Que outro mundo é possível?


O que os comunistas têm a fazer no movimento dito anti-globalização

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As duas últimas décadas do século XX constituíram, sem dúvida e desde já, uma das mais negras épocas de reacção na história do capitalismo. Ao período expansionista e do compromisso social-democrata do imediato pós-guerra seguira-se a estagnação e a crise estrutural a partir dos inícios da década de 70. O crescimento da produtividade desacelerou acentuadamente, reduzindo a distribuição de dividendos pelas classes capitalistas. A inflação reduzia as taxas de juros reais a quase zero. Para a burguesia impunha-se com urgência a restauração de margens de lucro mais confortáveis, sob pena de não se poder assegurar a reprodução do sistema e a sua sobrevivência como classe. Daí o assalto geral e continuado lançado pelo grande capital, simbolicamente inaugurado pelo par Reagan/Thatcher (com o importante precedente do Chile de Pinochet, assistido pela escola da Chicago) e que prossegue ainda hoje, no essencial.

As organizações sindicais com alguma réstea de combatividade foram esmagadas, dispersas ou neutralizadas, abrindo caminho à informalização e precarização dos vínculos laborais, com uma regressão generalizada nas condições de segurança e higiene e nos rendimentos do trabalho. A noção de res publica foi espezinhada e escarnecida, iniciando-se uma era de pilhagem, desbaratamento e parasitagem sistemática do património colectivo, glorificando-se o espírito de salve-se quem puder. As privatizações começaram no parque empresarial do Estado mas rapidamente se estenderam para os serviços públicos mais essenciais – ensino, saúde, as redes de telecomunicações e de distribuição de energia, os serviços postais, etc. - incluindo bens colectivos tão vitais como a água. A corrida aos armamentos acelerou-se e as despesas públicas militares e no aparato repressivo subiram em flecha. O ramalhete é composto com receitas da mais pura ortodoxia liberal: restrição da massa monetária (significativamente abandonada, porém, no especialíssimo caso dos E.U.A., que dispõem da opção de impor o curso da sua moeda no estrangeiro), inflação controlada, abertura ao investimento externo, taxas de câmbio competitivas, impostos mais baixos (sobretudo para os escalões de rendimento mais elevados), rebaixamento das tarifas aduaneiras (sobretudo nos países mais pobres), desmantelamento do aparato institucional público de solidariedade social, abertura e liberalização dos mercados financeiros, taxas de juro altas, autonomização dos bancos centrais, desregulamentação das actividades económicas, etc.. É este o celebrado “consenso de Washington”, imposto sem cerimónia em todo o mundo pelo sexteto residente F.M.I. - Banco Mundial – Departamento do Tesouro - Federal Reserve Board (Fed) – Casa Branca - Pentágono.

A implosão da União Soviética e do seu bloco geo-político aliado foi já em parte resultado desta ofensiva capitalista, na sua vertente externa. Por outro lado, criou ela própria condições novas para a sua aceleração e aprofundamento. Os efeitos políticos e ideológicos desta derrocada histórica foram mais profundos do que muitos previram inicialmente, acabando por espalhar a descrença e o desânimo mesmo entre largas camadas de opinião proletária que não se reviam minimamente no modelo do “socialismo real”. Generalizou-se o descrédito da ideia de uma alternativa global ao sistema capitalista, o que retirou toda a capacidade ofensiva e poder de iniciativa aos trabalhadores, fragilizando enormemente, em todo o lado, a sua posição negocial e perspectivas de luta.

A queda da casa de Moscovo, termos de troca cada vez mais desfavoráveis no “mercado mundial” mais a cilada de um endividamento galopante (contraído com intuitos “desenvolvimentistas” e que logo se tornou, à escala de povos inteiros, numa moderna versão do instituto romano da escravatura por dívidas) provocaram também a derrota do projecto de emancipação nacionalista e progressista das antigas colónias e semi-colónias. A corrupção das elites dirigentes bem como o êxodo sistemático de capitais e de muitos dos quadros mais valiosos selaram o seu destino, precipitando-as na espiral viciosa da dependência e da imiseração. Já não são sequer só as perspectivas de progresso e desenvolvimento autónomo que estão comprometidas. Em cada vez maior número destas ex-colónias e semi-colónias o garrote imperialista chega ao ponto de inviabilizar o próprio travejamento de uma organização política nacional estabilizada, afundando os seus povos num estado de instabilidade caótica, frequentemente na guerra civil e em crispações identitárias regressivas. Assim se abre para os imperialistas a opção de uma ofensiva recolonizadora, mascarada em tons de generosidade humanitária e cosmopolita.

No domínio das ideias convencionou chamar-se a esta época a era do triunfo do neo-liberalismo. É de facto um triunfo em toda a linha e uma vingança agravada dos ideólogos duros da Sociedade do Mont Pelerin: Hayek, Popper, von Mises, Friedman, etc.. Propriedade privada e livre empresa são agora os valores sociais supremos. O intervencionismo estatal de inspiração keynesiana é universalmente abominado (excepto, é claro, quanto às crescentes encomendas armamentistas ou quando é caso de resgatar algum colosso privado em derrocada à custa do contribuinte). Numa imagem mais geográfica, há também quem denomine o tempo presente como a era da globalização. O mundo será agora um palco uno e uniformemente aberto à livre expansão da iniciativa capitalista. Como todas as eras de pura reacção, também esta se caracteriza por um endurecimento da ditadura da classe dominante. E isto num duplo sentido.

Em primeiro lugar, dá-se um estreitamento do bloco social no poder, que é agora exclusivamente constituído pela alta burguesia e pelos seus coadjutores executivos imediatos. Dentro deste bloco, há também uma sensível redistribuição de poder em favor dos proprietários e em desfavor dos directores e administradores. É o que François Chesnais denomina como um “regime de acumulação de dominante financeira”. Todas as outras classes estão excluídas do poder. Em todo o mundo do capitalismo desenvolvido, o campesinato (pequeno, médio ou grande) e a pequena burguesia tradicional são agora classes residuais. Desde que ocorreu o rompimento definitivo do compromisso social-democrata (nos anos 80), as camadas dirigentes da aristocracia operária, as novas profissões técnicas e os quadros administrativos intermédios deixaram de fazer parte do bloco no poder, embora possam ainda cumprir uma função de amortecedores da conflitualidade e garantes da boa ordem social. A burguesia está naturalmente interessada em aliciar e acomodar uma vasta clientela das ditas “classes médias” mas esta não têm qualquer influência decisória.

Por outro lado, há um endurecimento do aparato repressivo do Estado burguês, bem como do seu aparato de condicionamento e socialização ideológicos. A barreira de mentiras na “comunicação social” de massas é tão espessa, cerrada e unânime que se tem a impressão de viver no ambiente sufocante das utopias negativas descritas por Orwell ou Huxley. O “mundo ocidental” perdeu definitivamente a sua tradição pluralista, estando agora submetido a um regime de verdade oficial, língua de pau e hipocrisia geral. Direitos, liberdades e garantias constitucionais de firme tradição na civilização demo-liberal são agora rotineiramente excepcionadas e postas em crise. Todo o esgoto das excreções ideológicas espontâneas da burguesia, os reflexos reptilianos que ela até já se havia habituado a tentar dissimular o melhor que pudesse – o racismo, a xenofobia, o sexismo, a homofobia, a cupidez infrene, a subserviência canina face aos poderosos, o desprezo e o ódio aos mais fracos, a sanha homicida contra as vozes dissidentes - corre agora a céu aberto de uma forma alarvemente desbragada (“sem complexos” como se ouve por vezes dizer).

O próprio mecanismo político da democracia representativa tornou-se uma concha cada vez mais vazia. Nenhuma alternativa real é oferecida ao eleitorado - em termos de modelo de organização social e de desenvolvimento económico – e mesmo as variações puramente cosméticas que se colocam à escolha efectiva são cada vez mais insignificantes. Isto para não falar da honestidade das propostas. A boa “governança” é agora considerada uma questão sumamente técnica, que será até melhor deixar no essencial ao abrigo das tentações demagógicas dos políticos (autonomia dos bancos centrais, regulação económica por instituições internacionais, governo informal pela tecno-burocracia de serviço da grande finança). Nestas condições, o ritual eleitoral serve apenas para legitimação periódica do status quo. Caminhamos para aquilo que muitos chamam de “fascismo amigável” ou “democracia de baixa intensidade”.

A esta ofensiva neo-liberal, que é um movimento político e económico de pura agressão classista (dos de cima aos de baixo), aparece também associada uma reestruturação da organização produtiva, segundo os parâmetros do que se convencionou chamar produção ágil (lean production). É certo que, por coincidência histórica, esta reestruturação é concretamente suportada por uma vaga de inovações técnicas e científicas: uso industrial de computadores, circuitos integrados, robots e máquinas-ferramenta de controlo numérico, etc.. Embora os dois processos se tornem assim praticamente indestrinçáveis, é ainda assim importante sublinhar que são fenómenos autónomos. Na verdade, este novo modelo de organização produtiva, com todas as suas características fundamentais - redução de efectivos operários, polivalência e flexibilidade, aceleração dos ritmos, colaboração leal e “criativa” dos trabalhadores na busca de excelência na produção, subcontratação massiva de tarefas, ajustamento da produção à procura – é uma mera generalização do modelo “toyotista” que vigora no Japão pelo menos desde o final dos anos 1950, como resultado de uma derrota histórica dos trabalhadores japoneses no período de intensas lutas sociais que se seguiu à II Grande Guerra. Não é pois um produto inevitável do “progresso” técnico (como o querem alguns deterministas tecnológicos ingénuos) mas o resultado de uma concreta correlação de forças na luta de classes.

Sobrevindo numa era de expansão imperialista desbragada e sem peias (após a queda da União Soviética), esta ofensiva burguesa neo-liberal pôde acobertar-se sob a caução mítica de um outro embuste ideológico: a famigerada “globalização”. É a partir deste conceito nebuloso que as burguesias de todo o mundo podem seraficamente afirmar que é a contra-gosto que nos espoliam e espezinham cada vez mais, mas que a isso se vêm obrigadas por pressões competitivas externas irresistíveis, vindas de todo o lado. Eles não queriam… mas são forçados. “Não há alternativa”, dizia a baronesa de Downing Street. É o mito da globalização como uma espécie de fúria histórica irresistível, cega e impessoal, sem qualquer origem ou desígnio humano conhecidos.

É certo que, do ponto de vista do capitalista individual, as pressões competitivas são reais, delas resultando uma compulsão a alargar as margens de lucro por todos os meios, sob pena de ser posto fora de combate pelos rivais. Resulta daí uma poderosa tendência à perequação ascendente da taxa de exploração, que funciona com o rigor e a implacabilidade de uma lei objectiva. Mas quem defende e tira partido deste sistema económico e social tem que assumir como sendo de sua vontade livre tudo aquilo que resulta do seu funcionamento objectivo. Também aqui, a liberdade está na aceitação da necessidade. Desta necessidade, que assim se assume como sendo sua e própria.

Na verdade, a invocação da “globalização” nada mais é do que esconder a mão que nos aperta o pescoço. Em termos dos padrões gerais e da intensidade dos fluxos de comércio e investimento internacionais, não há nada de extraordinário a assinalar nas últimas décadas do século XX, em relação ao que sempre foi a tendência histórica expansionista e predadora do grande capital. Em períodos de paz, as exportações e o investimento externo crescem normalmente mais do que o produto mundial total. Há assim uma progressão regular no sentido de uma maior abertura e integração. É este movimento geral que prossegue actualmente, depois de se ter interrompido em 1914 para dar lugar a trinta anos de ajustes de contas entre potências imperialistas rivais, seguidos de um período de “guerra fria”. Só por volta do limiar da década de 70 se atingiu de novo o mesmo nível de integração na economia mundial que existia já em 1913. A partir daí, esse movimento prosseguiu normalmente, com particular vivacidade nos anos 90 (após um período de instabilidade e relativa estagnação entre 1973-91), mas sem qualquer salto qualitativo. De verdadeiramente espectacular há apenas, porventura, a emergência recente de formas muito agressivas de concentração e centralização capitalista internacional (fusões e tomadas hostis) e uma explosão sem precedentes da actividade especulativa com divisas e títulos financeiros.

O que há de efectivamente novo (e decisivo) é a política de diktat militar universal - também chamado de “nova ordem mundial” - em vigor desde a Guerra do Golfo de 1991 e que se transformou já, a partir dos atentados de 11 de Setembro de 2001, num estado de guerra permanente, declarada pelo directório imperialista norte-americano sobre todos os insurgentes e insubmissos à face da Terra. A globalização realmente existente é então esta “globalização armada” (na expressão de Claude Serfati), a relembrar-nos uma vez mais (a quem se deixou entretanto distrair pelas sereias da ideologia) que o sacrossanto mercado nunca foi uma entidade natural, mas sempre terreno desbravado e mantido manu militari.

É assim que se torna cada vez mais flagrante como a “mão invisível” de Adam Smith é afinal um manto bem diáfano, que mal serve para encobrir a nudez crua da pilhagem e do esbulho à mão armada, na qual todo o sistema repousa em última instância e aos quais ele não tem sequer pejo em recorrer abertamente, sempre que o julgue necessário. É assim em termos de relações de força pura, de violência sem peias – inclusive letal - que se tem de analisar a globalização neo-liberal. Esta não é mais do que a ocorrência de uma gigantesca ruptura na frente da luta de classes a nível mundial, com os episódios normais nestas circunstâncias: correrias cegas e incontroláveis, pânico, traição, rendições em massa, debandada, desmoralização.

Não há aliás qualquer solução de continuidade entre a luta nos campos militar, político e social. A impotência do meu sindicato perante uma nova imposição patronal começa a desenhar-se com a aprovação de um novo aumento do orçamento da Secretaria da Defesa dos E.U.A., que é na verdade o suporte e garantia de última instância do “consenso de Washington”. E o trajecto em sentido inverso é também bem real: a fracção acrescida da mais-valia por mim produzida que passa a ser apropriada pelo patrão (em consequência da derrota anterior) é mais um pequeno afluente que, juntamente com muitos outros, desagua por fim em caudal sempre acrescido no aparato repressivo e no complexo militar-industrial das grandes potências imperialistas. E assim se retoma o ciclo, com uma polarização social exponencialmente acrescida e libertando-se a espasmos regulares, como subproduto necessário, toda a ciclópica bestialidade do sistema: as cabeleiras roxas da raiva e o fedor dos cadáveres em decomposição.

Urge pois – sob pena de um colapso civilizacional completo - colmatar essa ruptura de frente na luta de classes, em toda a sua extensão, consolidar as suas linhas e procurar depois o ponto certo para criar uma brecha no campo inimigo. Acontece que, nesta guerra, as forças em confronto não são simétricas. Os “de baixo”, devido à sua inferior organização e coordenação de movimentos, podem ainda perder outras batalhas, mas têm por si uma profundidade de campo que lhes dá a certeza de que jamais perderão a guerra. Os “de cima” jogam a sua própria sobrevivência em cada novo confronto maior.

Os resultados sociais e económicos da ofensiva neo-liberal são efectivos, mas não isentos de ambiguidade. Se é verdade que há uma recuperação nítida da taxa de lucro (em grande parte à custa da recuperação do método arcaico do aumento da mais-valia absoluta), ela está muito longe de atingir os patamares dos anos 50 e inícios de 60. Por outro lado, o aumento das margens de lucro não se traduziu em crescimento económico e incremento da acumulação de capacidade produtiva nova. Na verdade, dos três grandes centros imperialistas, só os E.U.A. mostraram um crescimento sólido na década de 90, mas aqui muito à custa das encomendas militares e dos réditos puramente parasitários que lhe advêm especificamente devido à sua posição militarmente hegemónica: o curso mundial do dólar norte-americano; a qualidade de “refúgio” de segurança máxima para os “investidores” internacionais; extorsão de termos de comércio e investimento particularmente desequilibrados; participação leonina na grande agiotagem internacional, etc.. Mesmo para a pequena parte do crescimento norte-americano que se deveu a ganhos efectivos de produtividade, estes decorreram de progressos de investigação e desenvolvimento propiciados em grande parte pelo “roubo de cérebros” praticado um pouco por todo o mundo, o que é também resultado directo da sua posição imperial.

Mesmo deixando de parte certos delírios jornalísticos eufóricos (como os falavam da emergência explosiva de uma “nova economia” imune às flutuações cíclicas) a mais séria literatura apologética sobre a globalização assumia como certo que, com base em inovações técnicas historicamente marcantes (electrónica, informática, biotecnologias, etc.), numa nova organização produtiva e num novo arranjo institucional, se assistiria nos anos 90 à emergência de um nova onda longa expansionista. Essa era também aliás a opinião de certos analistas neo-marxistas ligados à escola da teoria da regulação, que nisso se juntam ainda aos crentes nos ciclos económicos longos propostos pelo economista russo Nikolai Kondratieff. As ondas longas de Kondratieff compõe-se de uma fase A, expansiva, e uma fase B, depressiva, ambas com durações entre os 22,5-30 anos. Ora a fase expansiva do pós-guerra encerrou-se já há bem mais de 30 anos (aí por volta de 1967-73), sem que se vislumbrem quaisquer sinais de nova onda longa, com a abertura de outra fase de expansão.

Na verdade, o investimento produtivo continua a dar sinais de fadiga crónica, com enormes massas de capital ocioso a tomarem refúgio nas bolhas de ar criadas pela infrene especulação financeira. As grandes corporações industriais mostram bastante mais interesse em colocar os seus lucros na “economia de casino” (onde há sempre oportunidades de ganho fácil, nomeadamente para iniciados) do que em reinvesti-los em novas capacidades produtivas, sobretudo quando tanta daquela que já possuem se mantém inutilizada. É certo que a bolha financeira parece, por agora, de algum modo consolidada, como resultado da contínua liberalização do crédito, medonhas trapaças contabilísticas e do efeito de sucção que Wall Street impõe aos capitais de todo o mundo (cujos movimentos foram desregulamentados). Mas em última análise isso constitui apenas um movimento de fuga em frente, subindo a parada. Algum dia o acerto de contas com a economia real terá enfim de se fazer, e de forma agravada.

A liberalização desregulada dos mercados financeiros mundiais não demoraria a evidenciar os seus efeitos catastróficos. Em 1994 sobreveio uma grave crise financeira no México, que se espalharia (pelo chamado “efeito tequilla”) para a Argentina, o Chile e o Brasil. Foi o pânico. Todo o sistema mundial de agiotagem esteve em sério risco de colapso. Em 1997-8, uma normal crise de sobre-acumulação provoca um descalabro nos mercados financeiros do Sudeste asiático (Tailândia, Malásia, Indonésia, Coreia do Sul), com sequelas na Rússia e no Brasil. Coagidos pelas criminosas receitas ortodoxas impostas pelo F.M.I. – diminuição das despesas públicas, aumento dos impostos e das taxas de juro – destinadas exclusivamente a salvaguardar a segurança dos credores externos, os países atingidos entram numa profunda depressão, com perda de largas dezenas de milhões de empregos. Vêm depois importantes recursos seus serem apropriados sem cerimónia pelo capital “abutre” internacional, sobretudo norte-americano, enquanto as suas populações laboriosas mergulham na miséria e destituição. Fazem-se então ouvir as primeiras vozes dissidentes do neo-liberalismo no pensamento económico burguês (George Soros, Joseph Stiglitz, Jeffrey Sachs). Em 2001 dá-se o colapso da Argentina, aluno exemplar do modelo neo-liberal. Este desastre financeiro pôde ser contido mas constituiu o sinal para uma viragem da burguesia sul-americana para posições mais independentes.

Maiores lucros, acumulação nula. A este paradoxo contemporâneo juntou-se ainda um outro, historicamente muito significativo: em qualquer período ou sociedade em que ocorra ainda assim alguma “retoma” da actividade económica, esta não se reflecte agora em novas ofertas de emprego. Pelo contrário, nos países capitalistas desenvolvidos, depois da “jobless recovery” (retoma sem novos empregos) passamos já à era da “job loss recovery” (retoma com contínua perda de empregos). Os níveis reais de desemprego existentes – 30% a nível mundial e rondando ou ultrapassando mesmo os 20% em certos países industrializados - são estruturais e consolidados, independentemente das fases do ciclo económico. Esta realidade nova gera a pauperização extrema, marginalização sem regresso e criminalização de largos segmentos populacionais. Doravante tem-se por adquirido e definitivo que, para este sistema económico e social, uma fracção crescente da humanidade é… excedentária. Na viragem do milénio, uma recessão prolongada assentou por fim arraiais em todos os pólos da tríade imperialista.

A nulidade dos resultados desta ofensiva burguesa - em termos da tão prometida dinamização da economia e crescimento de emprego - pôs a nu o seu carácter de pura rapina terrorista, de Robin dos Bosques invertido. A deterioração dos níveis de consumo e da qualidade de vida dos trabalhadores é evidente. A ratio entre o rendimento médio dos 20 % ricos e o dos 20% mais pobres do mundo passou de 30:1 em 1960 para 60:1 em 1990 e 74:1 em 1999, estimando-se que possa atingir os 100:1 em 2015. Apesar da enorme confusão ideológica e do desencanto generalizado com as propostas da “esquerda”, a consciência de que o grande capital procura simplesmente aumentar a sua fatia num bolo de crescimento estagnado começou a impor-se às grandes massas de assalariados.

Uma parte desproporcionada do fardo é suportado pelas mulheres, em empregos ultra-precários (feminizados), de fraca qualidade, por vezes em condições de semi-escravatura (“maquilladoras”, “sweatshops”) e numa muito maior sobrecarga de esforço nas tarefas que tradicionalmente lhe cabem na economia doméstica, em virtude da degradação ou inacessibilidade dos serviços sociais públicos correspondentes (infantários, hospitais, refeitórios, cuidado dos idosos, etc.), entregues à voragem do lucro. Pela primeira vez desde o pós-guerra, a perspectiva aberta aos jovens é a de viverem pior, com menos conforto, mais insegurança e com menos dignidade e auto-estima do que os seus próprios pais. Esta tomada de consciência alastrou rapidamente por todos os poros da sociedade como um rumor surdo, um trago engolido, um prenúncio de tempestades a vir.

O primeiro grande abalo social a detonar foram as greves massivas do sector público francês no Inverno de 1995. Há depois disso um tímido revigoramento do sindicalismo e do activismo laboral nos E.U.A., Europa e certos países do chamado Terceiro Mundo. O levantamento zapatista no estado mexicano de Chiapas - de 1994 a 1997 - bem como os importantes encontros e iniciativas promovidos pelos insurgentes, incendiaram a imaginação de muita gente. A mobilização cívica internacional de denúncia e oposição consegue fazer descarrilar o celerado projecto de Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), em finais de 1998, no que constituiu a primeira derrota séria dos “globalizadores” no campo da diplomacia económica internacional. A tenaz resistência do povo cubano ao cerco e bloqueio imperialistas são também, como sempre, fonte de estímulo e exaltação.

O forçado unanimismo em torno da perenidade dos valores demo-liberais e da economia de mercado começou também a estalar. Longe vão já os tempos em que o “fim da História” propalado por Francis Fukuyama ainda podia ser levado a sério. Mesmo fora das margens do marxismo (que entretanto se expandiram), começou a crescer um movimento intelectual que se convencionou chamar de “anti-capitalista”, embora o seu alcance seja geralmente um tanto mais ambíguo e limitado. O influente mensário francês ‘Le Monde Diplomatique’ expande-se, com base numa mensagem de combate ao “pensamento único” neo-liberal. O sociólogo francês Pierre Bourdieu destaca-se na denúncia do novo pauperismo e no combate ao totalitarismo mediático. O linguista norte-americano Noam Chomsky conhece uma nova vaga de popularidade na sua incansável actividade publicística de denúncia do imperialismo e do seu aparato de condicionamento ideológico. Novos autores sacodem o mercado com best-sellers contra o neo-liberalismo, como é o caso de Vivianne Forrester, Michael Moore, George Monbiot ou Naomi Klein. Também no cinema europeu há uma nova vaga de realismo social. Surgem vozes abertamente contestatárias entre as vedetas da intelectualidade cosmopolita, como Toni Negri, Slavoj Zizek ou mesmo Jacques Derrida.

Académicos, ensaístas e activistas como Michel Chossudovky, Eric Toussaint, Susan George, François Chesnais, Bernard Cassen, Michel Husson, Ralph Nader, Martin Khor, Anuradha Mittal, José Bové, Vandana Shiva ou Walden Bello denunciam as depredações das grandes multinacionais ou combatem as infames conspiratas nos bastidores das negociações internacionais de comércio e investimento. Cria-se uma densa teia de associações e organizações não-governamentais (ONG’s) de vigilância, denúncia e combate à globalização neo-liberal, merecendo aqui destaque os movimentos Jubileu 2000 (pelo cancelamento da dívida do Terceiro Mundo), 50 Years is Enough (contra as políticas do F.M.I./Banco Mundial), Global Exchange (por um comércio justo), Students Against Sweatshops, Indymedia, ATTAC, Focus on the Global South, Marcha Mundial das Mulheres, Greenpeace, Via Campesina, etc., etc.. No campo da cultura popular, sugem fenómenos - como o grupo rock Rage Against the Machine, com a sua mensagem anti-burguesa e revolucionária - criadores de novas sub-culturas juvenis de protesto e insubmissão. A internet proporciona uma via de debate amplo e de mobilização alargada, que pode ser ainda desdobrada pelo SMS dos operadores de telemóveis. Há uma vibração nova no ar e muita sede de acção entre ao mais jovens.

E, de súbito, todos estes diversificados afluentes convergem num acontecimento único. A 30 de Novembro de 1999, na cidade norte-americana de Seattle, 70.000 manifestantes conseguiram perturbar seriamente os trabalhos de uma reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (O.M.C.). Encorajados pelo ambiente gerado, os delegados do Terceiro Mundo recusaram os termos leoninos que aí lhes procuravam impor, terminando a reunião num fracasso total. A partir daqui, numa sequência impressionante, as demonstrações de protesto e os confrontos são constantes, em praticamente todas as cimeiras imperialistas e reuniões dos areópagos da grande finança internacional. Para só mencionar os eventos mais marcantes, tivemos Washington em 16 de Abril de 2000; Melbourne em 11 e Praga a 26 de Setembro do mesmo ano; Seul a 10 de Outubro seguinte; Nice a 6-7 de Dezembro; Nápoles em 18 de Março de 2001; Buenos Aires a 6-7 e Quebec a 20-21 de Abril seguinte; Gotemburgo em 14-16 e Barcelona (reunião do Banco Mundial anulada) a 24 de Junho. Em 20-21 de Julho de 2001, um novo marco foi criado com as gigantescas manifestações de Génova, por ocasião de uma cimeira do G7(8). Após provocações e assaltos policiais de uma violência inaudita (que causaram a primeira vítima mortal do movimento, o jovem Carlo Giuliani), a manifestação final destas jornadas juntou 350.000 pessoas. A marcha pacífica dos zapatistas pela dignidade indígena terminou com uma gigantesca manifestação no Zócalo da cidade do México, a 11 de Março de 2001.

Depois dos atentados de Nova Iorque e Washington, em 11 de Setembro de 2001 - e da histeria “anti-terrorista” que se lhe seguiu - o movimento pareceu perder momentaneamente algum vigor. Protestos em Washington contra a reunião anual do F.M.I./Banco Mundial foram cancelados e a O.M.C. conseguiu em Doha (Qatar) relançar a ronda de “negociações” que havia ficado bloqueada em Seattle. Manifestações com algumas dezenas de milhares de participantes realizaram-se ainda assim em Bruxelas (14 de Dezembro de 2001) e Nova Iorque (2 de Fevereiro de 2002). A 16 de Março de 2002, em Barcelona, seriam já 500.000 a marchar contra a Europa do capital e da guerra. A fusão da luta por maior justiça social com a luta pela paz criou uma oportunidade para fazer avançar e aprofundar o nível de consciencialização política do movimento, encaminhando-o para uma atitude mais consistentemente anti-capitalista. Houve depois, ainda nesse ano de 2002, novamente grandes - por vezes gigantescas - manifestações em Monterrey (18-22 de Março), Washington (20 de Abril), Madrid (19 de Maio), Sevilha (22 de Junho), Joanesburgo (31 de Agosto) e Florença (um milhão desfilou, a 9 de Novembro, contra o neo-liberalismo, a guerra e o racismo). Sem esquecer a tomada de Quito, em 31 de Outubro, contra a ameaça do tratado Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).

As jornadas de 15 de Fevereiro de 2003, contra a agressão e pilhagem do Iraque, então em preparação, são um momento cimeiro na história contemporânea. Cerca de 15 milhões de pessoas saíram às ruas em denúncia cívica e protesto contra este crime imundo e sua cínica encenação justificativa. Uma imensa “ola” planetária com início na Nova Zelândia percorreu todos os fusos horários no sentido Nascente-Poente, com pontos altos em Londres, Roma e Madrid. Desde então, sabe-se que há uma outra globalização, não só possível, mas já em marcha. Nesse mesmo ano de 2003, para além de muitas outras manifestações especificamente anti-guerra (como a gigantesca “recepção” a George W. Bush em Londres, a 20 de Novembro), outros desfiles de relevo contra a globalização neo-liberal realizaram-se em Genebra/Lausanne (1-3 de Junho), Salónica (21 de Junho), Cancún (10-14 de Setembro, onde novamente uma reunião ministerial da O.M.C. terminou em total impasse), Roma (4 de Outubro), Paris (15 de Novembro) e Miami (20-21 de Novembro).

Além dos protestos e manifestações, o movimento dito anti-globalização criou a sua própria sede institucional, com a realização anual do Fórum Social Mundial (F.S.M.) na cidade brasileira de Porto Alegre. Infelizmente, a iniciativa parece ter sido sequestrada por um grupo de intelectuais (a cúpula francesa do ATTAC em aliança com sectores dirigentes do PT brasileiro) que, sob a justificação da necessidade de conferir ao movimento um carácter responsável e gerador de propostas construtivas, se esforça por lhe conferir um alcance reformista e contemporizador com a ordem imperialista vigente. A “Carta de Princípios” do F.S.M. rejeita de forma arbitrária a participação nele de organizações políticas ou armadas, dando-se primazia aos “movimentos sociais” e, dentre estes, ao modelo ideal “cívico” da ONG. Ora, estas organizações têm-se revelado extremamente permeáveis (pela via do financiamento) à influência de governos e dos grandes conglomerados capitalistas.

A primeira edição do F.S.M. foi em Janeiro de 2001 e teve cerca de 20.000 participantes (4.700 delegados). A edição seguinte realizou-se de 1 a 5 de Fevereiro de 2002 e foi bastante mais concorrida, com cerca de 50.000 participantes (12.274 delegados). A declaração de objectivos (Convocatória dos Movimentos Sociais) aprovada neste II Fórum fica-se por um reformismo frouxo, moderado e defensivo, num documento aliás vago e não sistematizado: a milagrosa taxa Tobin, claro; abolição da dívida do Terceiro Mundo; não aos paraísos fiscais; contra a guerra, o militarismo e as bases militares no estrangeiro; contra a flexibilização laboral, a sub-contratação e os despedimentos; pela regulamentação e contratação colectiva internacional do emprego nas corporações multinacionais; pela educação pública e gratuita; contra o serviço militar obrigatório; pela auto-determinação dos povos indígenas; não aos organismos geneticamente modificados; recusa das patentes sobre organismos vivos; algumas generalidades mais.

O III F.S.M., realizado novamente em Porto Alegre, de 23 a 28 de Janeiro de 2003, foi marcado por um crescimento muito acentuado: cerca de 100.000 participantes, dos quais 20.763 delegados de 130 países, divididos por 1.286 oficinas. Mas o apelo final saído deste encontro é decepcionante. Duro contra a guerra, a OMC e os tratados de “livre comércio” em preparação; claro ao propor novamente o cancelamento total e incondicional da dívida do Terceiro Mundo; nada progride porém quanto à definição de outros objectivos, limitando-se a remeter para a declaração do ano transacto. Subsistem problemas a resolver quanto à transparência e representatividade na escolha da composição e no funcionamento do Conselho Internacional (que é o órgão permanente do F.S.M., responsável, além do mais, por formular a sua estratégia), dos Comités Organizadores dos diversos fóruns e agora de um novo órgão criado com o nome de “Grupo de Contacto”. O informalismo optimista, o credo espontaneísta e um método decisório por consenso não directivo (consagrados na “Carta de Princípios”) facilitam a criação e manutenção de situações pouco claras. Como o sabe de sobejo quem tem experiência de participação em reuniões e associações de cariz anti-autoritário, as decisões que aí se tomam são geralmente cozinhadas nos bastidores, adoptadas de forma não democrática e não há quaisquer mecanismos de controlo e responsabilização dos manipuladores.

A partir da realização do II F.S.M., o movimento desdobrou-se com a realização ou planeamento de vários fóruns sociais regionais (Europeu, Américas, Asiático, Africano, Mediterrânico e pan-amazónico), nacionais e também temáticos. Os F.S.M. temáticos realizados até hoje foram ‘Argentina’, Buenos Aires, 22-24 Agosto 2002; ‘Palestina’, Ramallah, 27-30 Dezembro 2002 e ‘Narcotráfico, Democracia, Guerras e Direitos Humanos’ em Cartagena das Índias (Colômbia) de 16 a 20 de Junho de 2003. Realizou-se já um grande número de fóruns nacionais, incluindo o português que ocorreu na Cidade Universitária de Lisboa de 7 a 10 de Junho de 2003, com alguma controvérsia e sem chegar ao necessário consenso quanto à marcação de qualquer encontro de sequência.

O IV F.S.M. realizou-se pela primeira vez fora de Porto Alegre (aonde regressará aliás em 2005), na gigantesca metrópole indiana de Mumbai (ex-Bombaim), de 16 a 21 de Janeiro de 2004. O nível de participação manteve-se à volta dos 100.000, mas o tom e o ambiente geral foram muito diversos. A organização dos painéis e oficinas de discussão foi um pouco mais descuidada, verificando-se uma irrupção imparável das massas populares no próprio centro do evento. As associações de defesa dos dalits (intocáveis) e organizações políticas revolucionárias indianas marcaram presença. E pela primeira vez surgiu também uma “rede” - o grupo Mumbai Resistance 2004 - que resolveu desafiar abertamente a política de consensos moles promovida pela cúpula do F.S.M., propondo uma agenda radicalizada de mobilização e de luta. É inesquecível o grito de guerra lançado pela escritora Arundhati Roy. Está agora claramente em gestação uma “esquerda de Porto Alegre”, que ainda necessita porém de se armar com uma plataforma clara para um confronto aberto e frontal com a ordem imperialista global.

Este movimento social dito anti-globalização ou por uma globalização alternativa é, naturalmente, um saco com muitos gatos. Nele se encontram ecologistas de todas as estirpes (dos sociais aos conservacionistas “profundos”), camponeses do Terceiro Mundo e agricultores europeus ultra-subsidiados, activistas laborais radicais e burocratas sindicais, feministas, associações de desempregados ou de apoio a imigrantes em situação irregular, anti-racistas, nacionalistas de povos periféricos, representantes de povos indígenas, localistas, activistas de ONG’s dedicadas ao desenvolvimento sustentável, pacifistas, neo-hippies, autonomistas (como os conspícuos tute bianchi), anarquistas enragés (o famoso ‘Black Bloc’, tantas vezes infiltrado por provocadores policiais), comunistas de todas tradições e seitas em actividade, católicos progressistas (ou simplesmente condoídos), académicos e intelectuais reformistas, sociais-democratas de carreira, etc., etc. Entre os patrocinadores recorrentes do F.S.M. há entidades tão pouco confiáveis como a Petrobrás, a Fundação Banco do Brasil e a Fundação Ford.

Eis pois um movimento em arco-íris, tão ao gosto de certos teóricos da pós-modernidade. Mais porém do que a diversidade dos seus componentes (o que pode até vir a ser um elemento enriquecedor), o que paralisa o movimento “anti-globalização” é a falta de uma perspectiva estratégica clara. É isso que o torna refém dos intelectuais reformistas mais mediáticos e, amanhã, poderá conduzir à sua completa recuperação por uma social-democracia renascida. Na verdade, o facto de o movimento ser tão diversificado é afinal testemunho indirecto de quão confiante se encontra a grande burguesia imperialista. Ela permite-se descurar completamente qualquer política de alianças, alienando todas as restantes classes e camadas sociais - salvo as elites intermediárias e mercantis do Terceiro Mundo, “compradoras”, na deliciosa terminologia de origem portuguesa -, confiante de que estas nunca encontrarão entre si uma plataforma comum de entendimento capaz de desafiar o seu poder solitário e irrestrito.

Na verdade, no seio do movimento dito anti-globalização os equívocos e as contradições inconciliáveis são numerosos. Por exemplo, a burocracia sindical e a aristocracia operária dos países capitalistas ricos mantêm a sua orientação social-imperialista de sempre: garantir prebendas e honrarias para si próprios e algumas migalhas de privilégio aos seus associados, tudo à custa da sobre-exploração dos países da periferia. O que os aproxima agora (cautelosamente) do movimento “anti-globalização” é o facto de estarem agastados com a sua própria burguesia, desde que esta resolveu dispensar sumariamente o seu “partenariado”. Reclamam – além de variados arranjos de interesse material directo e exclusivo para as suas burocracias - medidas proteccionistas da indústria dos países imperialistas (sob a capa de cláusulas sociais, ecológicas e outras) e contra as deslocalizações de unidades industriais para os países onde se praticam mais baixos salários.

Ora, estes interesses estão directamente em oposição aos da burguesia nacional dos países periféricos (que se integra igualmente no movimento, ao contrário da facção rentista e “compradora”), que quer naturalmente garantir acesso aos mercados ricos para os seus produtos, ou mesmo fazer nos seus países “joint-ventures” e acordos de investimento variados com o capital imperialista. Mas opõem-se também, ainda que indirectamente, aos interesses do proletariado e das imensas massas urbanas semi-ocupadas desses mesmos países periféricos (que são, naturalmente, a imensa maioria da classe trabalhadora mundial), a quem o proteccionismo dos países ricos nega o acesso aos benefícios da industrialização. A burguesia imperialista, essa, está naturalmente na melhor posição para retirar deleite (e proveito) destas desavenças.

O F.S.M. pode escolher não ver ou mesmo negar a existência de conflitos de interesses no seu seio, mantendo assim a sua regra de nada votar e nada decidir, bem como o seu amado consenso contestatário de fachada entre todos os “cidadãos” conscientes e de boa vontade. Fá-lo-á, porém, ao preço de jamais poder contrapor ao modelo neo-liberal um projecto de transformação sólido e uma alternativa clara e coerente de desenvolvimento económico-social para o planeta. Ora, uma organização que, devido aos seus equívocos princípios e compromissos, “empata” indefinidamente forças consideráveis que poderiam doutro modo ser mobilizadas para a contestação viva e a luta revolucionária, terá cedo ou tarde de responder historicamente pelo seu papel conservador.

Este optimismo histórico da burguesia - a confiança em que não existe alternativa ao seu poder - é a sua força, de momento, mas também a sua cegueira. Nós, comunistas, sabemos que existe essa alternativa. Ela consiste na tomada do poder pela classe produtora directa, abrindo o caminho a uma via histórica que conduzirá à dissolução de todas as classes sociais. Para isso há, antes do mais, de lutar pela unidade dessa mesma classe produtora, com base numa comum representação dos seus interesses, bem como numa identidade social e numa cultura de luta partilhadas. A luta pela unidade da classe trabalhadora nunca foi fácil, mas hoje que a questão se coloca a nível global – e com os abismos que o imperialismo cavou em termos de desenvolvimento desigual e de níveis de produtividade desnivelados – é verdadeiramente uma tarefa gigantesca, provavelmente só ao alcance do trabalho constante e cumulativo de duas ou mais gerações.

Para lhe dar início temos uma tradição e um conjunto de valores que são a carne e a memória viva do movimento operário desde o segundo quartel do século XIX. Precisamos agora de os concretizar e pôr em acto politicamente, numa plataforma de propostas e de mobilização que responda aos desafios do nosso tempo, que é efectivamente o tempo da nossa própria globalização. O tempo em que todo o mundo do trabalho se reencontra consigo próprio e se acha finalmente uno e solidário na sua diversidade. O nosso problema hoje não tem já como ponto de partida a nação, nem com o achar-se para ela uma via original de desenvolvimento rumo ao socialismo que convirja depois com a via que outras nações irmãs tomem também, independente e autonomamente. Esse horizonte do “socialismo com as cores da França” (ou, mais ainda, do pequeno Portugal) está hoje irremediavelmente ultrapassado pela escala de acumulação e pelo grau de interdependência atingidos pela economia capitalista global, aos quais nos é hoje impossível furtar-nos com um movimento de retracção autárcico.

A análise, propostas e intervenção política dos comunistas requerem-se assim hoje directamente no plano mundial, para depois se reflectirem, de forma diferenciada mas coerente (articulada), na acção e propostas que se farão também ao nível nacional e/ou regional, que é aliás obviamente o único nível em que se pode tomar ou influenciar o poder. Assim nos reencontramos afinal com a visão original dos fundadores do marxismo, que era a de um internacionalismo de classe pela base, não mediado pela interposição de aparatos estatais. A perspectiva mundial é, por outro lado, a única que nos pode defender eficazmente de escorregar nas ciladas reformistas e oportunistas que despontarão sempre a cada esquina numa opção de luta proletária cingida ao espaço europeu (ou outro espaço imperialista).

Ao esboçar aqui algumas linhas programáticas próprias dos comunistas no plano global não se pretende proclamarmo-nos “mais de esquerda” que o grosso dos activistas do movimento, num arroubo sectário da mais vã arrogância. Trata-se antes de procurar pôr alguma ordem e coerência sistemática na confusão indescritível que existe nas propostas avulsas que vão emergindo das fileiras da “anti(alter)-globalização” para, dentro delas (mas não de forma subordinada), reivindicar o ponto de vista comunista, no duplo sentido em que Marx e Engels o definiram no ‘Manifesto’:

“Os comunistas diferenciam-se dos demais partidos proletários apenas porque, por um lado, nas diferentes lutas nacionais dos proletários acentuam e fazem valer os interesses comuns, independentes da nacionalidade, do proletariado na sua totalidade, e porque, por outro lado, nas várias fases de desenvolvimento que a luta entre o proletariado e a burguesia percorre, representam sempre o interesse do movimento global.”

Um “movimento de movimentos” pode ser um excelente caldo para a emergência de novas ideias ou para recrutar e temperar na luta novos militantes. Mas nesta fase em que se trata apenas de uma confederação de descontentamentos variados e díspares, não há qualquer garantia de que se possa constituir por si mesmo num sujeito histórico com uma intervenção transformadora activa e coerente. Há pois que construir no seu seio, sem demora, uma plataforma unida e coerente, que possa ir à luta e suportar os choques sem se pulverizar de imediato em milhentas flatulências, cobardias e venalidades. Esse esforço não visará de modo algum uma cisão, pois que o que importa neste momento é, precisamente, tentar salvar o projecto na sua íntegra (ou quase) para a possibilidade da sua constituição numa alternativa global de poder e direcção social.

Os objectivos aqui expostos colocam-se no plano mundial. Nesse sentido, servem de guia para a acção estratégica das organizações políticas nacionais e regionais. Mas isso não quer dizer que tenham de se traduzir, desde logo e literalmente, em medidas unilaterais a adoptar a este nível por essas organizações uma vez chegadas ao poder. Por exemplo, o objectivo 1 não tem que traduzir-se numa abertura de fronteiras imediata e irrestrita - em Portugal, digamos - o que poderia criar fluxos descontrolados e efeitos perversos difíceis de controlar. O cumprimento dos objectivos mundiais por via das medidas políticas concretas a adoptar a nível nacional e regional será um processo ponderado e internacionalmente coordenado. Sem traições oportunistas mas também sem voluntarismos geograficamente desequilibradores.

Feita esta ressalva, o que apresentamos aqui são reivindicações imediatas a efectuar desde já sobre e contra o poder burguês (imperialista) actual. Nesse sentido, é um programa “mínimo” na linguagem de outrora. Não são ainda os objectivos estratégicos e finais da luta comunista. Porém, também não se trata de simples panaceias e remedeios. A amplitude e profundidade das medidas propostas entra em choque frontal com a lógica de funcionamento do “sistema-mundo” capitalista, pelo que elas só podem ser encaradas no âmbito de um processo histórico que desencadeie uma ruptura revolucionária, com acessão ao poder do proletariado organizado e seus aliados, a Norte como a Sul.

Se isso é verdade, são ainda assim objectivos que - pela sua simplicidade, equidade e carácter concreto - serão certamente capazes de mobilizar largas camadas de activistas que não têm, à partida, uma convicção formada sobre a necessidade dessa ruptura com a ordem social vigente. Militantes e activistas que apenas querem combater os “excessos” do capitalismo - por sentido de justiça ou num vago espírito de solidariedade para com os deserdados da Terra - poderão, pela experiência concreta na luta por estes objectivos limitados, chegar por si mesmos à conclusão que o “excesso” é afinal o próprio capitalismo em si. Que nada se conseguirá de efectivo e consolidado, em termos de progresso social e dignidade humana, sem o derrube da ordem burguesa no seu todo.

Para quem quer mudança efectiva, ser radical não é uma simples opção. Se realmente “um outro mundo é possível”, ele só começará a emergir quando se expuser à luz do dia a raiz descarnada do velho mundo: a exploração capitalista no local de produção. Estamos hoje em condições de provar a dezenas de milhares de jovens activistas (que podem amanhã enquadrar na luta centenas de milhões de trabalhadores) que o capitalismo é totalmente incompatível com os níveis mais elementares de simples decência humana. Não o conseguiremos, porém, apenas com discursos abstractos sobre a mais-valia ou a missão histórica da classe operária. Com paciência e humildade revolucionárias, teremos que percorrer com estes activistas “anti-globalização” os caminhos da luta concreta. Ela será a sua e a nossa universidade. É nela que eles aprenderão (e nós reaprenderemos concretamente) que outro mundo possível é esse e com quem é que será possível construí-lo. Essa será a via real para a reconstituição do partido emancipador do proletariado.

Este partido a reconstituir é um partido mundial. Partido em sentido lato, de base informal, sem qualquer pretensão a conter um qualquer directório revolucionário universal. É esse partido – como visão do mundo, projecto transformador e um lado claramente definido numa luta que se trava a nível mundial - que deve ser reconstituído. Com isto não estou de forma alguma a apoiar uma ordem de dissolução aos partidos nacionais que se formaram na tradição da III Internacional. Muitos destes partidos sofreram processos de degenerescência reformista, definhamento sectário ou ambos. Alguns há, porém, que se mantêm como organizações de massas com uma independência e identidade operária profundamente marcadas. Há mesmo uma revolução – em Cuba - que mostra ainda hoje, miraculosamente, sinais de vida. Há alguns outros partidos comunistas que se mantêm no poder após um prolongado período de revisionismo deslizante que os levou já para bastante longe dos seus objectivos mas que constituem, ainda assim, importantes barragens contra a ofensiva imperialista desagregadora dos seus projectos nacionais. Pretender dissolver desde já todos estes partidos num “movimentismo” ainda informe e sem rumo certo releva a mais pura estultícia ou má-fé.

A vaga revolucionária do século XX, iniciada com a tomada do Palácio de Inverno, está hoje naturalmente exaurida e em refluxo. De muitas maneiras, porém, deixou o terreno bem fecundado para a vaga seguinte. E por outro lado - como sabe bem quem já gastou algum tempo a observar a beira-mar - nem sempre uma vaga tem tempo de completar o seu refluxo, antes de ser interceptada e ver elementos seus serem transportados pela vaga seguinte. O comunismo precisa de se renovar, sem dúvida. Ponto é que a renovação se faça por quem percorra a via ascendente, na crista da onda do desejo emancipatório do proletariado universal; não por quem siga ainda pela via descendente, a passo acelerado ou mesmo já em franca debandada. Ponto é também que os partidos comunistas existentes (“refundados” ou não) saibam e possam reconhecer a vaga ascendente, captá-la, deixar-se enformar por ela com generosidade e confiança, de modo a poder assim estar em condições de participar activamente no novo curso histórico.

Eis então o que são, na minha perspectiva pessoal, os objectivos imediatos dos comunistas:

1. Movimentação livre e irrestrita em todo o mundo de pessoas que procurem colocar em melhores condições a sua oferta de trabalho; os trabalhadores imigrantes terão plena liberdade associativa e os mesmos direitos cívicos e económicos que os autóctones, sendo-lhes facultada a opção da adopção da nacionalidade do país receptor após um período de residência ininterrupta de cinco a dez anos.

2. Abolição de todas as barreiras comerciais proteccionistas nos países imperialistas (grosso modo, os países da actual OCDE); os países e regiões periféricos poderão manter as barreiras alfandegárias e as medidas reguladoras não-tarifárias que se revelem úteis e adequadas à garantia da sua auto-suficiência alimentar, à prossecução da sua estratégia de industrialização e à consolidação do seu sector terciário.

3. Os investimentos directos externos das grandes empresas transnacionais ficarão sujeitos à aprovação da autoridade pública dos países ou regiões destinatários, devendo integrar-se harmoniosamente, de forma subordinada, no plano de desenvolvimento que estes decidam democraticamente prosseguir; sendo tais investimentos feitos em países periféricos ocorrerão obrigatoriamente no âmbito de acordos que prevejam transferências de tecnologia, restrições à repatriação de lucros (com fiscalização efectiva da contabilidade) e modalidades de resgate pela nação hóspede.

4. Fim imediato das subvenções públicas ou isenções fiscais às exportações agrícolas e industriais nos países da OCDE; os subsídios à produção agrícola serão cancelados sempre que se demonstrar que produzem efeito de “dumping”, prejudicando a produção local nas nações mais carenciadas.

5. Cancelamento imediato de toda a dívida pública e semi-pública dos países periféricos; interdição de todos os “empréstimos”, de origem pública ou privada, a Estados de nações periféricas.

6. Fim do segredo bancário e dos “paraísos” fiscais.

7. Proibição de todas as transacções especulativas de divisas; restrições e tributação severa às movimentações especulativas nos mercados de capitais, particularmente agravadas nos movimentos internacionais de curto prazo.

8. Contratação colectiva e segurança social mínima para todos os trabalhadores; proibição dos despedimentos em empresas com resultados anuais sólidos - os prevaricadores estarão sujeitos a expropriação pública.

9. Horário legal de trabalho de 30 horas semanais, sem perda de vencimento, em todos os países da OCDE; partilha de empregos e programas de formação profissional para desempregados de longa duração; criação de agências de orientação vocacional para enriquecimento dos tempos livres, privilegiando-se a orientação para o trabalho de solidariedade e a formação com vista à participação nas decisões políticas e económicas a todos os níveis.

10. Controlo de gestão nas grandes e médias empresas capitalistas por organismos representativos dos trabalhadores, dos consumidores e de interesses públicos difusos que possam ser afectados pela sua actividade (ambiente, património, saúde pública, etc.); expropriação pública imediata de todas as empresas que usem reiteradamente práticas danosas ou abusem de posições monopolistas.

11. Sistemas fiscais recentrados nos impostos directos sobre os rendimentos com taxas progressivas e combate efectivo à evasão fiscal.

12. Rendimento mínimo garantido para toda a população adulta, a um nível que garanta a satisfação das necessidades elementares socialmente reconhecidas no seu ambiente geográfico e cultural.

13. Serviços públicos de qualidade, de base nacional ou regional, na distribuição de energia, água, saneamento básico, telecomunicações, saúde, educação, banca, seguros, rádio-televisão, imprensa escrita, edição, cultura e espectáculos, internet, correios, habitação, transportes, distribuição e comércio de produtos de consumo essenciais.

14. Reforma e reestruturação radical do sector bancário, com o perdão imediato de toda a dívida relativa a aquisição de habitação própria ou pequenas despesas de consumo.

15. Abolição das patentes e do direito patrimonial de autor; os criadores e inovadores serão remunerados por fundos públicos, de forma proporcional ao interesse público despertado pelas suas obras.

16. Regulamentação restritiva do uso de marcas comerciais e limitações severas (em conteúdo e amplitude das campanhas) à publicidade, que deverá limitar-se a oferecer informações fiáveis sobre os produtos, divulgando de forma honesta e sóbria as suas características diferenciadoras.

17. Radical democratização dos meios de comunicação social, retirando-os do controlo das grandes corporações multinacionais e da dependência de compromissos comerciais, entregando-os a grupos de profissionais associados, colectividades locais ou autoridades públicas democráticas; garantir a todas as regiões e comunidades do mundo um acesso nivelado a meios adequados ao exercício do direito de informar e ser informado de forma honesta e profissional, com qualidade e respeito pela identidade e sensibilidade cultural próprias; massificação global do uso da internet.

18. Extinção imediata do F.M.I., Banco Mundial, Banco de Pagamentos Internacionais, O.M.C., G7(8), O.C.D.E., N.A.T.O., Conselho de Segurança da O.N.U., Comissão Trilateral, Fórum Económico Mundial e outros directórios imperialistas formais ou informais, mundiais ou regionais.

19. Proibição e desactivação de todas as armas de destruição maciça (nucleares, químicas e biológicas), dos mísseis balísticos e de cruzeiro, de todos os satélites militares, dos veículos blindados terrestres, da artilharia de longo alcance, bem como de toda a aviação e marinha de guerra; gigantesco programa de reconversão da indústria militar para fins de utilidade social reconhecida.

20. Desmantelamento de todas as agências internacionais de espionagem e “segurança” – sejam eles estatais ou privadas, de carácter político-militar ou comercial - com publicação de todos seus memorandos e relatórios secretos.

21. Criação, no âmbito mundial e suportada por substanciais contribuições a cargo dos países mais ricos, de uma grande agência responsável pelo financiamento a fundo perdido de projectos de desenvolvimento nos países e regiões periféricos; os Estados das nações menos desenvolvidos serão encorajados a prosseguir uma estratégia centrípeta de solidariedade e integração progressivas, a nível regional, com base num processo autónomo e auto-centrado de acumulação de riqueza e fixação dos recursos.

22. Criação de um sistema mundial de garantia de preços para o comércio internacional de matérias-primas e produtos agrícolas não transformados.

23. Gigantesco esforço público internacional de investigação de alternativas energéticas - renováveis e não poluentes - aos combustíveis fósseis, com o seu debate e decisão democráticos.

24. Criação de um serviço mundial massivo de saúde pública e educação sanitária e outro de alfabetização e treino vocacional elementar.

25. Proibição de todas as formas de opressão e descriminação contra a mulher, acompanhada de medidas positivas de promoção do seu estatuto social e económico.

26. Reforma agrária democrática, assegurando o acesso à terra aos camponeses que desejem continuar a sê-lo, com apoio técnico e financeiro eficaz, garantindo-se em todo o mundo a segurança e a auto-suficiência alimentares ao nível nacional e/ou regional, com preservação da biodiversidade e da integridade do património natural.

Omitem-se aqui as questões de organização política e administrativa, as quais serão certamente decididas, face a circunstâncias muito concretas e imprevisíveis, pela criatividade histórica dos produtores associados e dos povos em movimento, não sendo sequer seguro que obedeçam a um padrão uniforme. O que é certo é que serão formas de muito maior densidade democrática, com um nível muito superior de participação esclarecida.

Sim, este mundo é possível. É-o até a bem mais curto prazo do que nos querem fazer crer os ideólogos estipendiados, com cátedra e tribuna. É evidente, porém, que para lá chegarmos é necessária uma radical alteração da correlação de forças na luta de classes à escala global. Temos primeiro de recompor as nossas linhas - com um trabalho paciente e tenaz de organização e coordenação defensiva - de modo a suster efectivamente a ofensiva burguesa neo-liberal. Depois, há que partir para a ofensiva, de modo concertado, com audácia e decisão. Ora, nenhuma iniciativa ofensiva será possível, no campo proletário, sem uma renovação aprofundada dos seus objectivos estratégicos, que o mesmo é dizer dos seus horizontes teóricos. Neste momento inicial, esse trabalho passará necessariamente por uma fase de um certo visionarismo ingénuo. Só depois, com a experiência da luta e mediante a dialéctica da praxis, assistiremos à sua consolidação e desenvolvimento numa base científica. Uma maior pormenorização, articulação integrada e detalhe técnico das propostas serão então possíveis, com a intervenção de grupos de estudo internacionais e multidisciplinares.

Este outro mundo em vivemos presentemente é que é um mundo radicalmente impossível, sendo inviável a sua manutenção por muito mais tempo. Agora que este facto começa a impor-se irrecusavelmente a todas as consciências despertas, é pois tanto mais urgente iniciar - entre comunistas e outros democratas radicais - o debate das questões que tentei abordar neste escrito, correndo com isso conscientemente o risco de parecer despropositadamente megalómano. Contudo, se a cozinheira imaginada por Lenine podia mover com segurança as alavancas do Estado, não poderemos nós - operários à peça, mulheres a dias, trabalhadores precários, técnicos sem emprego, imigrantes sem papéis, camponeses sem terra, povos sem esperança - não poderemos nós, comunistas, dizer que outro mundo afinal é esse que clamamos nas ruas ser possível e que queremos ver nascer pela força do nosso braço?

O trabalho que temos perante nós é imenso, tremendamente exigente, mas é absolutamente irrecusável. E temos que começar já, sem mais um minuto de espera ou hesitação.

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Fevereiro de 2004
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