Que fazer hoje?







Embora se ouçam já muitas vozes alvissareiras sobre a “recuperação da economia mundial”, os tempos continuam a ser de profunda depressão, sem ainda qualquer fim à vista. A abertura de um novo ciclo de expansão está, para além do mais, dependente de uma recomposição das instituições financeiras e de regulação internacional do capitalismo, o que passa por um novo e delicado compromisso inter-imperialista. Em particular, está em causa o papel do dólar norte-americano como moeda de curso mundial forçado e reserva de valor.

O capitalismo nasceu da pilhagem e do esbulho armado, nunca se tendo verdadeiramente emancipado deles. Renova-se constantemente por seu intermédio. De modo tal que a chamada “acumulação primitiva” não tem, em absoluto, nada de particularmente primitivo. É algo de absolutamente contemporâneo. Desenrola-se hoje bem à nossa vista, a diversos níveis. Passa-se, por exemplo, na base e nas margens do sistema, com a expropriação violenta dos bens e a destruição dos modos de vida tradicionais (incluindo os seus saberes ancestrais) das comunidades não capitalistas. Mas passa-se também na própria cumeeira do sistema capitalista mundial.

O sistema imperialista contemporâneo é um gigantesco mecanismo de esbulho e extorsão à mão armada. A potência imperialista dominante – os E. U. A. – serve-se da sua proeminência militar para extrair uma renda permanente, por intermédio da imposição da sua moeda (ou de títulos de dívida pública nela denominados) como reserva mundial de valor universalmente imposto. E isso conduz a um círculo vicioso, por intermédio do qual as potências subalternas financiam de facto o militarismo norte-americano, o qual, assim reforçado, está em condições de impor sempre novas e mais gravosas condições para esta tributação imperialista. Simplesmente, isto não se faz sem graves atritos. As burguesias das nações onde, no essencial, o capital cumpre o seu ciclo “normal” de acumulação (por extracção da mais-valia ao trabalho, “nacional” ou “estrangeiro”) não estarão para sempre dispostas a prestar este tributo, sobretudo quando as suas margens de lucro se tornam cada vez mais estreitas.

A frente de resistência a este esbulho reúne-se hoje sob a sigla BRIC, reunindo as burguesias do Brasil, Rússia, Índia e China, sob a liderança desta última. É deste grupo que pode sair um desafio coordenado ao eixo US Dolar – FMI – OMC - Pentágono, que constitui o verdadeiro “consenso de Washington” e cuja ortodoxia dita “neo-liberal” governou o mundo indisputadamente nestes últimos trinta anos. Não há possibilidade de se iniciar um novo ciclo expansivo sem se encontrar um novo arranjo e composição inter-imperialista de interesses, o qual se traduzirá necessariamente numa nova ortodoxia doutrinal económica, que pode ir desde a renovação pura e simples do “consenso” neo-liberal até alguma forma de intervencionismo estatal neo-keynesiano, seja ele de carácter populista e redistributivo ou seja ele mais marcado pelo autoritarismo de classe e pelo reforço das componentes militaristas, securitárias e xenófobas.

Muito mais grave e profundo, porém, do que todos os desarranjos e disfunções financeiras, monetárias e cambiais, é o facto de que estamos perante uma profunda crise de sobreprodução capitalista. Há demasiada capacidade produtiva instalada para a procura solvente que pode ser mobilizada para escoar as mercadorias e assim realizar o seu valor. A “globalização” foi um fracasso também desse ponto de vista, pois que agudizou a competição inter-capitalista, face a mercados cada vez mais exíguos ou face à constituição de um único mercado mundial que se revelou, na verdade, ser menor que a soma das suas partes componentes. A recuperação que se registou nas margens de lucro como resultado da guerra social conduzida contra os trabalhadores foi em parte posta em causa pela dificuldade crescente em colocar os produtos junto ao consumidor final (em parte o próprio trabalhador sob outras vestes), de modo a realizar o seu valor e prosseguir o ciclo acumulador. A via da extensão ilimitado do crédito foi experimentada, mas rapidamente mostrou os seus limites. O capital monopolista, sem vias de investimento viável na indústria produtiva, experimentou a vertigem da especulação financeira, mas também esta lhe acabou por explodir na face, forçando-a a acoitar-se sob o abrigo sempre benévolo do seu Estado.

Há quem diga que o sistema capitalista atingiu a sua fase “senil”, estando completamente esgotadas todas as suas potencialidades históricas e atingida a fase final da sua agonia. Preferimos dizer que são claramente visíveis diversas contradições no sistema que dão sinais de grande amadurecimento, com potencial carácter explosivo, permitindo que nelas se desenhem diversas linhas de ruptura. Mas para isso é necessário que intervenha, de forma conscientemente revolucionária, um sujeito histórico transformador.

Esse sujeito, hoje em dia, tem uma dimensão mundial, não sendo constituído homogeneamente por uma única e determinada classe social. No entanto, ao nível mais elevado de abstracção, podemos perfeitamente continuar a dizer que os polos em luta são, sempre e ainda, unicamente dois: de um lado o capital e do outro o trabalho. De modo que o sentido geral da luta revolucionária em curso há-de ser, em todas as circunstâncias, nos mais diversos ambientes geográficos, pela superação do nexo social constituído pelo capital e pela libertação plena de todos poderes criativos do trabalho.

Isso tem tradução na luta pela terra e por condições para o seu cultivo por parte dos camponeses e comunidades “indígenas”, na luta pela manutenção dos empregos, pela contratação colectiva, pela partilha de empregos, com redução do horário de trabalho sem diminuição da remuneração, na luta por serviços públicos de qualidade, alojamento condigno e pela segurança social, na luta pelo controle de gestão nas grandes empresas capitalistas, na luta dos consumidores contra a fraude e o abuso monopolistas, na luta dos trabalhadores intelectuais contra a apropriação capitalista e “patenteamento” das suas criações. É de todas estas diversificadas contas que se compõe hoje a luta do proletariado mundial. A hipótese histórica do seu triunfo, que acarretará a derrocada do capitalismo e a abertura de uma nova via para o desenvolvimento da aventura humana, está hoje dependente de acharmos uma articulação entre todas estas diversificadas lutas, que nos permita lançar um programa político coerente e palavras de ordem de grande poder mobilizador, que vão ao encontro e dêem respostas efectivas ao desamparo e ao desespero crescentes das grandes multidões laboriosas.






Publicado na revista 'Política Operária' nº 120, Maio-Junho de 2009. 1
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