CARTAS DO VISIONÁRIO E MAIS NOVE POEMAS DE ARTHUR RIMBAUD

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AQUELE ANJO FEROCíSSIMO RISCANDO DE AZUL A LINHA DOS CAMPOS

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As célebres cartas de Maio de 1871, conhecidas dos especialistas rimbaldianos por lettres du voyant, são dos mais impressionantes documentos programáticos da história da literatura e, seguramente, a primeiríssima referência para uma abordagem crítica da obra do autor de Illuminations. Rimbaud tinha então dezassete anos ("On n'est pas serieux, quand on a...") e, meses atrás, fugira da casa materna e da sua cidadezinha natal de Charleville, nas Ardenas. Filho de uma família pequeno-burguesa (seu pai era capitão do exército, fez a guerra da Crimeia e bem cedo abandonaria por completo a família), vivera aí a infância numa habitação modesta de um bairro popular. A pé, de comboio, o jovem Arthur chegou a Paris, passando por Charleroi, e logo se fez prender à saída da gare por não ter bilhete nem dinheiro. Encarcerado na prisão de Mazas, seria libertado por intercedência de Georges lzambard (seu professor de Retórica no Colégio de Charleville, tornara-se aí cúmplice e confidente do jovem) que o convida a passar uns tempos em casa de umas suas tias em Douai. Foi aí que Arthur recopiou todos os seus poemas para um caderno, a fim de os confiar a Paul Demeny, poeta sem interesse, que tinha então aos olhos de Rimbaud um enorme prestígio devido ao facto de ser o único autor publicado que conhecia pessoalmente.

Estalara entretanto a guerra e Napoleão III é clamorosamente batido em Sedan. O exército prussiano ocupa o Nordeste de França, instalando-se às portas de Paris. O jovem poeta vagabundeia um pouco ao acaso entre Douai, Charleroi, Bruxelas, Charleville e Paris, onde estala a revolução e a Comuna é proclamada a 18 de Março de 1871. É grande a controvérsia sobre a real participação de Rimbaud na insurreição popular parisiense. Ernest Delahaye, um biógrafo que com ele privou de perto nesta época, refere tê-lo ouvido ler um "Projecto de Constituição Comunista", documento irremediavelmente perdido. Se a ciência política pode certamente passar sem este apport meta-poético, seria sem dúvida uma achega importante para a história da evolução intelectual de Rimbaud. Ainda segundo Delahaye, o jovem poeta, entre meados de Abril e começos de Maio, esteve pela terceira vez em Paris, tendo-se então alistado numa milícia, o que aparece curiosamente confirmado numa nota da polícia parisiense de 1873, onde se refere que o jovem "Rimbault (sic), sob a Comuna, fez parte dos franco-atiradores de Paris". Verlaine atribui-lhe "algumas noitadas na caserna de Chateau d'Eau, entre as vagas vingadoras de Flourens". Seja como for, antes de estalar a grande repressão da "semana sangrenta", Rimbaud está já são e salvo em Charleville. É daí que envia estas estranhas epístolas que, entre o fulgor do génio tomando asa e a prolixa trapalhice do colegial, procuram dar conta de um novo compromisso (poético) para a sua vida.

É geralmente notado o contraste flagrante entre a ambição revolucionária e prometeica do texto das cartas e a relativa inocuidade dos poemas que as acompanham. Vários indícios no texto permitem estabelecer com segurança que, para Rimbaud, aqueles poemas não são ainda exemplares da sua pretendida poesia objectiva, obra do visionário. Optamos assim, a exemplo aliás da maioria das edições na Iíngua original, por não publicar os poemas, os quais, além de apresentarem enormíssimas dificuldades de tradução, não oferecem nada de substancial, senão perplexidade, a quem quiser reflectir sobre estes notáveis documentos.

O projecto estético aqui delineado haveria aliás de ter a sua sequência numa evolução fulminante da escrita poética do autor, culminando em Le Bateau Ivre que Rimbaud, já em Setembro desse mesmo ano de 1871, levará consigo novamente para Paris, ao encontro marcado com a glória. Pelo caminho, entre outros, um belo poema de inspiração auto-biográfica - Les Poètes de Sept Ans . É este precisamente o poema em que se pode ver, sequencialmente e em pormenor, Rimbaud tornar-se Rimbaud. O seu verso, tentativamente ainda, vai aqui tomando altura, transbordamento imagético e aquela nova densidade gnóstica e ontológica que fará do poeta, na expressão de Jean-Luc Steinmetz "um sonhador de liberdade infinita, um ser da disponibilidade absoluta".

Numa direcção diversa, mas oferecendo um curioso paralelo com outra das linhas de força do poema precedente, está essa preciosa obra-prima que é Les Remembrances du vieillard idiot . O poema data possivelmente dos finais de 1871, e é já do tempo em que Rimbaud se instala mais demoradamente em Paris, a expensas de Verlaine. Com este, participa nas actividades do auto-denominado Cercle Zutique (de zut, exclamativa de calão que poderá ser aqui traduzido por: ora sebo!), em cujo álbum se encontra esta peça, assinada com um pseudónimo sarcástico, juntamente com muitas outras facécias e variadas obscenidades. Incursão pelo lado sombrio e escatológico do poeta, mas resolvendo-se em apoteose sensual, produto dessa sua ridente, solar e cristalina "perversidade polimorfa".

Oraison du soir é um magnífico soneto onde se concentra admiravelmente muito daquilo que constitui o essencial Rimbaud, com o valor suplementar que lhe advém de nos fornecer uma imagem precisa do poeta, como se fosse mais uma das belas caricaturas suas que nos chegaram do traço de Verlaine, Delahaye ou Felix Régamey. A veia blasfematória (alimentada por uma sólida cultura bíblica), o fulgor da metáfora, a boémia e vagabundagem, a escatologia, o visionarismo onírico, a soberba revolta metafísica.

Um outro soneto, intitulado Voyelles (ou Les Voyelles numa outra cópia), é certamente o mais comentado poema do autor, tendo à sua conta toda uma bibliografia. Para ele foram buscadas complexas significações místicas e esotéricas, sendo-lhe também atribuída uma intensa carga erótica, sem prejuízo de se suspeitar que a coloração das vogais poderá afinal ter sido simplesmente inspirada por um manual de primeiras letras. A única interpretação razoaveImente segura é que o poeta parece aqui pretender efectuar uma reflexão sobre o ser ou a totalidade (de alfa a omega), porventura ligada a uma interrogação sobre o sentido e limites da linguagem. Verlaine afirma, por outro lado, que a intensa beleza do poema o dispensa, a seus olhos, de "uma precisão teórica para a qual, penso, o extremamente espiritual Rimbaud se estaria certamente bem nas tintas”. Uma outra fantasia cromática, geralmente associada a Voyelles , a quadra "L'étoile a pleuré rose..." é, sobretudo, invenção e transcurso poéticos de um corpo feminino.

Na sequência da obra de Rimbaud, é geralmente destacado sob o nome de Novas Poesias (Vers Nouveaux ), um pequeno grupo de poemas escritos entre Fevereiro-Março e Julho de 1872 que serão também as suas últimas produções em verso. O poeta, então ainda a caminho dos seus dezoito anos, havia já iniciado em Paris a sua escandalosa e muito acidentada relação com Verlaine ("as nossas nádegas não são as deles"). O intenso fascínio que Rimbaud exercia sobre o vate saturnino era porém contrabalançado pela pusilanimidade deste em matéria de convenções sociais. Pressionado pela mulher Mathilde, que abandonou o lar levando consigo o pequeno filho do casal, Verlaine insiste com o companheiro para que regresse à província enquanto ele tenta resolver a sua situação familiar. Rimbaud - que vivia à custa do amigo na mais completa ociosidade - não pode discutir e retorna à sua cidadezinha natal de Charleville, nas Ardenas, onde se mantém alguns meses, aliás em contacto epistolar permanente com o desorientado esposo de Mathilde. Esta saíu aliás muito maltratada da contenda, vendo-se apodada pelo marido de «miserável fada cenoura, princesa rata, percevejo a quem esperam dois dedos e o balde, você fez-me tudo, você talvez tenha morto o coração do meu amigo... »). Mais tarde Verlaine e Rimbaud fugiriam juntos para a Bélgica, depois para Londres, num forte enlace sentimental e também na consecução de um feérico empreendimento poético e ontológico. Verlaine evadir-se-ia então, semi-enlouquecido, regressando só ao continente. Com o casamento irremediavelmente arruinado, afectivamente destroçado, tentará o suicídio, atentando depois frouxamente contra a vida do companheiro que viera em seu socorro. Por esse acto cumprirá dois anos de cadeia na prisão de Petits-Carmes, em Bruxelas. Rimbaud entregará aí em mão para ele um exemplar dedicado de Une Saíson en Enfer .

Os poemas de Vers Nouveaux datam daquela estadia em Charleville acima referida e são geralmente associados a um diálogo poético com Verlaine, do qual, pela maior parte, assimilam aliás os modos e o estilo que Rimbaud, posteriormente, desclassificará como «refrões tolos, ritmos ingénuos». Há neles como que um desprendimento aéreo e um abandono a não se sabe que velhas canções infantis, paradoxalmente conjugados com um desencanto e melancolia próprios de uma maturidade precocemente sobrevinda. A minha escolha aqui, porém, fixou-se deliberadamente nos poemas imagética e conceptualmente mais complexos, capazes de constituírem um elo entre Le Bateau Ivre ou Voyelles e os absolutamente geniais poemas em prosa com que, aos vinte anos, se encerraria a obra (ou a parte escrita dela) do «condenado do arco-íris». Depois, foi enfim esse vasto silêncio dos anos da Abissínia, jamais igualado por qualquer outro poeta.

Trata-se de poemas todos eles em hendecassílabos ou alexandrinos (aqui traduzidos em verso livre como todos os outros), de que o primeiro - Qu'est ce pour nous, mon coeur... - lembra ainda os entusiasmos revolucionários e comunistas do autor, aqui como que exagerados espectacularmente num propósito ou gesto apocalíptico. De notar também uma expressa predilecção por África e pela comunidade negra (ele que, em Une Saison en Enfer , reiterará o propósito de entrar «no vero reino dos filhos de Cham»), o que poderemos, com relativa segurança, associar à sua veemente repulsa pelos «pântanos ocidentais» e pela ética protestante do capitalismo («jamais, nous ne travaillerons»). A última linha do poema, por vezes considerada como exterior a este (tem apenas sete sílabas e não rima), é sobretudo admirável pela expressão da inquietação de uma entrevista partida e da melancólica desilusão de, afinal... ficar.

O poema Memoire, no qual encontramos já um Rimbaud a toda a altura do seu imenso génio, é uma obra extremamente complexa e compósita, talhada com uma precisão de ourives. Nele encontramos um relembrar nostálgico da vida campestre, cenas familiares da infância transfiguradas (a fuga do pai, na parte 3), a emergência altamente simbolizada de elementos do inconsciente, bem como referências veladas a acidentes da sua vida pessoal mais recente. Rimbaud usa aqui uma técnica por ele curiosamente baptizada de «alucinação das palavras» (acrescendo à dos sentidos) e que, pode argumentar-se, é já nada menos que simbolismo puro. De notar, ainda, o diálogo estabelecido na parte 5 com Le Bateau Ivre , poema ao qual Memoire se liga estreitamente, constituindo como que um seu complemento desencantado e serenamente dolorido. Com base numa frase do poeta («um título de vaudeville encerrava coisas espantosas perante mim»), tem-se geralmente por assente que o poema Michel et Christine terá por referência distante uma comédia homónima, muito popular no seu tempo, cuja acção se centrava no período das campanhas napoleónicas. Mas os exércitos em luta aqui, sob um céu avermelhado de cólera, são o dos conquistadores Francos e o dos povos autóctones da Gália (lobos e cordeiros), cujo "idílio" de ferro, fogo e estupro dará origem à nação francesa. Rimbaud retomará este tema, para si ligado a uma busca e questionamento das suas raízes, no famoso capítulo inicial (Mauvais Sang) de Une Saison en Enfer, identificando-se aí com a etnia submetida. Com as rimas muito descuradas, o poema lembra ainda o ambiente de Q'est-ce Pour Nous Mon Coeur..., haja em vista a manifesta atracção pela violência e pela pilhagem, entrevistas cumplicemente como possíveis redentoras da civilização europeia por si execrada. Est-elle almée?..., que escolhemos para encerrar este conjunto, é um poema cuja transparente beleza, mesmo desbotada pela tradução, continua a dispensar qualquer especial precisão analítica.

Vale talvez a pena referir, para terminar, que quando se pronuncia o nome Rimbaud não se invoca nenhuma figura clássica de poeta, fosse ela sequer a de uma busca acerada da modernidade, puro gesto inaugural que o legitimasse como apadrinhador crónico de toda a vanguarda e vanguardice letrada. Muitos outros o excederam no caudal da obra, na perfeição da forma e até em arrojo inovador. A história da literatura poderia talvez ignorá-lo sem sofrer dano de maior com isso. Rimbaud é uma demanda metafísica, um crime primordial, uma premente e irreprimível exigência de renovados horizontes éticos e estéticos. Esse mesmo sopro de intransigente liberdade na manhã do mundo. A palavra, nele, é muito mais vivida e comungado, no sentido dos profetas, de Cristo (com quem manteve aliás um áspero diálogo que daria origem a enormes equívocos, tal a teoria claudeliana do "místico em estado selvagem") ou de Zaratustra, do que matéria e instrumento de cultura. Talvez não fosse enfim mais do que uma criança embriagada de azul, caminhando sempre, ferozmente obstinada em esmagar os seus olhos sob o peso de tudo o que luz e vive e é puro revestindo o instante.

São desconhecidas quaisquer respostas a estas cartas do visionário. Supõe-se que os seus destinatários as ajuizaram como um amontoado de elocubrações sem qualquer sentido.

Ângelo Novo

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CARTAS DO VISIONÁRIO

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Para GEORGES IZAMBARD

Charleville, [13] de Maio de 1871

Caro Senhor:

Eis-vos de novo professor. Devemo-nos à sociedade, dissésteis-me vós; fazeis parte do corpo dos docentes: seguis por caminhos experimentados. -Também eu sigo o princípio: cinicamente, faço-me sustentar; desencaminho alguns imbecis antigos do colégio: tudo o que possa inventar de mais estúpido, porco e reles, por palavras ou acções, a eles o deixo: pagam-me com canecas e miúdas - Stat mater dolorosa, dum pendet filius, - Devo-me à sociedade, é justo, - e tenho razão. -Também vós tendes razão, por hoje. No fundo, vós nada vedes em vosso princípio senão poesia subjectiva: a vossa obstinação em retomar a manjedoura universitária - perdão- prova-o. Mas acabareis sempre como um satisfeito que nada fez, nada tendo querido fazer. Além de que a vossa poesia subjectiva será sempre horrivelmente fastidiosa. Um dia, espero, - muitos outros esperam a mesma coisa - verei no vosso princípio a poesia objectiva, vê-la-ei mais sinceramente que vós próprio a fareis! - Serei um trabalhador: é a ideia que me retém, quando a louca cólera me empurra para a batalha de Paris - onde tantos trabalhadores morrem agora mesmo que vos escrevo. Trabalhar agora, nunca, nunca; estou em greve.

Agora, mergulho na maior devassidão possível. Porquê? Quero ser poeta e trabalho para me tornar visionário: vós não compreendeis nada e eu não sei se saberei explicar-vos. Trata-se de atingir o desconhecido através do desregramento de todos os sentidos. Os sofrimentos são enormes mas é preciso ser-se forte, ter nascido poeta, e eu reconheci-me poeta. Não é de modo algum culpa minha. É falso dizer-se: eu penso. Deveria dizer- se: sou pensado. - Desculpe o trocadilho. -

Eu é um outro. Tanto pior para a madeira que se descobre violino e zomba dos inconscientes que discreteiam sobre aquilo que pura e simplesmente ignoram. Não sois Mestre para mim. Dou-vos isto: será uma sátira como vós diríeis? É poesia? Fantasia, é-o sempre. - Mas, suplico-vos, não a sublinheis com o lápis nem - demasiado - com o pensamento:

Coração Supliciado
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Isto não quer dizer nada. - RESPONDA-ME: para casa do sr. Deverrière, para A. R.

Saúdo-o, de todo o coração,

Art. Rimbaud

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Para PAUL DEMENY em Douai

Charleville, 15 de Maio de 1871

Resolvi dar-vos uma hora de literatura nova; começo de imediato com um salmo de actualidade:

Canto de Guerra Parisiense
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Eis agora alguma prosa sobre o futuro da poesia -

Toda a poesia antiga desemboca na poesia grega; Vida harmoniosa. Da Grécia ao movimento romântico, - Idade Média, - há alguns letrados, alguns versificadores. De Ennius a Theroldus, de Theroldus a Casimir Delavigne, tudo é prosa rimada, um jogo, relaxamento e glória de inúmeras gerações de idiotas: Racine é o puro, o forte, o grande. -Tivessem-lhe soprado sobre as rimas, baralhado os hemistáquios, e o Divino Idiota seria hoje tão desconhecido como o primeiro vindo, autor de Origens (1). -Após Racine, o jogo criou bolor. Durou dois mil anos!

Nem zombaria, nem paradoxo. A razão inspira-me mais certezas sobre esta matéria que fúrias teria tido um Jeune-France (2). De resto, os novos! têm por regra a liberdade de execrar os avoengos: estamos à vontade e temos tempo livre.

Nunca se julgou adequadamente o romantismo; quem o teria julgado? Os críticos!! Os românticos, que provam tão bem ser a canção raramente a obra, quer dizer o pensamento cantado e compreendido, do cantor?

Porque Eu é um outro. Se o cobre se descobre clarim, não há aí nada de culpa sua. Isso é evidente para mim: assisto à eclosão do meu pensamento: vejo-a, escuto-a: lanço um movimento com o arco: a sinfonia vai abalando as profundezas, ou salta de repente para o palco.

Se os velhos imbecis não tivessem encontrado do Eu apenas a significação falsa, não tínhamos que varrer esses milhões de esqueletos que, desde há um tempo infinito!, acumularam os produtos da sua inteligência vesga, proclamando-se autores!

Na Crécia, já o disse, versos e liras ritmam a Acção. Depois, música e rimas são jogos, refrigério. O estudo deste passado encanta os curiosos: muitos aprazem-se a renovar estas antiguidades: - é para eles. A inteligência universal sempre arremessou as suas ideias com naturalidade; os homens recolhiam uma parte desses frutos do cérebro: agia-se em conformidade, escreviam-se livros: tal era o sentido das coisas, o homem não se trabalhando, não estando ainda desperto ou não ainda mergulhado na plenitude do grande sonho. Funcionários, escreventes: autor, criador, poeta, esse homem nunca existiu!

O primeiro estudo para o homem que quer ser poeta é o seu próprio conhecimento, por inteiro; ele procura a sua alma, inspecciona-a, experimenta-a, apreende-a. Desde que a sabe, deve cultivá-Ia; isso parece simples: em todo o cérebro se dá um desenvolvimento natural; tantos egoístas se proclamam autores; muitos outros atribuem-se o seu próprio progresso intelectual! - Mas do que se trata é de tornar a alma monstruosa: a exemplo dos comprachicos (3), pois! Imagine um homem implantando e cultivando verrugas no seu próprio rosto.

Digo que é necessário ser visionário, fazer-se visionário.

O Poeta faz-se visionário por um prolongado, imenso e calculado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele próprio procura, esgota em si todos os venenos para deles guardar apenas as quintessências. Inefável tortura em que ele precisa de toda a fé, de toda a sobre-humana força, em que ele se torna entre todos o grande enfermo, o grande criminoso, o grande maldito, - e o supremo Sábio! - Pois ele atinge o desconhecido! Uma vez que cultivou a sua alma, já de si rica como nenhuma! Ele atinge o desconhecido e, acaso, enlouquecido, acabasse por perder a inteligência das suas visões, tê-las-à visto! Que ele estoire no seu sobrevôo pelas coisas inauditas e inomináveis: virão outros horríveis trabalhadores; começarão pelos horizontes onde o outro se abateu!

- A sequência dentro de seis minutos -

Aqui intercalo um segundo salmo fora do texto: queira dispensar um ouvido complacente, - e toda a gente ficará encantada. - Tenho o arco na mão, começo:

As Minhas Pequenas Apaixonadas
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Pronto. E repare bem que se eu não receasse fazer-vos desembolsar mais de 60 c. de portes, - eu, pobre assombrado, que desde há sete meses não embolso uma única moeda de bronze! - enviar-vos-ia ainda os meus Amantes de Paris, cem hexâmetros, caro senhor, e a minha Morte de Paris, duzentos hexâmetros! -

Retomando:

É pois o poeta, verdadeiramente, ladrão de fogo.

Ele tem a seu cargo a humanidade, os animais mesmo; deve fazer sentir, palpar, escutar as suas invenções; se aquilo que ele transmite de lá tem forma, ele dá a forma; se é informe, ele dá o informe. Achar uma língua;

- De resto, sendo toda a palavra uma ideia, o tempo de uma linguagem universal virá! É preciso ser-se académico - mais morto que um fóssil, - para compilar um dicionário, seja de que Iíngua for. Um ser fraco que se meta a pensar sobre a primeira letra do alfabeto, e poderá rapidamente precipitar-se na loucura! -

Esta língua será de alma para alma, compreendendo tudo, perfumes, sons, cores, o pensamento enganchado no pensamento, desfiando-o. O poeta definiria a quantidade de desconhecido despertando em seu tempo na alma universal: ele daria mais - que a fórmula do seu pensamento, que a marcação da sua marcha para o Progresso. Enormidade tornando-se norma, absorvida por todos, ele será verdadeiramente um multíplícador de progresso!

Este futuro será materialista, bem o vedes. - Sempre repletos do Número e da Harmonia, estes poemas serão feitos para permanecer. - No fundo, será ainda um pouco a Poesia grega.

A arte eterna teria as suas funções; assim como os poetas são cidadãos. A Poesia não ritmará mais a acção; ela estará na dianteira.

Estes poetas serão! Quando for quebrada a infinda servidão da mulher, quando ela viver por ela e para ela, o homem, - até aqui abominável, - tendo-lhe rendido a vez, ela será poeta, também ela! A mulher penetrará no desconhecido! Os seus mundos de ideias diferirão dos nossos? - Ela achará coisas estranhas, insondáveis, repugnantes, deliciosas; nós tomá-las-emos, nós compreendê-Ias-emos.

Entretanto, exijamos aos poetas o que for de novo, - ideias e formas. Todos os habilidosos pensariam rapidamente ter já satisfeito esta exigência. - Não é isso!

Os primeiros românticos foram visionários sem disso se darem bem conta; o cultivo de suas almas começou nos acidentes: locomotivas abandonadas, mas a queimar, que a espaços retomam ainda os carris. - Lamartine é por vezes visionário, mas a forma velha estrangula-o. - Hugo, por demais cabeçudo, soube bem ver nos seus últimos volumes; Os Miseráveis são um verdadeiro poema. Folheio Os Castigos; Stella oferece mais ou menos o alcance da vista de Hugo. Demasiado Belmontet e Lamennais, demasiados Jéhovahs e colunas, velhas enormidades perimidas.

Musset é catorze vezes execrável para nós, gerações dolorosas e tomadas de visões, - que a sua preguiça de anjo insultou! Oh! os contos e os provérbios fastidiosos! oh as noites! oh Rolla (4), oh Namouna, oh a Coupe! tudo é francês, quer dizer detestável no supremo grau; francês, não parisiense! Ainda uma obra desse odioso génio que havia já inspirado Rabelais, Voltaire, Jean La Fontaine, comentado pelo Sr. Taine! Primaveril, o espírito de Musset! Encantador, o seu amor! Eis aí pintura sobre esmalte, poesia sólida! Saborear-se-á durante muito tempo a poesia francesa, mas em França. Qualquer rapaz talhista está à altura de desbobinar uma apóstrofe Rollastra, qualquer seminarista transporta as suas quinhentas rimas no segredo de um canhenho. Aos quinze anos, estes impulsos de paixão põem os jovens a uivar à lua; aos dezasseis anos, eles contentam-se já em recitá-los com coração; aos dezoito anos, aos dezassete anos mesmo, todo o colegial dispondo dos meios, faz o Rolla, escreve um Rolla! Talvez alguns ainda morram disso. Musset não soube fazer nada: tinha lá algumas visões por detrás da gaze dos cortinados: fechou-lhes os olhos. Francês, Pavoneador, arrastado do botequim para as estantes das escolas, o belo morto está morto e, agora, não nos demos sequer ao trabalho de o despertar com as nossas abominações!

Os segundos românticos são bem visionários: Th. Gautier, Leconte de Lisle, Th. de Banville. Mas sendo a prospecção do invisível e a escuta do inaudito coisas diversas de retomar o espírito das coisas mortas, Baudelaire é o primeiro visionário, rei dos poetas, um verdadeiro Deus. Ainda viveu porém num meio demasiado artista; e a forma, que lhe é tão louvada, é mesquinha: as invenções de desconhecido reclamam formas novas.

Afeitos às velhas formas, entre os inocentes, A. Renaud, - criou o seu Rolla; - L. Grandet, - criou o seu Rolla; - os gauleses e os Musset, G. Lafenestre, Coran, CI. Popelin, Soulary, L. Salles; Os académicos, Marc, Aicard, Theuriet; os mortos e os imbecis, Autran, Barbier, L. Pichat, Lemoyne, os Deschamp, os Desessarts; os jornalistas, L. Cladel, Robert Luzarches, X. de Ricard; os fantasistas, C. Mendès; os boémios; as mulheres; os talentos, Leon Dierx e Sully Prudhomme, Coppée; - a nova escola, dita parnasiana, tem dois visionários, Albert Mérat e Paul Verlaine, um verdadeiro poeta. - Eis, pois (5). - Trabalho assim para me tornar visionário. - E terminemos por um canto piedoso.

Prostrações
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Seríeis execrável se não me respondêsseis: rapidamente, pois dentro de oito dias estarei talvez em Paris.

Até à vista.

A. Rimbaud

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NOTAS:

(1) - Ennius - "le premier venu" é um poeta latino, autor dos 'Anais' e não de 'Origens' como lhe é aqui imputado.

(2) - Jeune France: Movimento literário, reunido em torno de Théophile Gautier e Gerard de Nerval, representando a tendência extrema do romantismo francês de 1830.

(3) - Comprachicos: Indivíduos que se dedicavam ao comércio de crianças com vista a serem exploradas na mendicidade, por vezes após sofrerem graves mutilações. São referidos num romance de Vitor Hugo, «L'Homme qui rit».

(4) Rolla: Um poema de Alfred de Musset de temática histórica no seu estilo sombrio; Musset era então alvo de vários ataques nomeadamente de Baudelaire que o apelidou de "mestre dos peralvilhos”.

(5) - Este impressionante desfile literário, de personalidades pela sua maior parte hoje totalmente desconhecidas, é ordenado segundo o Parnasse Contemporain de 1866 e suas edições de 1869.

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NOVE POEMAS

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OS POETAS DE SETE ANOS
Ao Sr. P. Demeny.
E a mãe, encerrando o livro grande do dever, Retirava-se altiva e satisfeita sem poder ver, Nos olhos azuis e sob a fronte plena de elevação, A alma do seu menino assolada pela aversão. Todo o dia ele transpirava de obediência; inteligente; Mas alguns tiques negros, certos rasgos da sua mente, Pareciam provar nele as mais azedas hipocrisias. Na sombra dos corredores, sob bolorentas tapeçarias De passagem, tirava a Iíngua de fora, as mãos fechadas Na virilha, os olhos cerrando-se sobre visões pontilhadas. Uma porta se abria sobre a noite: a lâmpada da escada Denunciava-o lá em cima, agonizando na balaustrada, Sob essa enseada de dia pendente do tecto. No Verão Sobretudo, estúpido, vencido, era sua obstinação Encerrar-se de novo no fresco remanso das latrinas: Aí meditava ele, tranquilo e abrindo bem as narinas. Quando, lavado dos odores do dia, nas traseiras do lar, O pequeno jardim, pelo Inverno, se banhava de luar, jacente ao pé de um muro, enterrado na marga E por visões esmagando o seu olhar que se embarga, Ele escutava o fervilhar das fungosas latadas. Piedade! Essas crianças apenas eram a ele chegadas, Delgadas, a cara descoberta, olhos na face desmaiados, Ocultando uns magros dedos negros na lama amarelados Sob as velhíssimas roupas tresandando a excremento, Conversavam com uma doçura idiota pedindo lamento! E se, surpreendendo-o entregue a piedades imundas, A mãe se horrorizava; as carícias mais profundas Do filho se precipitavam sobre este anseio protector. Era bom. Doce, o seu olhar azul - enganador! Aos sete anos, fazia ele romances, sobre a vida Do grande deserto em que luz a Liberdade remida, Florestas, sóis, rios, savanas! - Ele se inspirava Em jornais ilustrados onde, corado, observava Espanholas de riso solto e também italianas. Quando vinha, olhos pardos, louca, em vestes indianas - Oito anos, - a filha dos operários da casa ao lado, Essa miúda brutal, e após que ela tivesse saltado, A um canto, sobre o seu dorso, agitando as tranças, Estando sob ela, mordia-lhe as nádegas distensas, Pois ela não trazia nunca calcinhas, era sabido; -E por ela sendo, a punhos e calcanhares, contundido, Retirava-se, guardando de sua pele o vivo sabor. Temia ele apenas os domingos de dezembro sem cor, Em que, o cabelo abrilhantado, sobre uma mesa de centro, Lia passagens numa bíblia de bordos verde-coentro; Sonhos opressivos tomavam-no à noite quando recolhia. Não amava Deus; mas os homens que ao arruivar do dia, Enegrecidos, em blusa, ele via regressar ao arredor Onde os pregoeiros, com três rufares de um tambor, Em torno dos editais fazem rir e resmonear a multidão. - Ele sonhava a várzea amorosa em que uma agitação Luminosa, perfumes sadios, pubescências douradas, Marulham calmamente e retomam suas aéreas moradas. E assim ele saboreando sobretudo as coisas sombrias, Quando, em seu aposento despido, corridas as gelosias, O quarto alto e azul, duramente tomado de humidade, Lia o seu romance, aí repensado com tenacidade, Cheio de pesados céus ocres e florestas inundadas, De pétalas de carne em lenhos siderais transmutadas, Vertigem, desabamentos, derrotas e compaixão! - Enquanto do bairro se ia levantando a excitação, Em baixo - só, em seus lençóis de pano-cru envolto, E pressentindo já violentamente o velejar solto.
AS RECORDAÇÕES DO VELHO IDIOTA
Perdão meu pai! Jovem, nas feiras de qualquer vilória, Procurava eu, não a barraca de tiro, a velha história, Mas o sítio carregado de gritos em que os jumentos, Exaustos, cediam de si aqueles longos tubos sangrentos Que não compreendo ainda!... E minha mãe então, De quem a camisa largava aquela amarga exalação, Algo amarrotada em baixo e amarela como um fruto, Minha mãe que se deitava com certo ruído - produto Do trabalho porém - minha mãe com sua coxa cheia De mulher madura, com seus rins em que pregueia O branco linho, me dava aqueles calores que silencio!... Vergonha mais crua e calma, era quando, pelo frio Minha irmã mais nova, no seu regresso da escola, Tendo arrastado sobre o gelo os tamancos e a sacola, Mijava, olhando que se escapava de seu labiozinho Rosado e bem apertado, aquele travesso fiozinho!... Ó perdão! Sonhava eu com meu pai por vezes: Ao serão, o jogo de cartas e os seus ditos soezes, O vizinho, e eu que era retirado, coisas conhecidas... - Pois um pai é perturbador - e as coisas concebidas!... Seu joelho, acariciador por vezes; as suas calças De que meu dedo desejaria abrir a fenda,...- oh! caraças! Para haver, de meu pai, a ponta, grande, negra e dura, Dele cuja mão peluda me embalava!... E aqui se descura O púcaro, o pequeno prato de asa, entrevisto lá acima, Os almanaques de capa vermelha, e aquela cestinha De pano, e a Bíblia, e os lugares todos, e a criada, A Virgem santa e o crucifixo... Oh! que ninguém, por nada, Foi tantas vezes perturbado, assim como espantado! E nesta hora, enfim, seja eu de tudo aqui perdoado: Pois que os infectos sentidos me apanharam nos seus redis, Solenemente confesso todos estes meus crimes juvenis!... ........................................................ E já agora! - seja-me enfim permitido falar ao Senhor! Porquê a puberdade tardia e esse indizível temor Da glande tenaz por demais consultada? Porquê a sombra Tão lenta no baixo ventre? e esse terror que se encontra Cumulando sempre a alegria, tal saibro na corrente? - Eu, estive sempre estupefacto! De quê ser sabedor? ....................................................... Perdoado? Retome o seu escalda-pés azul, não foi nada, Meu pai. Ó esta infância! ................................................ .......................- e retiremo-nos a cauda!
ORAÇÃO DA TARDE
Vivo eu sentado, tal um anjo às mãos de um barbeiro, Empunhando uma caneca de enormes caneluras, O pescoço e o hipogástrio curvos, o cachimbo inteiro Nos dentes, sob o ar enfunado por velas imaturas. Tais os excrementos bem frescos num velho pombal, Mil Sonhos em mim alastram sua doce calcinação: Depois por instantes meu triste coração é um pinheiral Sangrado de ouro jovem e sombrio pela resinação. Depois, quando já engoli meus sonhos em amenidade, Volto-me, com umas trinta canecas viradas de borco, E recolho enfim, para verter a amarga necessidade: Doce como o próprio Senhor do cedro e do hissopo, Mijo para os escuros céus, longe e em profundidade, Os grandes heliotrópios dando seu assentimento choco.
VOGAIS
A negro, E branco, I vermelho, U verde, O azul: vogais, Algum dia direi desses vossos ocultos nascimentos: A, negro corpete felpudo em que as moscas, aos centos, Revolteiam por onde os cruéis fedores se sentem mais, Golfos de treva; E, canduras dos vapores e das tendas, Cumes de altivos glaciares, reis brancos, trémulas sombrinhas; I, púrpuras, sangue cuspido, as belas bocas escarninhas Em sua cólera ou, da embriaguez, percorrendo as sendas; U, ciclos, divino ondular dos mares verdejando sem fugas, Paz das campinas polvilhadas pelo gado, paz das rugas Que a alquimia imprime na alta fronte dos estudiosos; O, Supremo Clarim, pleno de raros estridores facundos, Silêncios atravessados por Anjos e por Mundos: - O, o omega, a emanação violeta dos Seus Olhos! -
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A estrela banhou de rosa a polpa de tuas orelhas O infinito cobriu a branco de tua nuca a teu ventre O orvalho marinho arruivou tuas tetas vermelhas E o Homem sangrou negro a teu flanco eminente...
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Que são para nós, minh'alma, essas toalhas de sangue E de braseiro, e mil assassínios, e os longos gritos De raiva, o soluçar de todo inferno donde se expande A desordem; e o Aquilão ainda varrendo os detritos E toda a vingança? Nada!...- oh, mas sim, assim mesmo Nós a queremos! Industriais, príncipes, todo o senado, Perecei! potência, justiça, história, agonizai a esmo! É-nos devido. O sangue! O sangue! O flamejar dourado! Tudo pela guerra, pela vingança, pelo sagrado terror, Meu Espírito! Lancemo-nos a eles à dentada: Ah! Passai, Repúblicas deste mundo! E todo e qual imperador, Os regimentos, os colonos, os povos todos, cessai! Quem removeria os turbilhões do fogo encolerizado, Senão nós e aqueles que nós nos imaginamos irmãos? A nós! Romanescos amigos: isto será do vosso agrado. Nunca trabalharemos, ó vagas de fogo em nossas mãos! Europa, Ásia, América, Oceania, todos desaparecei. A nossa marcha vingadora tudo tem já ocupado, Cidades e campos! - Arrasados seremos toda a grei! Os vulcões saltarão! e o oceano, ele mesmo espancado... Oh! meus amigos! - minh'alma, é certo, eles são irmãos: Negros desconhecidos, se fôssemos! Vamos! Vamos! Ó desdita! Sinto em mim que estremecem, solos anciãos, Sob mim cada vez mais vosso! os solos que pisamos, Não é nada, porém! Aqui estou! Aqui estou eu ainda.
RECORDAÇÃO
1 A água clara; como o sal dessas lágrimas de pueril tristeza O assalto ao sol das brancuras dos corpos das damas; a seda, em desordem e a pura flor-de-lis, auriflamas sob as muralhas de que alguma donzela assumiu a defesa; o recreio dos anjos; - Não... a corrente de oiro que se anima move os braços negros, pesados, e bem frescos de ervado. Ela sombria, tendo o Céu azul por tecto de cama, toda se desvela a tomar por cortinados as sombras da ponte e da colina. 2 Eh! o húmido lajedo levanta já seus límpidos borbulhares! A água guarnece de oiro pálido e sem fundo os leitos armados. As rapariguinhas nos seus vestidos verdes e desbotados Chegam aos salgueiros, donde partem as indomadas aves. Mais pura ainda que um luís, amarela e quente pálpebra o malmequer-dos-brejos - tua fé conjugal, ó a Esposa! - ao ardente meio-dia, de seu terno espelho, suspeitosa nos céus cinzentos de calor a Esfera rosa e cara. 3 A Senhora tem-se bem de pé no meio dos amplos prados, onde próximos se espalham os filhos do trabalho; a sombrinha em mão; calcando aos pés a umbela; altiva, não se aninha; miúdos por ali estão lendo, na verdura florida deitados, o seu livro de marroquim vermelho! Desditosos, Ele, como mil anjos brancos que se separassem a meio da estrada, afasta-se já bem para lá da montanha! Ela, enregelada, e negra, corre! após a partida do homem sem rumo! 4 Remorso dos jovens e espessos braços de ervado puro! Oiro das luas de Abril no coração do santo leito! Alegria dos estaleiros ribeirinhos ao abandono, entregues à mestria das tardes de Agosto que faziam germinar este monturo! Que ela chore, agora, sob as muralhas! o hálito nefando dos choupos, vindo lá do alto, aí está por único vento. Depois, é o lençol, sem reflexos, sem nascente, cinzento: um velho, dragando, na sua barca imóvel, aí vai penando. 5 Joguete que fui deste lustro de água triste, não pude aí tomar, ó canoa imobilizada! oh! braços curtos demais! nem uma nem a outra flor: nem a amarela, aquela que me importuna, ali; nem a azul, a amiga da água cor de cinza e do luar. Ah! o pó nos salgueiros que um golpe de asa sacode a mal! As rosas dos canaviais desde há tanto já devoradas! Minha canoa, sempre imóvel; e a suas amarras atiradas Ao fundo deste lustro de água sem margens, - a que lodaçal?
MIGUEL E CRISTINA
Que se lixe então se o sol abandonar estas margens! Foge, claro dilúvio! Eis aí a sombra dos caminhos. Nos salgueiros, e também no velho pátio principal A tempestade atira suas largas gotas em remoinhos. Ó cem cordeiros, louros soldados do idílio, Aquedutos, tufos de urze definhados por metade, Fugi! Planície, desertos, pradaria, horizontes Estão no toucador escarlate da tempestade! Cão negro, pastor trigueiro de que se envola o capote, Fujam da hora que vem de iluminações superiores; Louro rebanho, quando aqui nadam treva e enxofre, Tratai bem de vos retirar para abrigos melhores. Mas eu, Senhor! Eis pois que o meu Espírito voa, Ao encontro dos céus gelados de escarlate, sob as Nuvens celestes que correm como um rio se escoa Sobre cem Solognes longas como linhas férreas. Eis aí mil lobos, e mil outras selvagens sementes Trazidas, não sem amar dos doces lírios a beleza, Por esta mística tarde das trovoadas inclementes Sobre a Europa antiga onde cem hordas farão presa! Depois, o clarão do luar! por todo aquele rossio, Ruborizando suas faces aos negros céus, os guerreiros Cavalgam devagar seus brancos corcéis bem ligeiros! Os calhaus soam à passagem do tropel pleno de brio! - E verei eu o claro vale e o bosque amarelado, A esposa de olhos azuis, o homem de face rubra - ó Gália, E o branco cordeiro pascal, a seus pés prostrado, - Miguel e Cristina, - e Cristo! - o final do Idílio.
***
É ela almeia?... às primeiras horas doloridas Destruir-se-à ela como as flores desfalecidos... Perante a magnífica extensão onde se sente Respirar a cidade imensamente florescente!

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É belo demais! É belo demais! mas é necessário - Para a Pescadora e para a canção do Corsário, E também porque as derradeiras máscaras ainda Acreditaram nas festas da noite sobre a maré limpa!

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