Novos rumos do comunismo

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Numa altura em que ainda estava fresco na memória do mundo o fragor da queda da casa “soviética”, um número da revista francesa ‘Magazine Littéraire’ publicou uma curiosa caricatura, mostrando um Karl Marx meditabundo e cabisbaixo, às voltas no seu gabinete, pensando com os seus botões: “Il a dû se glisser une erreur quelque part...” (devo ter deixado escapar um erro algures). Fotocopiei a caricatura e coloquei-a junto a uma estante de livros (precisamente a reservada aos fundadores do marxismo, Marx e Engels). Está ali como um lembrete irónico de como será sempre vã a pretensão de abraçar todo o mundo com o poder do pensamento, ou do amor, ou do que quer que seja humano, simples e demasiadamente humano.

Na verdade, entre comunistas, a avaliação crítica da experiência soviética (ou, em geral, de todo o ciclo revolucionário do século XX), tem vindo a fazer-se, muito cautelosamente, por etapas arqueológicas sucessivas. Está-se ainda como que à procura do “desvio” funesto que terá interrompido a caminhada gloriosa para os novos horizontes prometidos. À medida que se aprofunda a análise crítica, a culpa vai sendo empurrada sempre cada vez mais para o passado. Para uns foi Gorbatchov e a traição da sua “perestroika”, não há mais que ver; para outros foi a estagnação brejneviana; ou o revisionismo de Krutchev; para uns foi o Estaline do “socialismo num só país” (ou da linha da “Frente Popular”, que era a sua expressão lógica no campo da política externa) e de “os quadros decidem tudo”; enfim, alguns consideram que Lénine também cometeu os seus erros, etc., etc.. Pois bem, o último livro de Tom Thomas, ‘Karl Marx et la transition au communisme’ (Albatroz, Paris, 2000), retraça as origens do desastre até ao grande profeta barbudo ele mesmo. Voilá!

Já no seu livro ‘Partager le travail c’est changer le travail’ (1994), Tom Thomas incluíra uma segunda (e final) parte sob o título de ‘Une critique de la Critique du Programme de Gotha’, na qual faz uma análise muito crítica do esquema de transição para o comunismo esboçado por Marx nas suas famosas glosas marginais ao programa do Partido Socialista Operário da Alemanha. É esse trabalho que Thomas agora retoma, alargado e desenvolvido, constituindo-se assim este seu último livro como mais uma etapa da reflexão que ele vem desenvolvendo sobre a transição para o comunismo desde ‘Crise technique et temps de travail’ (1988) e que passa também por ‘Ni fin du travail ni travail sans fins’ (1998). Trata-se de um trabalho de uma importância capital para a renovação teórica do comunismo. Além de que, pela sua escrita tensa, riqueza conceptual e capacidade de raciocínio abstracto sustentado, constitui uma fonte de puro deleite para quem se obstina em manter esse perigoso vício de pensar. Em muito do que se segue neste texto, as minhas ideias e as dele (para não falar das de Marx) misturam-se de forma indistinta, verdadeiramente comunista por assim dizer. É isso um sinal do quanto eu estou em generalizado acordo com ele, não sendo porém garantia de que ele esteja pela mesma forma de acordo comigo.

Quanto a Karl Marx, ele está naturalmente ainda muito longe de aderir à galeria ajardinada das figuras de pedra do pensamento. A sua sombra está ainda muito viva e presente. Marca decisivamente com o seu cunho os espaços de inteligibilidade do presente, que são do mesmo passo os espaços de luta por um futuro mais abundante, mais transparente e mais livre. É por isso mesmo que os erros de Marx – geralmente erros de avaliação concreta, devidos à sua impaciência revolucionária – devem merecer-nos o escrutínio mais rigoroso e severo. Ele via melhor ao longe que ao perto, digamos. Por outro lado, em muitos sentidos, estava sensivelmente em avanço relativamente ao seu tempo. Veio cedo demais e a sua luz cruel e avassaladora cegou-nos. Felizmente, a monumentalidade e percuciencia da sua obra crítica permitem-nos (com o benefício da experiência histórica entretanto acumulada) absorver e dissolver sistematicamente os próprios erros do autor. Sem uma familiaridade mínima com alguns conceitos marxistas elementares, o leitor terá por vezes dificuldade em seguir este texto.

A ‘Crítica do Programa de Gotha’ (doravante, C.P.G.) é uma das mais conhecidas obras dos fundadores do marxismo (1). É sabido que Marx não gostava de dar receitas pré-fabricadas para sociedades futuras. Essa era, para ele, uma marca distintiva do socialismo utópico que ele pretendia superar por intermédio de um método científico, partindo da análise das contradições da sociedade actual para a descoberta das linhas previsíveis do seu desenvolvimento. Neste texto, porém, por um instante, ele parece ter cedido a essa tentação utópica. Devem aqui porém realçar-se as particulares circunstâncias em que o fez. A C.P.G. não foi escrita por Marx com vista a ser publicada. É um escrito de circunstância, estritamente privado, visivelmente escrito sob um violento estado de desgosto e irritação, unicamente destinado a traçar a sua demarcação em relação ao projecto de programa - de forte influência lassalleana – redigido para a unificação da social-democracia alemã (2). Nesse sentido, as notas foram enviadas por Marx a Wilhelm Bracke, com a incumbência de que este as mostrasse particularmente a mais quatro correligionários (Geib, Auer, Bebel e Liebknecht) e lhas devolvesse prontamente. O que parece ter sido feito. O certo porém é que esta C.P.G. seria feita publicar postumamente por Engels, em 1891 (numa altura em que se preparava outro congresso da social-democracia alemã, o de Erfurt), e desde então tem sido considerado um texto programático fundamental do movimento operário e comunista.

A importância capital que tem sido acordada à C.P.G. deve-se, não à demolição das vulgaridades teóricas lassalleanas (que entretanto caíram por si próprias) mas, muito particularmente, ao esquema de transição para o comunismo formulado na nota crítica ao ponto 3 do capítulo I do programa de Gotha. É aí que, em meia dúzia de parágrafos, Marx faz a sua famosa distinção entre as fases inferior - a cada um conforme o seu trabalho - e superior - de cada um segundo as suas capacidades; a cada um conforme as suas necessidades - do comunismo, explicando como naquela primeira fase se fazem sentir ainda as sobrevivências económicas, morais e intelectuais da velha ordem capitalista. Nessas sobrevivências se inclui o direito igual burguês que, como todo o direito, é um direito de consagração e consolidação da desigualdade. Para o final da nota, Marx deixa claro que só se entregou passageiramente a estas reflexões para realçar a inanidade de conceitos como “produto integral do trabalho”, “repartição equitativa” e outras semelhantes patranhas ideológicas e jurídicas. Não certamente para fazer futurologia, construir modelos ideais ou impor receitas sagradas (3).

Vales-trabalho?

Naquela primeira fase (inferior) do comunismo, segundo o Marx da C.P.G.:

“Ele (o trabalhador) recebe da sociedade um certificado em como, desta ou daquela maneira, prestou tanto trabalho (após dedução do seu trabalho para o fundo comunitário) e, com esse certificado, extrai do depósito social de meios de consumo tanto quanto o mesmo montante de trabalho custa. O mesmo quantum de trabalho que ele deu à sociedade sob uma forma, recebe-o ele de volta sob outra.” (4)

A ideia de uma repartição “justa” da riqueza segundo o esforço de cada um é tão antiga como as sociedades de classes. Ao que parece, já S. Paulo dizia si quis non vult operari, non manducet (aquele que não quer trabalhar, não deve comer). No ‘Manifesto do Partido Comunista’ Marx e Engels criticaram estas utopias arcaicas por preconizarem “um ascetismo universal e um igualitarismo grosseiro”.

Em particular, desde que Adam Smith e David Ricardo criaram a teoria do valor com base no trabalho, uma miríade de autores no seio do movimento operário (Proudhon, Gray, Dühring, para só citar alguns) propugnaram trocas “equitativas” e a retribuição segundo o “justo valor” do trabalho, julgando residir aí a solução do problema social. Segundo eles, a apropriação capitalista só poderia ser o resultado de uma fraude maciça. Como se sabe, foi Marx que, com a descoberta da mais-valia, estabeleceu definitivamente que a exploração burguesa resulta da remuneração do trabalho pelo seu valor efectivo, dentro das leis do modo de produção capitalista. Owen era de certo modo uma excepção entre estes autores - o que lhe terá valido o especial apreço de Marx - na medida em que ele também propugnava (e, dentro dos limites das comunidades por si dirigidas, julgava praticar) a abolição das relações capitalistas de produção mercantil. E assim temos Marx, depois de a ter denunciado teoricamente milhentas vezes, a defender a panaceia dos vales-trabalho desde que no quadro de um regime de transição sob a ditadura do proletariado e com base na apropriação colectiva dos meios de produção.

A verdade, porém, como muito bem nota Thomas, é que o derrube político da burguesia não elimina imediatamente as condições da produção mercantil: o trabalho alienado (logo repulsivo, compulsório), a propriedade privada, o indivíduo egoísta. Poderá haver uma maior ou menor aproximação, mas será sempre vão esperar que o capitalismo realize todas as condições de perfeita socialização do trabalho, processo esse que bastaria coroar com uma operação formal, meramente jurídica, de expropriação. Será sempre necessária uma fase de transição, fase essa mais ou menos longa e complexa consoante as condições históricas materiais do ponto de partida.

Marx sabia disto tudo, melhor do que ninguém. É assim com alguma surpresa que o vemos propugnar a remuneração do trabalhador com vales-trabalho, nesta fase da sociedade socialista, isto é, “tal como ela sai da sociedade capitalista”, profundamente marcada com todos os estigmas desta última. Nesta sociedade, a divisão social do trabalho ainda existe, mais ou menos profunda, mas sempre real. Há um polo do capital e das potências intelectuais e um outro polo do trabalho, ainda alienado. Consequentemente, existe um certo espírito individualista de proprietário, tanto no polo superior como no pólo inferior da sociedade. O trabalhador sente-se também proprietário em relação à sua própria força de trabalho. Cada indivíduo vai assim tentar optimizar as trocas em que participa, obtendo para si o máximo, contra o dispêndio do mínimo. Existirá também com toda a probabilidade, nesta fase da sociedade de transição, ao lado do plano social, um certo grau de anarquia produtiva de iniciativa privada.

Nestas condições, a forma valor de troca (e a sua representação em dinheiro) é a única que valida socialmente os trabalhos efectuados privadamente. Ora, é sabido como esta forma valor parte de uma dupla abstracção em relação ao trabalho concreto. Primeiro há que reduzir os múltiplos trabalhos específicos a trabalho indiferenciado, homogéneo, simples desgaste de energia humana física e psíquica, mensurável quantitativamente. Depois, para medir efectivamente este trabalho indiferenciado pela única medida disponível para isso - o tempo (5) -, há que supor que este mesmo trabalho é efectuado com um certo grau médio de diligência e destreza. O valor incorporado num produto é pois o tempo de trabalho abstracto socialmente necessário (em média) ao seu fabrico. Se um trabalhador (individual ou colectivo) é excepcionalmente inepto ou usa instrumentos inadequados, não é por laborar exactamente as mesmas oito horas que os demais que criará nesse período o mesmo montante de valor que estes.

Mesmo supondo uma planificação perfeita e unidades de produção não concorrenciais - o que eliminaria problemas tipicamente capitalistas como a transformação dos valores em preços de produção pela perequação das taxas de lucro e a fixação final dos preços de mercado segundo as leis da oferta e da procura -, restará sempre o problema de fixar as quantidades de trabalho abstracto socialmente necessárias para as diferentes produções. Os níveis de produtividade média do trabalho variam muito de unidade para unidade de produção, consoante a qualidade da sua organização e apetrechamento técnico. Como afirmou o próprio Marx “o tempo de trabalho, enquanto medida do valor, existe apenas idealmente” (6). Finalmente, teríamos ainda o delicado problema de saber se o trabalhador em concreto atingiu (ou eventualmente excedeu) o grau médio de diligência e destreza. Só assim se justificaria que ele acedesse ao produto de tantas horas de trabalho social abstracto quantas as que ele desempenhou individualmente e em concreto (após as deduções para reprodução e expansão dos meios de produção, fundo de reserva ou seguro, custos de administração e serviços sociais vários, incluindo assistência aos diminuídos e incapazes).

É bom de ver que, nas actuais condições de socialização do trabalho, todas estas medições só se poderiam fazer, aliás com uma grande dose de arbitrariedade, por uma organização central todo-poderosa e tentacular. Como o próprio Marx admitiu, tudo isto implicaria um “governo despótico da produção e curador da distribuição” (o que, como observa certeiramente Thomas, é uma boa descrição do Plano sob Estaline). Noutras circunstâncias, o responsável não seria mais do que “um conselho que guarda os livros e regista os balanços de uma sociedade produzindo em comum. A apropriação comum dos meios de produção seria pressuposta, etc., etc.” (7). Duas hipóteses teóricas no tempo de Marx. Uma delas já a conhecemos hoje de sobejo, historicamente e na prática. A outra, conseguimos apenas a custo entrevê-la, algures no futuro.

Sobre a experiência “despótica” que conhecemos no passado, podemos também adiantar que ela não é estável. Havendo uma falsa socialização, por intermédio de nacionalizações puramente formais, a divisão social do trabalho persiste. Em condições de grande mobilização nacional e espírito de sacrifício colectivo podem-se realizar obras notáveis com base neste modelo, como foi por exemplo a colectivização dos campos na China Popular. Todavia, o trabalho continua alienado. Consequentemente, o demónio do individualismo espreita, tanto entre os “decisores” como entre os próprios trabalhadores. Isto não é ditado por qualquer “natureza humana”, como se ouve dizer por aí a gente supersticiosa, mas devido a um grau historicamente insuficiente de socialização do trabalho (8). Com esta base subjacente, nalgum ponto irá certamente romper-se o equilíbrio precário que mantém suspensa no ar a dinâmica da emulação colectivista. Quando finalmente se dissipa a ilusão e se esbate o fervor revolucionário nas aras da rotina estratificada, sobrevém por regra uma profunda estagnação. Há uma apatia e prostração generalizadas, bem retratada numa célebre anedota muito popular entre os meios operários soviéticos - “O socialismo, é simples: nós fingimos que trabalhamos e eles fingem que nos pagam”. Para estimular a economia são então injectadas cada vez maiores doses de “mercado”, naturalmente ainda e sempre “socialista”. São chicotadas tardias em cavalo cansado. Finalmente, os “decisores” resolvem libertar-se do fardo da propriedade estatizada (o “comunismo”) num regabofe pantagruélico e absolutamente celerado de privatizações - as famigeradas “reformas” na expressão inefável da imprensa ocidental.

A segunda hipótese é, obviamente, aquela que Marx tinha em vista na C.P.G.. Mas para que ele tenha concebido, desde a primeira hora da sociedade pós-revolucionária, um sistema de distribuição consoante as horas de trabalho concreto desempenhado por cada trabalhador, é porque avaliou com manifesto - e injustificado - optimismo as condições de socialização do trabalho operadas pelo próprio capitalismo. Supôs, em primeiro lugar, que a produção fabril em larga escala operaria a conversão de todos os trabalhos particulares num mesmo trabalho geral, indiferenciado, constituindo cada prestação pessoal uma simples parte alíquota do trabalho social total. Seria assim trabalho imediatamente social, dispensando a validação a posteriori pela forma valor de troca e pela dupla abstracção que descrevemos atrás. Aliás, como Thomas realça bem a propósito, desde 1847 Marx dizia já que o cálculo do valor pelo tempo de trabalho

“pressupõe que os trabalhos se igualizaram pela subordinação do homem à máquina ou pela divisão extrema do trabalho; que os homens se apagam perante o trabalho; que o baloiçar do pêndulo do relógio se tornou a medida exacta da actividade relativa de dois operários, como o é da celeridade de duas locomotivas. Então, não se deve sequer dizer que uma hora de um homem vale uma hora de outro homem, mas antes que um homem de uma hora equivale a outro homem de uma hora. O tempo é tudo, o homem já não é nada; é quanto muito a carcaça do tempo.” (9)

É um bom testemunho da genialidade de Marx que ele tenha podido entrever, desde essa época recuada, pela simples análise da dinâmica interna do capital, algo que teria apenas um começo de realização efectiva cem anos depois, com o apogeu do taylorismo - a organização “científica” do trabalho - no arranque industrial após a II Guerra Mundial. Contudo, este cenário distópico - que lembra o ‘Metropolis’ de Fritz Lang ou os ‘Tempos Modernos’ de Chaplin - nunca se tornaria uma realidade generalizada, em virtude do carácter necessariamente desigual do desenvolvimento capitalista. E mesmo nos ramos industriais mais desenvolvidos nunca se chegou a uma situação de total igualização e indistinção mecânica no trabalho humano. Na indústria taylorizada, os trabalhadores (sobretudo colectivamente) mantiveram sempre uma grande capacidade de criar disfunções produtivas gravíssimas, pela mera atrição da sua resistência passiva. Entretanto, os modelos mais recentes de organização industrial parecem afastar-se ainda mais do ideal mecanicista do trabalho fungível e perfeitamente seccionável. Como prova disso temos as mais recentes doutrinas toyotistas, com o aliciamento dos operários para esquemas de cooperação diligente e criativa do género dos “círculos de qualidade”. Há, por um lado, trabalho operário com uma grande amplitude de graus de qualificação, a ponto de, no topo, se esbater a distinção entre colarinhos azuis e brancos. Por outro lado, mesmo entre os trabalhadores menos qualificados, a regra não é hoje a indistinção nos desempenhos mas sim a existência uma extrema emulação competitiva.

Marx supôs porém algo mais ainda. Supôs que a superação do capitalismo patriarcal da fase concorrencial pela grande indústria das sociedades anónimas correspondia a uma socialização do trabalho praticamente acabada. Bastaria que uma revolução política e social a resgatasse do controlo parasitário do capital financeiro e aí teríamos o “trabalhador colectivo” finalmente emergindo liberto à luz do dia. Esta ideia teria sequência na concepção de Lénine do capitalismo monopolista como antecâmara do socialismo e, por essa via, forneceu argamassa legitimadora ao revisionismo estalinista e à confusão por este promovida entre socialismo e simples propriedade estatal dos meios de produção.

Thomas critica vigorosamente a incongruência teórica de Marx na C.P.G., onde ele parece admitir, na “fase inferior do comunismo”, uma propriedade comum ao mesmo tempo que, a título de meros estigmas do capitalismo, subsistem ainda a divisão do trabalho (oposição entre trabalho manual e intelectual) e a submissão do trabalhador, compelido pela necessidade, às potências intelectuais de uma racionalidade técnica que lhe permanece estranha e exterior. Isto quando, em toda a sua obra, Marx sempre insistiu e demonstrou que divisão do trabalho e propriedade privada são uma e a mesma coisa.

Também por aqui se vê que, afinal, a contradição privado/social persiste na primeira fase da transição. Nestas condições, remunerar o trabalho pelo seu conteúdo horário concreto (ficcionando a sua completa socialização quando ele é afinal ainda alienado a constrangido) constitui claramente um convite e um prémio à preguiça, ao desinteresse e à mediocridade. Não há “estímulos morais” que resultem continuadamente face a uma situação persistente de separação e alienação, de trabalho como simples meio de subsistência e não de realização pessoal. Sobretudo quando - como será sempre de esperar nestas condições - os trabalhadores se encontrem face à evidência dos estímulos bem materiais que os dirigentes se outorgam a si mesmos pelas mais diversas vias, legais ou nem tanto. Confrontados com uma crise de legitimidade, os apparatchiks recorrerão normalmente a um endurecimento do modelo “despótico” sobre o qual Marx havia ironizado. Depois virá a crise de lucratividade e a implosão do sistema num salve-se quem puder, cujo tiro de partida é dado (e as primeiras posições tomadas) pelos próprios digníssimos dignitários da pátria socialista.

É certo que nenhuma das experiências do “socialismo real” do século XX optou formalmente pela remuneração laboral em vales-trabalho (excepto, por algum tempo, as comunas agrícolas chinesas). Mas a remuneração do trabalho era aí entendida como não mercantil, dissociada do funcionamento da lei do valor, na presunção de se encontrava já resolvido o problema da socialização do trabalho. E foi o que se viu. Na verdade, o que se passava era simplesmente a substituição do preço de mercado da força de trabalho por um preço administrativo. Manteve-se a relação de subordinação do trabalhador. A troca efectuada mediante a relação laboral continuou a ser de não equivalentes mas deixou de reflectir fielmente a informação veiculada pelo funcionamento da lei do valor. Não era ainda Ítaca, mas lançou-se ao mar o tambor que comandava os remadores.

A socialização do trabalho

O problema da transição para o comunismo não pode ser posto em abstracto, fora das condições históricas concretas em que se encontre a sociedade em questão no momento em que ela se decida a iniciar esse caminho. Não há aqui lugar para esquemas de validade genérica e intemporal. Nas condições actualmente vigentes nas sociedades mais desenvolvidas - e naquelas que neste momento é possível entrever para o futuro imediato, sob as leis de desenvolvimento capitalistas - podemos ter por certo que essa transição, a iniciar-se agora, tomaria como ponto de partida algo que não é ainda seguramente uma comunidade realizada na produção material da existência social. Essa comunidade não seria um pressuposto, uma base material subjacente já consolidado a que haveria apenas que juntar um arranjo institucional correspondente. Seria antes um objectivo a atingir consciente e voluntaristicamente na própria transição, mediante um longo processo de lutas de classes no interior do regime de poder democrático dos produtores (a ditadura do proletariado).

O processo histórico (que é real) de socialização do trabalho operado pela grande indústria no séc. XX teve as suas contradições e as suas insuficiências. Por um lado, com o ascenso das grandes sociedades monopolistas, criaram-se gigantescas unidades de trabalho colectivo (e de planificação económica), superando-se em certa medida o individualismo autárquico e a cega anarquia da produção concorrencial. Por outro lado, porém, despojou-se completamente o trabalhador do seu saber técnico (o “ofício”) e do domínio que ainda lhe restava sobre os instrumentos e processos de trabalho. A parcelização e mecanização do trabalho fabril em cadeia colocou o trabalhador comum numa posição ainda mais débil, precária e alienada, face às grandes potências da ciência e da técnica - o “intelecto social” - apropriadas pela burguesia e postas ao serviço da acumulação privada. Neste modelo de organização produtiva o trabalhador está isolado, numa situação de grande dependência, todos os esforços sendo feitos para o impedir de tomar consciência do processo produtivo no seu todo. Deste modo, ele tem em oposição a si não apenas os detentores formais dos meios de produção (o capital financeiro) mas também a própria camada superior do “trabalhador colectivo”, os idealizadores, organizadores e supervisores da produção (10).

Em balanço, há a registar um avanço indiscutível na socialização do trabalho, na medida em que a produção passou a depender de uma organização mais complexa e integrada, de um esforço cooperativo mais amplo e alargado. É o que eu chamaria socialização do trabalho em sentido fraco e que no fundo se aproxima do conceito durkheimiano de “divisão do trabalho social”, próprio das sociedades avançadas e que as mune de uma densa rede de laços de interdependência ou “solidariedade orgânica”. Há porém um segundo e decisivo sentido – que eu aqui apelidaria de sentido forte - do conceito de socialização do trabalho, relativamente ao qual os progressos verificados até hoje são muito menos evidentes. É que essa socialização só pode considerar-se completa quando o corpo orgânico do “trabalhador colectivo” se tornar transparente a si próprio, com um certo nível de equivalência nas tarefas, rotatividade funcional e co-responsabilização paritária. Só assim se começará enfim a esbater a divisão social do trabalho, base da apropriação particular dos meios de produção. A socialização do trabalho, neste segundo sentido, é um horizonte de autonomia e liberdade para todos, nunca um pesadelo estratificado de desqualificação e embrutecimento para o maior número.

A socialização do trabalho em sentido fraco surgiu com a emergência do modo de produção capitalista e, ainda que se aprofunde progressivamente (no limite, até uma distopia totalitária), será sempre perfeitamente compatível com ele até ao fim. Com efeito, como o próprio Marx demonstrou concludentemente, foi a partir do momento em que a troca mercantil simples deu lugar ao sistema de acumulação capitalista que surgiu a moderna forma valor. Neste sistema de produção generalizada de mercadorias, a própria força de trabalho é mercantilizada tornando-se o eixo da reprodução alargada do capital. Surge assim a categoria do trabalho abstracto, essência do valor, como foi aliás desde logo intuído, ainda que de forma confusa e incompleta, pelos economistas clássicos (máxime Adam Smith e David Ricardo). Ora, o trabalho abstracto é o trabalho indistinto, sem qualificação particular, simples dispêndio de energia humana genérica. O trabalho abstracto é assim, justamente, o trabalho socializado. Simplesmente, esta é uma socialização do trabalho sob uma forma alienada, especificamente capitalista, que em nada contradiz ou põe em causa a apropriação particular dos meios de produção, antes pelo contrário a consolida e reforça (11). Marx parece não ter chegado a tomar inteira consciência de que a socialização do trabalho nas sociedades modernas, longe de ser um processo histórico contínuo e cumulativo, teria ela própria de passar também por uma ruptura qualitativa antes de se lhe poderem detectar os gérmens do rumo comunista.

A questão (da socialização do trabalho no sentido forte acima exposto, que é o único que verdadeiramente nos interessa) tornou-se ainda mais complexa com os últimos desenvolvimentos em matéria de organização industrial: o modelo toyotista, de produção ágil (lean production) ou especialização flexível que tem vindo a ser implantado desde os anos 90 como parte do “pacote” neo-liberal. A tendência agora é, nos países de capitalismo mais desenvolvido, para a fragmentação da própria classe trabalhadora entre: 1. uma camada altamente qualificada que tem uma relativa estabilidade de emprego, remunerações razoáveis e algum conteúdo criativo no seu trabalho; 2. uma larga camada de trabalhadores pouco qualificados, precarizados, subcontratados, etc.; 3. um exército industrial de reserva “clássico”, que faz pressão sobre o mercado de trabalho; 4. desempregados “de longa duração” que já não fazem sequer pressão sobre o mercado de trabalho, vivendo marginalmente na economia informal. A isto acrescem, naturalmente, as vastas massas terciarizadas da criadagem moderna. Estamos muito longe pois do cenário previsto pela teoria de inspiração evolucionista que supunha a existência de uma socialização do trabalho acabada ainda sob o capitalismo, a qual haveria finalmente de provocar o estilhaçamento do aparato político burguês como uma velharia perimida - tal qual uma borboleta depois de integralmente formada acaba por se libertar do seu casulo.

Sucede que, naquela fracção superior da classe trabalhadora, em empresas de tecnologia avançada, há agora de facto uma maior autonomia, polivalência e responsabilização. O modelo piramidal, rigidamente hierárquico e compartimentado, do scientific management foi superado. Há uma muito maior comunicação lateral e a substituição de uma rígida “hierarquia de autoridade” pela mais fluida “hierarquia da competência”. Esbate-se um tanto a separação entre “concepção” e “execução”. O controlo capitalista exerce-se agora não tanto directamente sobre os postos de trabalho individuais e isolados uns dos outros, mas sobre uma certa dinâmica de grupo relativamente autónoma do colectivo laboral. Se isto são notícias encorajadoras para os comunistas é certamente muito cedo para o dizer (12). As relações de produção capitalistas têm extrema dificuldade em encarar o uso de novas tecnologias (nomeadamente a informática e a robótica) de outra maneira que não seja como simplesmente um meio de substituir trabalho vivo, aumentando do mesmo passo o controlo sobre o trabalhadores remanescentes. Mas os imperativos da produtividade (impostos pela concorrência) têm também a sua margem de inflexibilidade, dando-se frequentemente o caso que o ”one best way” de organizar a produção neste novo ambiente implique um certo aumento do controlo dos trabalhadores sobre o processo laboral. A burguesia fixa-se então numa estratégia alternativa: fazendo uso do seu controlo exclusivo sobre os meios de produção, compensa a autonomia ganha pelo trabalhador impondo-lhe níveis acrescidos de insegurança.

Em todo o caso, presentemente, tudo isto diz respeito a uma fracção muitíssimo reduzida (e relativamente privilegiada) da classe trabalhadora. Dentro daquilo que poderíamos chamar o regime de acumulação neo-liberal, a empresa flexível é uma parte muito reduzida do todo, que inclui ainda, em vários sectores económicos e por todo o mundo, vastos complexos industriais em modelo fordista (linha de montagem), ou pré-fordista, precários sub-contratados, oficinas “manchesterianas”, “sweatshops” de mulheres submetidas a um despotismo patriarcal, imigrantes engajados em semi-escravatura, etc., para não falar já das grandes massas do campesinato. A “nova vaga” não absorve de modo algum as anteriores, acresce-se-lhes pelo topo, dominando depois todo o conjunto numa combinação desigual. As vagas anteriores, por seu lado, longe de se esgotarem, estão algumas delas ainda em expansão mas rumando a certos sectores desqualificados e, sobretudo, à periferia geográfica do sistema imperialista. Em consequência, a paisagem social torna-se cada vez mais complexa.

A fragmentação e diversidade de experiências da classe trabalhadora não deixará de pôr, naturalmente, problemas sérios à formação do próprio “colectivo de luta”, embrião e condição prévia indispensável da comunidade social do futuro. Mas o problema aqui não é se haverá ainda condições para se formar novamente esse colectivo de luta. O problema é quando e como ele se formará, pois que da efectividade dessa formação se encarregará a própria dinâmica objectiva da luta de classes. Pode levantar-se em peso todo o exército dos ideólogos estipendiados da burguesia, com as suas fantasias pós-modernas de identidades difusas, transversais e caleidoscópicas. A exploração capitalista provoca necessariamente a polarização social. Desta nasce a solidariedade dos oprimidos que, temperada na luta, desemboca na consciência de classe.

Este foi sempre um processo longo e complexo, mais o sendo certamente agora se o encararmos no seu desenvolvimento ao nível mundial. Mas enquanto houver exploração – uma corrente subterrânea de drenagem de mais-valia para acumulação privada - o tabuleiro estará sempre disposto de forma a que as peças tendem irresistivelmente a perfilar-se de uma forma bipolarizada. Passando por dispersões e recomposições parciais, a classe trabalhadora está em contínua formação - na forja da espoliação e das lutas quotidianas - não necessitando para isso de forma alguma de reconstituir as grandes massas uniformizadas de outrora. As duas classes fundamentais em confronto acabarão por ter de se encarar novamente, olhos nos olhos. Sendo certo, porém, que uma época de revolução social nunca assiste ao afrontamento de dois exércitos perfeitamente alinhados mas a uma miríade de conflitos laterais, com a explosão de muitas outras contradições secundárias. Só porventura o olhar macroscópico da história distinguirá ali depois claramente, naquele turbilhão desordenado, o fim da era burguesa e o ascenso mundial do proletariado a classe dominante.

Suponhamos então finalmente formadas (ainda que de forma incerta e descontínua) as linhas de batalha, e o assalto final encetado. O que se tratará de fazer após a tomada do poder pelos trabalhadores?

Em primeiro lugar, pôr-se-á fim à cadeia hierarquicamente articulada de sistemas de acumulação diversificados, a qual persistirá certamente enquanto houver capitalismo. Há que nivelar geograficamente os níveis de desenvolvimento, por intermédio de um esforço dirigido consciente e planificadamente para a generalização dos sistemas de produção mais avançados. De seguida, há que desenvolver os meios pelos quais cada trabalhador possa compreender e apoderar-se do conjunto da actividade social, nas suas condições materiais e intelectuais. À opacidade (e inversão) fetichista do reino da mercadoria é preciso substituir a transparência nas relações materiais de produção da existência. Para isso é preciso combater e comprimir progressivamente o trabalho alienado, pobre, constrangido, ganhando-se tempo para o aperfeiçoamento e desenvolvimento das capacidades pessoais dos trabalhadores.

Só o conjunto destes dois processos conscientes e dirigidos poderá criar uma efectiva socialização do trabalho (sentido forte), a qual, sabemo-lo hoje historicamente à nossa custa, não se gera espontaneamente no seio do capitalismo. Qualquer novo paradigma ergonómico que surja sob o capitalismo (por mais promissor que pareça no seu modelo abstracto) está submetido e sobredeterminado pela necessidade de rentabilização do capital, de extracção de mais-valia para acumulação privada, necessidade essa que gera necessariamente a alienação do trabalhador (porventura sob formas renovadas). A socialização do trabalho é afinal uma tarefa que só ao próprio poder proletário caberá completar.

Cenários para a transição – I

A classe trabalhadora pode bem aceder ao poder, mas o trabalho constrangido (raiz da propriedade privada, como vimos) não existe por mero capricho malévolo das classes dominantes, do passado ou do presente. É o produto histórico de uma sociedade onde as forças produtivas são ainda pouco desenvolvidas e onde, em consequência, continua a reinar a escassez, a luta pela sobrevivência, a maldição bíblica do “ganharás a vida com o suor do teu rosto”. Não ainda aquela sociedade em que “as fontes manantes da riqueza cooperativa jorram com abundância” a qual, e só essa, permitirá acabar com “a servil subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho” e na qual o trabalho se tornará “não só meio de vida mas, ele próprio, a primeira necessidade vital” (13).

Nestas circunstâncias ainda relativamente atrasadas, a tarefa fundamental da ditadura do proletariado não pode ser outra senão distribuir com equidade o trabalho constrangido, do qual há ainda uma absoluta e inultrapassável necessidade social. Repartindo este trabalho por todos os homens e mulheres válidos (com supressão de todas as camadas parasitárias e reintegração dos desempregados e do lumpen-proletariado), eliminando-se desperdícios e suprimindo produções e actividades inúteis ou sem sentido numa sociedade pós-capitalista (bens de luxo, publicidade, “serviços” financeiros, “entretenimento” alienante, armas de guerra sofisticadas e de destruição maciça, etc., etc.), pode-se chegar facilmente ao estabelecimento de uma carga horária obrigatória geral muito inferior à actual. Digamos 30 horas semanais, que depois se iriam reduzindo progressivamente à medida que os níveis de produtividade aumentassem e a socialização dos meios de produção avançasse. Assim se deixaria tempo livre e recursos disponíveis para a educação e o aperfeiçoamento pessoal de todos os trabalhadores. Estes disporiam ainda de tempo para actividades de sua livre iniciativa e para a participação informada na decisão dos assuntos colectivos.

Tratando-se ainda de uma sociedade de escassez e de trabalho constrangido, este mesmo trabalho - ou com mais rigor, a força de trabalho - só pode ser remunerado pelo seu valor de troca, sob a sua representação monetária (dinheiro) que é inútil pensar em abolir nesta fase. A forma valor é ainda a única capaz de medir socialmente a riqueza criada e garantir alguma eficácia na alocação dos recursos sociais, nomeadamente a força de trabalho disponível. Embora os seus representantes tenham acedido ao poder político e eles se encontrem massivamente mobilizados para um processo de transformação social radical, os trabalhadores não serão lisonjeados (ou vigarizados) com a ilusão de que os meios de produção e as alavancas do processo de decisão social são desde já seus.

Enquanto não dominarem por completo o processo de produção e reprodução da vida social, enquanto viverem encerrados nos seus gestos parcelares e subordinados, os trabalhadores serão ainda e sempre os forçados da sociedade. Profundamente alienados, vegetam nos porões da cidade. Estão assim numa relação de alteridade perante o corpus social total e, em particular, perante as potências intelectuais que o dirigem e detêm os seus segredos. Por isso, vendem a uma entidade exterior (a sociedade) a sua disponibilidade de serviço contra uma remuneração que lhes assegura a sobrevivência e a reprodução da sua força de trabalho ao mesmo nível de produtividade correspondente à sua complexidade específica (o que implicará um certo nível de conforto, actividade social, viagens, leitura, consumo de bens culturais, etc.). O que importa aqui (no âmbito estrito das suas relações laborais) é que os trabalhadores disponham de todas as garantias da forma contratual já aperfeiçoadas no próprio seio da civilização burguesa: enquadramento sindical, acordos colectivos, segurança social, serviços de apoio, etc..

A persistência da forma valor é precisamente testemunha da permanência da contradição privado/social, da necessidade que a sociedade tem de tudo medir e repartir, mesquinha e desconfiadamente. Porque há escassez, em suma, quem não trabuca não manduca. E essa persistência da forma valor não é sem consequências ou sem perigos. Se a divisão do trabalho persistir por muito tempo, as potências intelectuais tentarão por certo de novo apropriar-se privadamente do produto social, tirando partido da existência destes estigmas da sociedade mercantil, que procurarão resgatar e aprofundar, no sentido de fazer reinar de novo e definitivamente a polarização social e o “cada um por si”. Aliás, enquanto existir divisão do trabalho e uma camada social separada detentora de um saber exclusivo de direcção, haverá sempre uma apropriação material dos meios de produção, a qual mais cedo ou mais tarde tenderá a recobrar a sua natureza formal de propriedade privada.

É por tudo isto que, em sociedades marcadas pela divisão do trabalho, a transição será sempre um duro campo de batalha. Nela deve o proletariado organizado bater-se incessante e vigilantemente de modo a que, aperfeiçoando as suas capacidades, se eleve colectivamente ao controlo efectivo e democrático das unidades produtivas, do Plano económico e da direcção político-social, lutando pela máxima transparência em todos os processos de decisão e pelo esbatimento progressivo da divisão do trabalho. Para isso deverá coagir e vigiar, primeiro, cooptar e integrar progressivamente no seu seio, depois, as diversas camadas sociais detentoras dos vários saberes de direcção e organização actualmente ao serviço da burguesia (14). Mas isso só terá resultado efectivo se, ao mesmo tempo, conseguir formar continuamente, no seu próprio seio, em quantidade e qualidade suficientes, novos quadros de direcção e especialistas qualificados. Como o “sorteio” biológico das aptidões inatas de base se faz de forma notavelmente igualitária entre todos os ambientes sociais (15), o factor crítico será aqui a garantia de uma absoluta igualdade no acesso à educação formal, assim como a facultação de tempo livre e oportunidades de aperfeiçoamento contínuo para todos os trabalhadores. Nestas condições de mobilidade e integração total, o “intelecto social” estará sempre completamente mergulhado no próprio corpo da sociedade. Não lhe será permitido destacar-se dela e constituir-se num polo separado que se auto-reproduz enquanto tal em posição de domínio e exploração. Isso será por então uma mera recordação histórica dos tempos bárbaros das sociedades divididas em castas, classes, etc..

Com o avanço da automação, da socialização do trabalho e da qualificação técnica e científica do trabalhador imediato, as relações de produção vão-se transformando e o seu centro de poder desloca-se. É evidente que os indivíduos serão sempre diversos e terão capacidades desiguais. Nem toda a gente vai ter igual oportunidade de se esclarecer totalmente sobre todos os assuntos de relevância colectiva. E do ponto de vista do aproveitamento social óptimo dos talentos disponíveis não faz muito sentido colocar físicos nucleares em tarefas manuais ou rotineiras. Pense-se o que se pense do efeito correccional das campanhas maoistas de trabalho no campo, é fácil concluir que não é dessa forma voluntarista e justicialista que se eliminará a divisão do trabalho. Mas esse facto não depõe de forma alguma a favor de uma qualquer lei de bronze das oligarquias. As sociedades de classes foram e são o produto histórico da escassez e da violência (16). Numa sociedade que produza uma abundância de recursos capaz de satisfazer as necessidades concebíveis de todos e de cada um, não haverá apropriação privada, classes sociais nem Estado (que é a violência institucionalizada, protectora e garante da exclusão e da exploração). Numa sociedade que produza abundância, a diversidade é um factor de liberdade. Todos terão oportunidade de desenvolver e explorar as suas faculdades e talentos até ao limite, sem que a suas limitações próprias possam alguma vez servir de pretexto para a escravização (com o consequente estiolamento de capacidades potenciais e degradação pessoal) ao serviço de outrem.

O poder proletário não se imiscui na vida privada e íntima dos cidadãos, deixando-os tomar em plena liberdade todas as opções que entenderem nesse campo. Todavia, não assistirá passivamente à manutenção em larga escala de famílias nucleares desequilibradas, manchadas pela tradição do patriarcado. Este modelo familiar serviu durante séculos para assegurar a reprodução da força de trabalho (abastecimento doméstico e inventário, preparação dos alimentos, cuidados primários de saúde, educação e vigilância das crianças, manutenção e limpeza da habitação, etc.) com base no trabalho não pago da mulher. Significa isto que os capitalistas não pagam sequer integralmente o valor da força de trabalho por si contratada, beneficiando da circunstância de uma parte substancial da reprodução desta ser assegurada gratuitamente pela servidão feminina na economia doméstica patriarcal. Marx passou completamente em claro esta questão (17). Na sociedade pós-revolucionária, será encorajada a criação de comunas habitacionais em que os seus membros (de 20 a 100 pessoas) partilharão entre si as tarefas da economia doméstica, beneficiando para isso de apoios públicos. Além de ser uma forma de combater a discriminação sexista, este é também um modelo socialmente útil e progressivo: liberta a mulher para a vida na polis (onde a sua presença é essencial), enriquece a vida colectiva e poupa trabalho, uma vez que as tarefas domésticas ganham em ser realizadas com uma certa economia de escala.

Numa primeira fase do regime de transição não haverá ainda apropriação colectiva senão dos principais meios de produção. Subsistirão assim ainda largos interstícios de acumulação privada e competição cega, que a democracia proletária procurará reduzir progressivamente. Por outro lado, a apropriação colectiva é ainda em grande parte formal, em virtude da persistência da divisão do trabalho. Quando for possível a apropriação pública de todos meios de produção, sendo a alocação de recursos feita com base num Plano social rigoroso, compreensivo e democraticamente participado, não existirão já “preços” de produção (cuja formação resulta da distribuição da mais-valia entre capitalistas privados) ou de mercado (resultantes, além disso, do funcionamento das leis da oferta e da procura, ou seja, da “anarquia da produção” burguesa). Todos os bens – incluindo a força de trabalho - serão contabilizados e trocados somente pelo seu valor. Todo o trabalho deve ser por regra apenas trabalho necessário, sem prejuízo de se poder definir colectiva e democraticamente a exigência de sobre-trabalho, a distribuir por todos de forma uniforme, para garantir um nível de acumulação pública julgado adequado. Nenhuma acumulação privada terá lugar. Nenhuma remuneração do dinheiro ou da propriedade.

Teremos assim uma sociedade ainda mercantil – porque subsiste o fetichismo da forma valor - , mas já sem o concurso dos outros estigmas da exploração burguesa (lucro, juro, renda). O simples valor (valor de troca, naturalmente) rege toda a vida económica, do princípio ao fim. Todas as trocas são trocas de equivalentes em valor. Não haverão já as flutuações loucas, a especulação, o desperdício, a incerteza, os ciclos periódicos de expansão e ruína. Todos os bens podem ser medidos com rigor pelo seu valor, que é a soma do valor da força de trabalho gasta, das matérias-primas incorporadas e do desgaste operado (amortização média) nos instrumentos utilizados na sua produção e transporte. Feitas as contas (que podem parecer muito complexas mas que rapidamente se tornam rotineiras e muito facilmente se revêm com a introdução no sistema das variações ocorridas), os produtos são etiquetados com um simples código de barras que marca o seu valor social médio. É este valor que orientará a alocação de recursos pelo Plano, regendo ainda todas as trocas, inclusive as que se efectuarem entre as diversas unidades produtivas (fornecimento de produtos semi-acabados, por exemplo). Estas unidades manterão a sua contabilidade própria mas não terão autonomia para reinvestir e acumular por sua própria iniciativa.

O planeamento social integral será possível de forma universalmente participada porque todos os valores são certos e fungíveis, existindo capacidade técnica, modelos teóricos, programas e sistemas de comunicações aptos a captar, armazenar, processar e distribuir muito rapidamente toda a informação relevante (18). As decisões podem ser tomadas democraticamente aos mais variados níveis, sendo depois comunicadas para registo e contabilidade na base competente. Estas bases comunicam entre si verticalmente, sendo assim possível fazer planeamento participado, sectorial ou total, às mais diversas escalas: micro, macro, regional e global. A rede informática permite além disso o estabelecimento de uma densidade tal de comunicações cruzadas que permite o encontro e harmonização instantâneos entre a oferta e procura de todos os bens (sendo que tendencialmente toda a procura é solvente). A famigerada “mão invisível” de Adam Smith torna-se obsoleta como regulador económico. As catástrofes e estrangulamentos típicos do modo de produção capitalista tomam o seu lugar no memorial histórico da irracionalidade humana, ao lado dos ordálios e dos autos-de-fé.

Os recursos produtivos são distribuídos com vista à satisfação das necessidades socialmente sentidas, não se produzindo bens de luxo nem de ostentação. Contudo, haverá uma grande margem de variedade dentro dos mesmos tipos de produto, incluindo versões de maior qualidade (e valor correspondente) e outras mais simples. Numa sociedade tendencialmente igualitária, há que promover a diversidade, a criatividade, o inconformismo, o dissídio da norma, porque tudo isso acresce à riqueza social colectiva. Umas pessoas contentar-se-ão com a satisfação de algumas das suas necessidades ao nível mais elementar e serão particularmente exigentes na satisfação de outras (porventura raras ou exóticas), enquanto a preferência dos seus vizinhos poderá ser a inversa. Há assim que garantir uma grande variabilidade e leques amplos de qualidade em todos os produtos e serviços.

Porque há ainda escassez, a cada um são atribuídos direitos de consumo sobre os bens sociais de forma limitada e bem contada, consoante o seu trabalho. Cada trabalhador (e estamos numa sociedade em que todos são trabalhadores) recebe uma remuneração, em dinheiro, equivalente ao valor da força de trabalho dispendida, que é o custo da reprodução desta mesma força de trabalho, na sua complexidade específica e nas condições sociais vigentes (19). O trabalhador vende assim, pelo valor real, a sua própria força de trabalho concreta, não uma qualquer suposta parte alíquota do trabalho social total (o que suporia resolvido o problema da socialização do trabalho). Mantém-se pois a servidão do salariato e a mercantilização da força de trabalho, mas agora já não no contexto de uma relação de exploração de classe mas sim numa relação de sujeição de cada trabalhador concreto ao trabalhador colectivo. Sem esquecer que esse mesmo colectivo tem ainda de ser completamente homogeneizado, através da eliminação total da divisão do trabalho. É um primeiro patamar, que poderíamos denominar de economia de apropriação social com troca de equivalentes.

Esta economia é um sistema social dinâmico, de não-equilíbrio. Nela se fazem sentir forças regressivas, no sentido da apropriação particular, e forças progressivas, no sentido do comunismo. As forças progressivas contam com apoio do poder político (com a sua direcção e planeamento económico-social) que é preciso preservar a todo o custo, sem prejuízo do necessário pluralismo de opiniões e da mais ampla democracia participativa dentro do campo proletário. Os recalcitrantes e saudosistas da ditadura burguesa poderão ser objecto de medidas repressivas, se as circunstâncias o impuserem, mas em princípio a sua voz será simplesmente esmagada e diluída na massa popular, por efeito da simples força do número, desde que lhes seja retirado o controlo dos grandes meios comerciais de difusão que estavam antes ao seu serviço. Na democracia proletária cada indivíduo é uma opinião distinta, que vale pelo seu mérito intrínseco. Para isso disporá dos seus meios próprios de difusão e persuasão, em igualdade com todos os demais. O dinheiro não servirá para amplificar a voz a ninguém.

Mas a dinâmica social progressiva apoiar-se-á também na força do exemplo, com a criação de um sector comunista desde a primeira hora da transição. Com o estabelecimento de um horário obrigatório universal de trabalho de 30 horas semanais (tal era a nossa hipótese), libertar-se-á de imediato muito tempo, disponibilidade e talento que não podem ser desperdiçados. É certo que muito desse tempo terá de ser empregue em estudo, formação e no processo democrático alargado de debate e decisão de todas as questões de relevância social. Mas restará ainda assim muito tempo livre, que os trabalhadores empregarão em actividades de solidariedade e assistência, de criação artística e especulação ou de trabalho livre, individual ou associado. Tudo na base do mais puro voluntariado, para simples recreação, convívio e realização pessoal. A autoridade pública democrática alocará planeadamente recursos (instalações, instrumentos, matérias-primas, etc.) e organização para enquadramento deste trabalho livre, cujo produto será distribuído gratuitamente.

À medida que a riqueza social se acumule e a produtividade do trabalho aumente, o horário de trabalho obrigatório poderá baixar ainda mais, sempre cada vez mais. Liberta-se assim ainda mais tempo que poderá ser empregue na expansão programada do sector comunista. Todas as estatísticas são públicas e debatidas, sendo decidida democraticamente a alocação dos recursos. A sociedade disporá assim de uma referência clara - concreta, mensurável e sensível para todos - do rumo que está seguindo. Pode até regredir. Em caso de catástrofe ou emergência, p. ex., poderá ter de se aumentar o horário de trabalho obrigatório. Mas isso terá de ser justificado, debatido e decidido em conjunto. Não haverá lugar para a demagogia nem para delírios ideológicos, mas sim para os factos em toda a transparência. O sector mercantil (com troca de equivalentes) irá definhando, comprimindo-se progressivamente, enquanto o comunismo se vai expandindo à vista e com a participação de todos. O comunismo será pois a libertação, passo a passo, do tempo constrangido do trabalhador, abrindo-se-lhe assim as fronteiras de uma liberdade total e irrestrita, num espaço holístico de solidariedade organizada.

Cenários para a transição – II

O outro cenário para a transição - desenhado por Marx em certas páginas dos ‘Grundrisse’ (20) - é um esquema muito mais avançado, supondo, ou a precedência vitoriosa do esquema anterior, ou uma transição iniciada mais tardiamente, com as forças produtivas sociais muito mais desenvolvidas. Não é contudo de modo algum indiferente o facto de a transição se iniciar mais tarde ou mais cedo. A história não segue um rumo necessário e pré-determinado por leis “objectivas”. Não é uma progressão linear e cumulativa inexorável pontuada por rupturas qualitativas cuja ocorrência se possa prever antecipadamente. A aventura social moderna desenrola-se num sistema muito mais “caótico”, com janelas de oportunidade que se abrem e fecham, nódulos e encruzilhadas em que se tomam decisões fundamentais, anomalias e catástrofes imprevisíveis. Por isso, a ascensão ao poder do proletariado organizado, armado com uma estratégia transicional clara e lúcida, será sempre um factor decisivo no próprio desenho das oportunidades de progresso que se abrirão de seguida. A intervenção consciente na determinação do curso histórico não é tudo e certamente não garante a consecução dos resultados que se representaram antecipadamente. O mundo é vasto e complexo, o homem pequeno. É sempre de esperar a ocorrência de um qualquer desvio, causado por uma miríade de factores imponderáveis. Mas sem intervenção consciente, então é que seguramente a corrente desordenada e o cachoar de forças em estado bruto se torna incontrolável e o rumo geral resultante pode bem ser o barranco dos cegos.

Neste cenário avançado, a maquinaria automática (ciência e as suas aplicações) reduziram já o trabalho vivo a uma dimensão insignificante. A robótica avançada e todo o tipo de instrumentos autómatos, providos de sensores e programas informáticos evoluídos, tomam o lugar do trabalho físico humano. O trabalho passado acumulado produz incessantemente utilidades novas, praticamente sem qualquer nova intervenção humana. O trabalho vivo será sobretudo de concepção de novos sistemas ou de manutenção e aperfeiçoamento dos existentes. Se, por hipótese quase absurda, estamos ainda numa sociedade capitalista, a taxa de lucro tende para o zero sendo impossível manter relações de exploração. A apropriação privada dos meios de produção só pode ser uma miragem jurídica, ao gosto de meia dúzia de espíritos recalcitrantes.

O principal factor produtivo é agora o próprio “intelecto geral” - o acervo dos saberes e técnicas historicamente acumulados - que constitui património comum da humanidade, imediatamente apropriável por todos pois está registado em suportes de acesso público livre. A necessidade da forma valor caiu agora drasticamente, não só porque o trabalho imediato se tornou residual como porque o seu carácter se transformou, tornando-se trabalho rico, auto-realizador, que ninguém regateará. A contradição privado/social esbate-se. Os produtos e a própria força de trabalho já não se trocam por equivalentes em valor, mas disponibilizam-se livremente como dádiva universal. A economia mercantil, restrita a bolsas cada vez mais reduzidas e circunscritas, acaba por se extinguir por completo. Os suportes electrónicos da moeda-valor juntam-se às restantes velharias em papel e metal no museu do dinheiro. Todo o aparato de coerção pública desaparece naturalmente, por evidente inutilidade. Emerge uma ordem espontânea, livre, auto-regulada em que finalmente “o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” (21).

A coordenação da produção e distribuição na sociedade comunista não necessitará de nenhuma aparato central, fosse ele meramente administrativo. Necessitará, isso sim, de uma gigantesca base de dados, acessível inter-activamente por todos, com o registo de toda a procura, da produção disponível, e o inventário de todos os meios de produção prontos a ser usados. Essa base de dados central será depois desdobrada por outras menores, de âmbito regional e local. Os produtores livres têm assim ao seu dispor um quadro-síntese, de fácil consulta, que lhes permite orientarem a sua actividade para onde sintam que ela será socialmente mais útil e desejada, dentro naturalmente das áreas da sua vocação e competência. O equilíbrio entre oferta e procura é assim mantido constantemente, em tempo real, num sistema em que a informação flui horizontalmente por todo o lado, sendo apenas registada centralmente. O planeamento geral resultará pois da soma das decisões conscientes e informadas de todos os produtores.

Entretanto, mesmo com a automação generalizada, aquela apropriação comum do património intelectual da humanidade não é ainda um dado mas, precisamente, ainda e sempre, um campo de batalha para os produtores, na sua luta para extinguirem em si próprios os últimos resquícios da sua antiga condição de classe social dominada, explorada e alienada. As últimas sequelas da divisão do trabalho esbater-se-ão progressivamente à medida que todos os trabalhadores, individual ou organizadamente, puderem aceder ao conhecimento, à fruição e à experimentação livre e crítica do património científico acumulado da humanidade. Não é que todos conheçam tudo. Mas o dinamismo e fluidez da circulação da informação, assim como a deslocação contínua dos actores impedem, o enquistamento de posições fixas de ascendente e privilégio. Por outro lado, enquanto os conhecimentos especializados e sectoriais se tornam extraordinariamente complexos, pelo contrário, os conceitos e métodos necessários para o domínio das questões de alcance mais geral serão simplificados em extremo, ficando assim ao alcance da compreensão e da intervenção informada de todos.

O organismo social funcionará então de forma perfeitamente integrada, produzindo, reproduzindo e revolucionando continuamente os meios materiais da sua existência com base na iniciativa livre de todos e cada um dos seus membros, sem qualquer distinção qualitativa. Assim se encerrará finalmente o longo ciclo histórico da divisão do trabalho, das sociedades de classes e do Estado.

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NOTAS:

(1) A única tradução portuguesa a partir do original alemão é a de José Barata-Moura, incluída nas ‘Obras Escolhidas em três tomos’ de Marx e Engels, Edições Avante, Lisboa, 1985, a abrir o III tomo. Há outras traduções aceitáveis publicadas pela Estampa (Lisboa, 1975) e pela Centelha (Coimbra, 1975).

(2) Ferdinand Lassalle (1825-1864) foi um publicista e activista político alemão amigo de Marx e também, de certo modo, seu rival. Ele fundou a União Geral dos Operários Alemães em 1862. A facção do movimento operário alemão ligada à Associação Internacional dos Trabalhadores e aos exilados Marx e Engels constituir-se-ia em partido apenas em 1869, no congresso de Eisenach. O congresso de Gotha, reunido de 22 a 27 de Maio de 1875, operou a fusão das duas organizações, dando origem ao que viria a ser depois o Partido Social-Democrata Alemão. Nesse mesmo congresso se aprovou o programa tão detestado por Marx. Os eisenachianos achavam que a união era uma oportunidade política a não perder e os avisos irados de Marx, enfim, caturrices ciumentas do velho.

(3) Curiosamente, na sequência do fracasso da União Soviética, a percepção hoje em dia entre os socialistas é precisamente a inversa: para se fazer propaganda revolucionária, são precisos modelos convincentes de uma sociedade alternativa. É assim que, em anos recentes, tem-se verificado um novo surto de socialismo utópico, no sentido em que se trata de obras de especulação em torno de modelos ideais e abstractos de funcionamento de sociedades futuras, mais solidárias, com superação da propriedade privada. Não considerando aqui a numerosa literatura sobre o cachorro morto do “socialismo de mercado”, merecem especial referência o modelo anarquizante de “economia participativa” divisado por Michael Albert e Robin Hahnel (‘The Political Economy of Participatory Economics’, Princeton University Press, New Jersey, 1991); o modelo comunista de Paul Cockshott e Allin Cottrell (‘Towards a New Socialism’, Spokesman Books, Nottingham, 1993) e o modelo de “plano participado por coordenação negociada” de Pat Devine (‘Democracy and Economic Planning’, Polity Press, Cambridge, 1988). Para uma visão de conjunto, leia-se o excelente número especial - “Building Socialism Theoretically: Alternatives to Capitalism and the Invisible Hand” - da revista marxista norte-americana ‘Science & Society’, Primavera de 2002, Vol. 66, nº 1. O livro de Cockshott e Cottrell está disponível na internet em http://www.ecn.wfu.edu/~cottrell/socialism_book/, juntamente com outros ensaios seus extremamente importantes. Infelizmente, os autores tentam reabilitar o sistema de vales-trabalho (agora sob a forma actualizada de cartão de banda magnética) avançado por Marx na C.P.G. e que vamos de seguida criticar no texto. Outra obra interessante, partindo de uma perspectiva marxista, é Heinz Dieterich Steffan, ‘El Socialismo del siglo XXI’, Mexico, 2002, que incorpora também contributos teóricos de Arno Peters. Esta e outras obras dos mesmos autores estão disponíveis na internet em http://puk.de/download/. Um esforço pessoal meu anterior pode ser encontrado em “Diálogo sobre a sociedade do futuro”, ensaio incluído no volume ‘O Estranho Caso da Morte de Karl Marx’, Edições Mortas, Porto, 2000.

(4) ‘Obras Escolhidas...’, cit., III tomo, págs. 15-16. Ironicamente, Marx parece ter sido fortemente influenciado pelo socialista utópico inglês Robert Owen (1771-1858) em toda esta passagem da C.P.G.. Owen foi um grande industrial, humanista, reformador e experimentador social. No dizer de Engels, tratava-se de “um homem cuja pureza quase infantil tocava as raias do sublime e que era, a par disso, um condutor de homens excepcional”. Deixou algumas obras doutrinais mas notabilizou-se sobretudo pelas inúmeras aldeias cooperativas que criou e dirigiu, com destaque para as de New Lanark (arredores de Glasgow) e de New Harmony (no estado norte-americano do Indiana).
Em New Harmony (Nova Harmonia), numa primeira fase, foram criadas contas-corrente de trabalho na sua loja pública. Cada membro recebia aí um crédito, segundo o montante de trabalho útil desempenhado; contra esse crédito era aberto um débito, consoante os bens de consumo levantados. Cada membro dispunha da liberdade de abandonar a comunidade, com uma semana de pré-aviso, liquidando a sua conta. Mais tarde, sempre segundo a direcção de Owen, este sistema foi posto de lado e substituído por uma distribuição totalmente comunista. Cada membro deveria fornecer trabalho consoante as suas capacidades e receber comida, roupa e acomodações conforme as suas necessidades. A ‘Nova Harmonia’... faliu, em 1829, após cinco anos de uma vida atribulada. Que Marx conhecia bem e aprovava a prática owenista dos certificados-trabalho prova-o a primeira nota de rodapé ao Terceiro Capítulo, I Secção do Livro Primeiro de ‘O Capital’ (cf. Karl Marx ‘O Capital’, Livro Primeiro, Tomo I, Edições Avante, Lisboa, 1990, pág. 112-113). A sacrossanta teoria marxista sobre a transição para o comunismo pode bem não ter sido mais que uma experiência owenista pela qual Marx tinha uma certa simpatia, a ponto de lhe ter ocorrido servir-se dela, de passagem, em privado, numa polémica que pouco tinha a ver com o assunto. As voltas que o mundo dá!
Devo esta chamada de atenção sobre a possível influência de Owen sobre Marx ao artigo de Joseph Green, “Labor-money and communist planning (part 1)” em ‘Communist Voice’, Vol. 6, nº 3, Novembro de 2000. Sobre a vida, obra e ideias de Robert Owen leia-se a excelente edição portuguesa do seu livro ‘Uma nova concepção de sociedade’, com introdução, tradução e notas de Luísa Leal de Faria, Textos Filosóficos, Braga, 1976.

(5) Até hoje não foi ainda descoberta uma unidade científica apta a medir em geral e uniformemente o esforço vital compósito (força muscular, actividade do sistema neurológico, etc.) dispendido pelos humanos que se incorpora nas mais diversas obras por estes produzidas e que representam a riqueza social. Só após esta eventual descoberta se poderá porventura dispensar um dia a medição do valor pelo tempo de trabalho. Tomando-se como base esta medição, há que considerar porém a existência de trabalho simples e trabalho complexo (especializado, com elevada componente técnica), considerando-se este como um múltiplo daquele, de forma que 1 dia de trabalho complexo transmite ao seu produto valor equivalente a x dias de trabalho simples – cf. Karl Marx, ‘O Capital’, Livro Primeiro, Tomo 1, Edições Avante, Lisboa, 1990, pág. 227-228. O modelo é coerente mas o problema é que não existe nenhuma forma de comparar concretamente os diversos tipos de trabalhos entre si, ou seja, de medir quanto é que cada um deles vale em trabalho simples que seria a unidade de referência. Na falta desta medida padrão, os trabalhos trocam-se de forma opaca no mercado capitalista pelos seus preços, na formação dos quais entram de forma decisiva as relações de dominação e exploração de classe. Feita esta ressalva quanto à sua inaptidão a efectuar medidas concretas com rigor científico (as medições serão sempre aproximativas, convencionais e socialmente motivadas), as linhas gerais da teoria do valor e do conceito de mais-valia traçadas por Marx permanecem hoje operativas, no âmbito naturalmente de um projecto histórico de emancipação colectiva do proletariado. Opinião diversa exprimem Fernando Penim Redondo e Maria Rosa Redondo em ‘Do Capitalismo ao Digitalismo’, Campo das Letras, Porto, 2003. Mas o problema é que me parece que o projecto dos autores não é o mesmo.

(6) Conforme citação dos ‘Grundrisse’ feita por Tom Thomas em ‘Karl Marx et la transition au communisme’, pág. 35. Continua a não haver tradução em língua portuguesa (em Portugal ou no Brasil) desta obra fundamental de Marx.

(7) Karl Marx, ‘Grundrisse’, Penguin Classics, Londres, 1993, pág. 155-156. Nesta passagem, Marx comenta os planos de John Gray para um Banco Central que remunerasse a produção pelo seu “valor autêntico”. Tradução minha a partir desta edição em língua inglesa.

(8) Como o próprio Marx há muito já nos ensinou “a essência humana não é uma abstracção inerente a cada indivíduo. Na sua realidade ela é o conjunto das relações sociais”. ‘Teses sobre Feuerbach’ (tese 6) em ‘Obras Escolhidas...’, cit., I tomo, pág. 2. A natureza humana é sempre socializada, de uma forma específica, em determinadas circunstâncias geográficas e históricas. Existem certamente um património genético e necessidades biológicas comuns à espécie humana, mas estes por si só não nos permitem detectar e isolar comportamentos sociais típicos e universais, na ponta do bisturi. O que caracteriza a experiência social humana em relação à das outras espécies animais é precisamente a sua emancipação em relação a um estrito determinismo biológico. Os homens desenvolvem formas muito complexas de organização e colaboração para a satisfação das suas necessidades, mediante o uso da linguagem e a transmissão dos conhecimentos adquiridos. Estas formas evoluem e transformam-se, à medida que o património cultural se acumula e modifica, de geração em geração, criando-se assim novas formas de socialização humana cujo horizonte de possibilidades é virtualmente insondável.
É, por assim dizer, “natural” que as classes sociais dominantes tentem “naturalizar” o seu domínio e a sua visão própria da sociedade. Porém, a história de todas as sociedades humanas existentes até hoje dá-nos um riquíssimo panorama de tudo aquilo que ao longo do tempo se foi sucessivamente acreditando ser a “natureza humana”, o que nos permite ter uma perspectiva relativizadora dessas concepções. Em relação às do passado, o que há de particular e de novo na visão burguesa - como Marx também observou - é que ela é em certo sentido lucidamente historicista, mas só para trás. A burguesia acredita ingenuamente que, até ela, existiu história, mas a partir dela... já não há mais. Em consequência, para si, a “natureza humana” estaria fixada a partir de hoje e para todo o sempre no “salve-se que puder” e na “guerra de todos contra todos” que são o santo e senha na sociedade capitalista. Na verdade, a ninguém é exigível que disponha de uma capacidade imaginativa e de abstracção tal que lhe permita conceber que haja vida – vida diversa, mais livre, complexa e abundante - para além da sua própria. Uma exposição sucinta mas modelar sobre este problema pode ser achada em John Molyneux, ‘Is human nature a barrier do socialism?’, SWP, Londres, 1993.
Quanto ao património genético humano actual (que, após a sequenciação, se está apenas agora a começar a estudar com vista a saber como verdadeiramente funciona) o que se sabe ao certo é que, por um lado, ele é extraordinariamente aproximado entre todas as populações da espécie e, por outro, que revela uma forte tendência para se manter estável. A estabilidade genética da espécie humana resulta do facto de ela ter construído para si um ambiente cultural que a subtrai por completo às pressões da selecção natural. Poder-se-ia ainda admitir uma especiação distintiva por efeito de simples deriva genética, mas para isso era necessário que um grupo humano se mantivesse em isolamento total por dezenas de milhões de anos, o que não é crível que venha a acontecer. Uma intervenção de engenharia transgenética (ou por implantes nanotecnológicos) poderia em princípio gerar uma linhagem modificada mas ela acabaria por ser reabsorvida. Não se vê como se possa, por essa via, criar todo um grupo populacional distinto e separado. A humanidade é assim una, solidária e, do ponto de vista natural, vai certamente manter-se a mesma que conhecemos.

(9) Karl Marx, ‘Miséria da Filosofia’, Edições Avante, Lisboa, 1991, p. 51. A tradução foi ligeiramente modificada, após cotejo com o original francês.

(10) Estes são, respectivamente, os capitalistas “em título” e os capitalistas “em função” ou, se quisermos expressar-nos com conceitos caros ao nosso amigo João Bernardo, as duas classes capitalistas: burguesia e gestores. Ora, se o carácter puramente parasitário dos primeiros resulta imediatamente óbvio, não é assim quanto aos segundos. Estes, muito embora participem largamente na exploração capitalista - por mais qualificado e intenso que seja o seu trabalho, não é certamente responsável por criação de valor à medida dos seus estratosféricos “salários” mais stock options e prebendas de toda a espécie - eles são ainda assim parte integrante do processo produtivo. A “expropriação” do seu saber técnico e da sua capacidade de iniciativa e organização não é tão simples como a nacionalização de uma indústria.

(11) Ao que parece foi Lucio Colletti quem primeiro aproximou explicitamente o conceito marxista de trabalho abstracto (oriundo da sua teoria do valor) dos temas da alienação e do fetichismo. “Colletti defende que o trabalho abstracto – que é a substância do valor – não é o trabalho como produto de uma operação meramente conceptual, sucedendo antes que no mundo real das mercadorias os diferentes trabalhos são separados dos trabalhadores, dos indivíduos aos quais eles deveriam pertencer, e é a partir dessa separação que se constrói o carácter social do trabalho, isto é, justamente, o trabalho abstracto” - Fausto Bertinotti, ‘Ces idées qui ne meurent pas’, Le Temps des Cerises, Pantin, 2001, p. 130. Nesta mesma fecunda linha de pensamento leia-se também Marina Bianchi, ‘A Teoria do Valor (dos clássicos a Marx)’, Edições 70, Lisboa, 1981.

(12) Hoje em dia, a uma nova reflexão, temos que dar como não provada a tese de Harry Braverman – ‘Labour and Monopoly Capital’, Monthly Review Press, Nova Iorque, 1974 - que nos falava de uma contínua desqualificação do trabalhador e espoliação do seu saber ao longo do século XX, sob o regime da organização laboral taylorista e do capitalismo monopolista. Por outro lado, está ainda por provar um qualquer efeito global requalificador e libertário da empresa flexível, sendo porém já bem evidentes as alienações de novo tipo que ela trouxe consigo para o trabalhador. Para um enquadramento problematizante actualizado destas questões é muito útil a leitura de Michel Vakaloulis, ‘O Capitalismo Pós-moderno’, Campo das Letras, Porto, 2003, em especial p. 145 e ss.. A própria sucessão histórica dos vários modelos de organização industrial (com as suas descontinuidades e uma relativa incomensurabilidade entre si) vem desmentir a existência de uma qualquer progressão linear em direcção a uma maior socialização do trabalho sob o império da lei do valor capitalista. Questão totalmente diversa é a da transformação das forças produtivas que, essa sim, embora não haja nisso nenhuma manifestação determinista, tem como registo histórico efectivo um progresso cumulativo indiscutível. Só que o progresso das forças produtivas não arrasta automaticamente um progresso nas relações de produção. Forças produtivas mais avançadas apenas ampliam o leque de possibilidades de libertação para o trabalhador, mas essas possibilidades têm de ser concretizadas por um balanço de forças favorável no campo da luta de classes. Esse balanço de forças pode ser melhor ou pior, mas só terá em definitivo um sinal positivo após um desenlace revolucionário consolidado. Uma das características definidoras do carácter contraditório do desenvolvimento capitalista é precisamente o facto de ele abrir constantemente novos caminhos e gerar impulsos para a mudança, os quais contudo não poderão jamais ser acomodados dentro dos seus próprios limites.

(13) Karl Marx, ‘Crítica do Programa de Gotha’, ‘Obras Escolhidas...’ cit., III Tomo, pág. 17.

(14) Ao nível dos locais de produção, essa tarefa não será tão exigente como pode parecer à primeira vista. Na verdade, já hoje, sob o capitalismo, os trabalhadores mais curiosos e interessados têm uma ideia bastante completa do processo produtivo em que estão integrados (qualquer que seja o seu modelo organizativo e nível tecnológico), podendo facilmente dirigi-lo e aperfeiçoá-lo se a isso lhes for dado acesso. O saber de “gestão de empresas” que não dominam é precisamente aquele que será dispensado numa sociedade pós-capitalista: jogatana financeira, estudos de mercado, marketing, manutenção e alargamento das taxas de exploração, etc.. O verdadeiro desafio será conseguir o controlo democrático dos trabalhadores sobre a direcção política e o planeamento de conjunto na sociedade em transformação. Isso exigirá uma formação cultural, científica, técnica e social muito alargada para a generalidade dos trabalhadores e, provavelmente, durante muito tempo, delegações de poderes e mecanismos representativos aos mais variados níveis, cujo exercício haverá que manter sobre apertada vigilância.

(15) Para ser totalmente rigoroso, a afirmação feita no texto não está ainda indiscutivelmente provada. É pois apenas uma convicção ideológica, embora baseada em alguns dados científicos esparsos. A neurobiologia e as ciências do cérebro ainda não entraram em força no debate sobre a hereditabilidade das faculdades mentais, que tem vindo a ocorrer sobretudo no campo da psicologia, onde as convicções dogmáticas são muitas mas os estudos de campo que lhes dão suporte são frágeis e metodologicamente arbitrários. As dificuldades começam logo no facto de não haver testes de psicometria infantil (Q. I.) fiáveis e culturalmente isentos, ou sequer uma definição universalmente aceitável de inteligência.
O que está para lá de qualquer dúvida, nesta questão, é que as teses que emergem periódica e obstinadamente – numa linhagem que vai do vitoriano Francis Galton até Arthur Jensen, passando pelo eugenista Lewis Terman e pelas fraudes de sir Cyril Burt - afirmando a existência de uma lei férrea (determinismo biológico) de desigualdade inata nas aptidões intelectuais - seja com base na raça, na classe social ou em ambas – foram completamente falsificadas. Sobre esta questão e numa perspectiva marxista a melhor obra é sem dúvida R. C. Lewontin, Steven Rose e Leon J. Kamin, ‘Not in our Genes – Biology, Ideology and Human Nature’, Pantheon Books, Nova Iorque, 1984. Em português pode ler-se com proveito James M. Lawler, ‘Inteligência, Hereditariedade e Racismo’, Caminho, Lisboa, 1981, apesar de ser uma obra já cientificamente desactualizada e dos equívocos filosóficos do autor. A obra magistral e definitiva é, porém, Stephen Jay Gould, ‘A Falsa Medida do Homem’, Quasi, V. N. Famalicão, 2004. O relatório do painel científico constituído pela American Psychological Association, ‘Intelligence: Knowns and Unknowns’ (1995) – provocado pela polémica em torno de ‘The Bell Curve’ - está disponível em http://www.lrainc.com/swtaboo/taboos/apa_01.html .
Embora a hipótese tenha certamente plausibilidade, não há sequer certeza de que o património genético de base, por si só, possa atribuir à nascença ao seu portador melhores ou piores hipóteses de vir a ser uma pessoa intelectualmente distinta. Quanto à influência do ambiente, as dúvidas são apenas sobre a sua importância relativa. Estudos recentes da equipa do Prof. Mark Bear (M.I.T.) demonstram a influência decisiva da experiência na potenciação ou enfraquecimento das sinapses no cortex cerebral. Estimativas sobre a influência relativa a atribuir à biologia e ao ambiente nas variações de capacidade intelectual dos humanos variam entre 80-20 %, respectivamente, até à admissão da possibilidade de um valor nulo para a hereditabilidade. O que se tem por seguro é que tais características genéticas favoráveis (se e na medida em que elas efectivamente existem com algum peso) só se tornam actuantes e efectivas mediante uma interacção optimizada com o meio ambiente, incluindo o pré-natal. Uma perspectiva dialéctica deste “interaccionismo” deve aliás levar-nos a ultrapassar o mero “aditismo” com o seu estéril debate reducionista sobre percentagens de hereditabilidade.
Admitida porém a existência dessas características inatas favoráveis à formação de uma personalidade intelectualmente dotada, outra grande questão é ainda saber como é que elas se formam. Sabe-se que não há qualquer “gene da inteligência”. Um genótipo favorável à formação de uma mente excepcionalmente capaz será assim sempre composto pela combinação de muitos genes diversos. Ora, esta combinação poligenética não se transmite em bloco de pais para filhos, sofrendo antes, em cada geração, múltiplas variações e recombinações aleatórias que podem ter um efeito global recessivo ou incremental. As vantagens genéticas excepcionais de partida tendem a receder para a média, após duas ou três gerações no máximo. A minha hipótese (hipótese cuja verificação é essencial para o projecto comunista) é que, em amostras suficientemente vastas, todas estas variações genéticas se distribuem de forma equilibrada pelo conjunto da população, de acordo com as leis da probabilidade estatística. Deste modo, supondo efeitos de meio ambiente uniformemente potenciadores, teríamos uma efectiva igualdade, entre todos os universos geográficos e culturais, nas hipóteses de emergência no seu seio de personalidades com méritos excepcionais.

(16) Na verdade, as sociedades de classe surgiram historicamente em agrupamentos humanos que, nomeadamente após a revolução neolítica, foram capazes de produzir um excedente em relação às suas necessidades de sobrevivência estrita e reprodução simples. Mas esse excedente, que permitiria a partir daí a manutenção separada de uma classe dominante improdutiva, criou simultaneamente a percepção da escassez, quer entre o dominados e espoliados (que comparam a sua vida sacrificada com a opulência ostensiva dos seus opressores), quer entre os dominadores, cuja ganância e cupidez não conhecem doravante quaisquer limites, físicos ou morais. Só quando as sociedades humanas produzirem e disponibilizarem bens com uma abundância tal que a apropriação privada se torne absurda é que se restabelecerá o equilíbrio primitivo, agora porém a um nível de complexidade incomparavelmente superior.

(17) A integração da perspectiva feminista na crítica marxista da economia política tem registado progressos, e também alguns impasses. Neste campo, os clássicos são «A Mulher e o Socialismo» de August Bebel (1879) e «As Bases Sociais da Questão Feminina» de Alexandra Kollontai (1909). Entre as feministas da “segunda vaga”, destaque para Lise Vogel, ‘Marxism and the oppression of women: toward a unitary theory’, Rutgers University Press, New Jersey, 1983.
Uma obra científica da maior importância é Claude Meillassoux, ‘Mulheres, Celeiros & Capitais’, Afrontamento, Porto, 1977, que enquadra histórica e antropologicamente a questão da opressão feminina no âmbito de uma articulação de modos de produção, considerando-se a “comunidade doméstica” como a célula de base de um modo de produção (e reprodução) arcaico que todavia sobreviveu até hoje, articulando-se sucessivamente com todos os modos de produção historicamente dominantes, inclusive o capitalista.

(18) Há agora já uma rica bibliografia sobre o impacto decisivo que o crescimento e sofisticação exponencial das capacidades informáticas têm sobre a possibilidade de conceber um planeamento económico rigoroso e participado. Na verdade essa literatura teve início numa altura em que a tecnologia computacional era ainda pouco mais que incipiente. Num artigo seminal datado de 1967, o grande economista polaco Oskar Lange afirmava que se tivesse que retomar a sua polémica de há trinta anos atrás com Friedrich Hayek – o qual sustentava ser o socialismo inviável devido à irreparável incapacidade subjectiva de um qualquer planeador central para recolher e tratar toda a informação que interage espontaneamente e de forma descentralizada no sistema de preços de mercado – dir-lhe-ia simplesmente: “qual é o problema? Coloquemos as equações simultâneas num computador electrónico e teremos a resposta em menos de um segundo”. Cf. Oskar Lange, ‘The computer and the market’ in C. H. Feinstein (ed.), ‘Socialism,Capitalism and Economic Growth: Essays presented to Maurice Dobb’, Cambridge University Press, 1967. Desde então os computadores registaram ganhos gigantescos em capacidade de cálculo, com a constante miniaturização dos circuitos e em particular com a utilização do processamento paralelo. Por outro lado, há a registar que o abaixamento do custo de produção de pequenos computadores para uso pessoal (PC’s) vulgarizou a sua utilização, que se tornou assim acessível a largas camadas de trabalhadores nos países capitalistas mais desenvolvidos.
Para um ponto da situação muito mais detalhado e actualizado é importante a leitura dos estudos de Paul Cockshott (geralmente em colaboração com Allin Cottrell) disponibilizadas em http://www.dcs.gla.ac.uk/~wpc/reports/index.html . Particularmente inovadora, do ponto de vista teórico, parece ser a abordagem de Arno Peters, em ‘Computer Sozialismus:Gespräche mit Konrad Zuse’, Berlim, 2001, obra da qual tenho apenas um conhecimento indirecto devido à barreira linguística. Uma especulação prospectiva interessante (baseada em recursos já existentes) é Andy Pollack, ‘Information Technology and Self-Management’, ensaio incluido em McChesney, Wood and Foster (eds.), ‘Capitalism and the Information Age’, Monthly Review Press, Nova Iorque, 1998.

(19) Eventualmente poder-se-ia pensar em conceder prémios especiais para trabalhadores que revelem uma produtividade acima da média devido à sua superior diligência, zelo e consciência social (as diferenças de remuneração entre trabalhadores com diversos níveis de qualificação resultam desde logo do valor diverso que têm as respectivas forças de trabalho). Nesse caso, porém, a massa salarial total dos trabalhadores de uma determinada categoria terá de ser equivalente ao valor total da força de trabalho respectiva. O ganho dos mais empenhados seria assim a perda dos restantes, que seriam remunerados abaixo do valor da sua força de trabalho.

(20) Cf. por exemplo, no capítulo sobre o capital, a luminosa passagem sub-intitulada “Contradição entre a base da produção burguesa (o valor como medida) e o seu desenvolvimento. Máquinas, etc.”, ‘Grundrisse’, Penguin Classics, ob. cit., pág. 704 ss..

(21) Karl Marx e Friedrich Engels, ‘Manifesto do Partido Comunista’, Edições Avante, Lisboa, 1975, pág. 85.

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