, com alguns fricções e sobressaltos pelo meio, até atingir um ponto de ruptura com o ascenso dos movimentos nacionalistas europeus no século passado. O projecto político burguês conseguiu de algum modo assimilar os judeus na Europa ocidental (depois de lhes retirar o monopólio comercial) mas entrou em choque frontal com eles na Europa central e oriental. Foi em resposta a isso que nasceu o movimento sionismo, oficialmente inaugurado em 1897 no congresso de Basileia realizado sob a presidência de Theodor Herzl.

A ideia de criar uma pátria para o povo judeu encarou várias hipóteses além da Palestina, embora esta fosse naturalmente a primeira opção. O movimento sionista chegou inclusivamente a manter sérias negociações com Salazar com vista a uma colonização extensiva do interior de Angola. Merece realce, porém, a coincidência histórica entre esta crise política europeia causada pelo anti-semitismo e o movimento imperialista do final do século passado. Nasceu daí a tentação de resolver este problema puramente europeu, exportando-o, como que integrado no próprio movimento expansionista e colonialista do velho continente (1). Assim nasceu a declaração Balfour de 1917 que esteve na base do início da colonização judaica da Palestina sob o mandato britânico. Após a II Guerra Mundial e a revelação de toda a extensão da barbárie nazi, o movimento foi imparável, despejando sobre os ombros do povo árabe palestiniano todo o peso da expiação dos inomináveis crimes do homem branco. Foi então, já sob o apadrinhamento norte-americano, que se caminharia rapidamente para a declaração de constituição do estado israelita em 1948.

Entretanto, o movimento de “retorno” bíblico à Palestina foi relativamente modesto em comparação com outros destinos bem mais atraentes e comuns à generalidade da emigração europeia de finais do século passado e primeira metade deste: em especial, os Estados Unidos da América. Foi aqui que se formou, sobretudo na costa Leste, uma poderosa comunidade judaica, influentíssima em Washington, e que hoje forma a rótula fundamental na articulação da política imperialista yanque para todo o Médio Oriente. Os norte-americanos, por sua vez, usam Israel como uma alavanca fundamental para toda a sua política na área. Factores puramente ideológicos têm também o seu peso. Israel é a menina dos olhos da rica burguesia judaica nova-iorquina, uma espécie de “pátria” de Verão em paragens exóticas, carregada de evocações históricas e “espirituais”.

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Não há, obviamente, nenhum povo judeu qualificável como tal por qualquer critério científicamente mensurável, seja ele biológico ou cultural. O que há é uma tradição religiosa judaica, espalhada por entre diversas comunidades residentes na Europa, América, África e Médio Oriente. A ideologia sionista é baseada porém numa fantasia racial e de estirpe, bem espelhada na sua “lei do retorno”. A espinha dorsal do projecto israelita é ainda, naturalmente, a colónia proveniente da Europa oriental (os ashzenazes). São eles que, juntamente com alguns escassos elementos provenientes da América e do oeste europeu, ocupam os estratos superiores da sociedade israelita e lhe conferem o seu carácter distintamente “ocidental”. Mas a maioria da população é constituída por comunidades judaicas provenientes de países árabes, sobretudo magrebianos (os sefarditas); negros etíopes (falashas) e russos emigrados em massa no tempo de Gorbachev constituem outros grupos distintos e importantes. A todos estes “judeus” junta-se uma componente, residual mas não negligenciável, de populações árabes de cidadania israelita. Não se prevendo como possível qualquer nova vaga de emigração para Israel, são estes os componentes com que os líderes sionistas têm de compor uma nação em território conquistado pelas armas, metido em cunha num continente totalmente estranho, sujeito a uma pressão demográfica crescente da população árabe circundante, a qual cresce a uma taxa muito mais elevada.

Apenas a tensão permanente perante o inimigo externo e interno (nos territórios ocupados) permite ainda manter alguma unidade na sociedade israelita. É também este estado que explica uma particularidade notável da sociologia eleitoral israelita: os pobres - incluindo 2/3 dos sefarditas (mizrahim) - votam geralmente à direita (ciosos de afirmar uma superioridade de casta em relação aos palestinianos e árabes israelitas, com quem competem directamente no mercado de trabalho) enquanto as classes média e superior confiam geralmente no Labour que é aliás o partido histórico do sionismo. A polarização social e uma rígida estratificação ao longo de linhas étnicas não têm parado de crescer dentro da sociedade judaica. A existência de uma numerosa, fanática e bem organizada comunidade ultra-religiosa pôe ainda desafios sérios à própria definição constitucional do Estado israelita. 18% da população israelita vive abaixo do limiar da pobreza absoluta (2).

São todos estes pesadelos internos que explicam o recurso por parte de “Bibi” à política beligerante e ultra-arrogante que vem seguindo, quando, do ponto de vista da pura política internacional, nada aparentemente o justificaria. A questão põe-se: irá ele ao ponto de pôr em causa o projecto de Rabin-Peres de uma bantustização palestiniana, com separação política absoluta? Este é, claramente, o projecto da burguesia israelita e a pressão imperialista nesse sentido é também muito forte. Mas base eleitoral popular do Likud (colonos, sefarditas, etc.) e os religiosos integralistas pressionam no sentido de forçar a anexação total.

Os polos do dilema actual do sionismo têm assim uma base e conteúdo social muito marcados. O objectivo da burguesia ashkenaze (na impossibilidade de expulsar pura e simplesmente os quase três milhões de palestinianos e árabes israelitas que ainda permanecem no perímetro da antiga Palestina) é manter e reforçar a identidade “ocidental” do país, alijando a carga de uma ocupação militar onerosa e os perigos da pressão demográfica palestiniana sobre a sua pretendida identidade nacional judaica. Os sefarditas e outros judeus pobres, por sua vez, segregados no seu próprio país por permanentes e não tão subtis formas de descriminação, não sentem a questão nacional israelita da mesma maneira. Sendo embora presentemente as camadas mais chauvinistas e a base de apoio dos “falcões”, poderão também, noutras circunstâncias, constituir a base de reconstituição de uma política de unidade de classe transnacional que possa conduzir a uma outra definição política para o actual Estado israelita.

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Após a assinatura do acordo sobre Al Jalil (Hebron), as coisas parecem encaminhar-se, com o alto beneplácito norte-americano, para uma solução da questão palestiniana algo intermédia entre as duas tendências em confronto. Será certamente Oslo com o acréscimo de mais alguns requintes de humilhação para Arafat e a sua “Autoridade”. A autonomia política palestiniana será restrita e Israel procederá ainda assim a extensas anexações de território na Cisjordânia, incluindo a totalidade da Grande Jerusalém e os mais importantes recursos naturais. O Estado judaico terá controlo total sobre as fronteiras e o espaço aéreo palestiniano. Por razões de “segurança” naturalmente. Poderá controlar e condicionar todo o seu comércio externo. Terá certamente “acordos” tutelares em matéria policial e militar, mantendo importantes bases militares estacionadas permanentemente. Os colonatos judaicos manter-se-ão ou serão mesmo alargados. Uma moderna rede viária retalhará toda a Cisjordânia, ligando os principais colonatos às cidades israelitas, deixando os povoamentos árabes marginalizados nos seus interstícios deprimidos. Nenhum retorno significativo de refugiados palestinianos (das vagas de 1948 e 1967) será permitido. O legado de Rabin ou, como Peres dizia na sua última campanha eleitoral, o “imperativo nacional”, será assim prosseguido no fundamental.

Arafat não tem qualquer saída e já demonstrou abundantemente a sua abjecta subserviência e venalidade, temperada por surtos de fúria patriarcal para com os seus infelizes súbditos. Os seus sonhos agora são de constituir “uma espécie de Benelux” com Israel e a Jordânia. A sua candura chega a ser grotesca. Será possível que ele não veja que se está a transformar no capataz e gendarme de uma imensa township de trabalhadores ultra-explorados e humilhados, um simples dormitório reles e infecto sem qualquer vida económica autónoma? Em minha opinião, este simulacro de Estado palestiniano independente não é a solução que melhor serve o seu proletariado e classes pobres da Cisjordânia e faixa de Gaza. O povo palestiniano árabe deveria varrer as suas elites corruptas, unir-se com as camadas operárias e populares judaicas e formar uma vasta aliança popular de todos os fragmentos “nacionais” hoje residentes na Palestina. Só esta será capaz de arrancar o Estado israelita ao sionismo e ao imperialismo, integrando-o, como Estado laico e multinacional, de forma pacífica e harmoniosa, entre os povos da região. É esta a única maneira de sarar enfim esta ferida aberta no coração da grande nação árabe.

É verdade, porém, que para todo este movimento ter consistência, seria necessária a queda da casa saudita e das restantes monarquias do Golfo, seguida de uma segunda vaga regeneradora do nacionalismo árabe em toda a região (Egipto, Jordânia, Líbano, Síria, Iraque) e também no Magreb. As actuais cliques dirigentes autocráticas e/ou corruptas deveriam ser varridas por um amplo movimento de massas, no qual talvez já pudessem ter um lugar de algum destaque as organizações independentes do proletariado. Para que isso se venha a tornar possível, é necessário começar por retirar o estandarte do protesto popular das mãos dos fundamentalistas islâmicos e outros reaccionários. A agressão sionisto-imperialista produz e alimenta continuamente o integralismo muçulmano. Da Argélia ao Afeganistão, passando naturalmente pela península arábica, a aliança estratégica entre estes dois falsos inimigos é cada vez mais indisfarçável. Romper dialecticamente este círculo vicioso, reintegrando o proletariado e as massas das nações árabes na grande comunidade mundial dos povos em luta contra o imperialismo, tal é o desafio para as próximas décadas.

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Publicado na revista 'Política Operária' nº 58, Janeiro-Fevereiro de 1997.

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NOTAS:

(1) Samir Amin, ‘O Problema Palestiniano’, Centelha, Coimbra, 1976.

(2) Dominique Vidal, ‘Troublante normalisation pour la societé israélienne’, Le Monde Diplomatique, nº 506, Maio de 1996.

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