A Questão do Multiculturalismo

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O século XX será provavelmente lembrado como o século da primeira vaga da revolução socialista e da libertação dos povos sujeitos à barbárie colonialista. Não foi um mau século, todas as contas feitas. Em particular, a conquista da independência política pelas nações periféricas que estiveram sujeitas ao jugo dos impérios europeus ficará como um marco histórico, cujo significado ainda demorará algum tempo a revelar-se por inteiro.

A luta contra o colonialismo foi dura. Foi ganha - ou melhor, está ainda a ser ganha - com muitos sacrifícios e com a mobilização das energias, da memória e da criatividade de muitos povos africanos, asiáticos e americanos. Por isso é descorçoante, para um comunista, ver este empreendimento ser tomado e corrompido por um cachorro morto epistemológico como o multiculturalismo. Mas é assim a vida sob o capitalismo. Quando a burguesia é forçada a tomar um passo à retaguarda, ela intenta sempre desvirtuar e integrar a luta emancipatória com que está a ser confrontada, rearranjando-a de modo a servir os seus próprios fins.

A luta contra o colonialismo trouxe de novo à vida e reafirmou a dignidade das tradições culturais não-ocidentais, restaurando a sua historicidade e oferecendo o seu precioso legado ao património comum da humanidade. Agora, chegou o multiculturalismo para nos dizer que... não existe um tal património comum.

Vinho velho em odres novos

Como disse o ensaísta francês Alain Finkielkraut, não haverá hoje muita gente que saque da sua pistola quando ouve falar em cultura, mas em contrapartida, entre os profetas da ‘diferença’, são cada vez mais aqueles que parecem prontos a sacar da sua ‘cultura’ quando confrontados com a palavra pensamento. A recente voga do multiculturalismo (ou relativismo cultural) está aí provando-no-lo, aliás como parte e parcela de uma ofensiva filosófica mais vasta: a do pós-modernismo.

O multiculturalismo pode agora aparecer revestido de roupagens progressistas - como um dos temas-chave da bizarra polémica do “politicamente correcto” (PC) - mas a sua proposição nuclear é directamente retomada da reacção romântica ao Iluminismo e à revolução francesa por pensadores como Gottfried Herder (o “volksgeist”) e Joseph de Maistre. Ela sustenta que os padrões idiomáticos e as tradições culturais são sistemas fechados, incomensuráveis e basicamente incomunicáveis entre si.

O africano ou o asiático não teriam nada a ganhar ou a aprender com a ciência, filosofia ou arte ocidentais (e vice-versa), as quais permanecerão sempre incorporações espúrias introduzidas nas suas próprias concepções e visões do mundo. A história e a cultura universais não existiriam. A teoria da evolução de Darwin não é assim superior nem inferior a qualquer mitologia criacionista, seja ela judaico-cristã ou dos “tristes trópicos”. Elas são apenas incompatíveis e mutuamente excludentes. É isso mesmo que afirma a teoria do conhecimento anarquista de Paul Feyeraband. Um “adeus à razão”, sem dúvida.

Segundo os defensores actuais deste multiculturalismo PC, cada cultura contém em si própria a sua própria rota de desenvolvimento e o particular projecto emancipatório do grupo nacional, étnico, ou mesmo sexual a que pertence. Não haverá assim mais sentido na procura de uma utopia universal, mas sim e apenas de heterotopias particulares e particularistas.

Não é difícil vislumbrar que propósitos serve este paternalismo multiculturalista (sempre tendo presente que as modas filosóficas são raramente o resultado de conspirações mas obedecem de todo o modo a uma certa intencionalidade histórica objectiva). Ele conduz os povos do Terceiro Mundo e as comunidades imigradas nos países do capitalismo central à sua exclusão voluntária dos benefícios do conhecimento técnico e científico mais avançados. À sua generalizada bantustização em bolsas isoladas de pobreza, ignorância e desespero. É, no fundo, uma racionalização sobre a necessidade do capital - obedecendo às leis do desenvolvimento desigual e combinado - divisar um sistema de segmentação hierarquizada de mercados, com particular relevo para o mercado da força de trabalho.

Espalhar as sementes da competição entre os trabalhadores é uma necessidade vital para as classes dirigentes imperialistas, de modo a depreciar generalizadamente o preço do trabalho e assim contrariar a tendência das taxas de juro para o declínio. Ora, esta competição é optimizada num sistema de segmentação etnicizada da força de trabalho, com pouca (mas ainda assim alguma) mobilidade entre os diversos degraus da escada. Aí residem as fontes do moderno racismo, induzido, imposto mesmo, às classes trabalhadoras. A burguesia, criadora e manipuladora da besta, fica de fora pregando a sua suave moralidade multiculturalista. Mas as sementes da competição transformar-se-ão um dia seguramente na árvore da solidariedade mundial de classe, para maior desespero dos perpetradores.

É curioso observar que, quando a burguesia europeia estava em expansão, não se ouvia esta conversa sobre as glórias da diversidade. Todo o ênfase era colocado na missão civilizadora do homem branco e no racionalismo universalista. Agora que o imperialismo se encontra demograficamente enfraquecido nas metrópoles centrais e com problemas na realização do valor, perdendo a sua auto-confiança, é que surge o discurso da diferença radical. O multiculturalismo não se propõe oferecer qualquer reparação pelos crimes passados nem tornar as nações oprimidas livres. Ele serve desígnios muito diversos. Na sua retirada, a burguesia imperialista tenta destruir as pontes que (bem contra a sua vontade) havia erigido entre os povos que dominou em todo o mundo, rejeitando do mesmo passo a ideologia optimista e confiante que a havia levado a proclamar que o mundo era uno.

Enquanto a integração económica do planeta prossegue e se acelera, os mecanismos da acumulação capitalista à escala mundial conduziram a maior parte da humanidade ao isolamento e à espiral viciosa da dependência. O centro do sistema é cada vez mais “global”, mas a periferia vive isolada e completamente sujeita à mediação das metrópoles imperialistas para a realização de quaisquer trocas. Há um eixo explorador Norte-Sul, mas nenhum eixo Sul-Sul. É o centro (as grandes potências) que domina globalmente todos os fluxos relevantes de valor: cativando mercados, controlando e apropriando-se de recursos naturais, explorando força de trabalho barata, recolhendo juros e agora até novas formas de renda (licenças industriais, seguros, fretes, concessões, “franchising”, etc.).

As metrópoles imperialistas controlam todo o circuito do capital e têm acesso exclusivo ao conhecimento científico de ponta e a todos os fora de decisão política relevante. Para a periferia fica reservada a clausura, a ignorância, a irrelevância, sendo-lhe negada qualquer voz ou participação consciente na vida do planeta. Porquê? Porque, diz-nos o multiculturalismo, os povos da periferia têm a sua própria cultura inviolável, diferente e incomensurável com a ocidental. Não há formações sociais mais desenvolvidas que outras. Isso seria uma visão redutora e teleológica da história. O que há é diferentes formas de desenvolvimento sendo esta mesma preciosa diferença que urge preservar...

Multiculturalismo e eurocentrismo

É-nos dito que o multiculturalismo é a alternativa ao eurocentrismo. Dificilmente poderemos crê-lo. Enquanto houver capitalismo é absolutamente certo que as erróneas e preconceituosas concepções ocidentais àcerca do ‘outro’ continuarão a ter ampla aceitação. Na verdade, o que o multiculturalismo faz é justificar este profundo estranhamento (apesar da crescente mercantilização de produtos ‘exóticos’, da música às religiões) decretando que a compreensão entre diferentes culturas é impossível. É precisamente porque não podemos compreender que deveríamos ‘tolerar’.

Outro curioso resultado (ou será uma premissa?) do multiculturalismo é a confusão que ele promove entre modernidade e ocidentalização. Todas as características da vida moderna são suposto ser marcas de influência ocidental. Assim, de modo a não perder a sua ‘alma’ (os ocidentais tendo já pedido a sua), os povos não-ocidentais deveriam pôr-se em guarda contra quaisquer tecnologias e conceitos modernos. Ora, este é sem dúvida um excelente mecanismo para degradar a justa luta contra a exploração e opressão imperialistas numa reacção confusa e primária contra influências externas, incluindo, como é óbvio, ideias ‘estrangeiras’ tais como desenvolvimento e emancipação, para não falar já de marxismo e internacionalismo proletário.

É claro que, após a expansão europeia (colonialismo), a linha ideal de projecção do que poderia ter sido um desenvolvimento histórico completamente autónomo da maioria das sociedades não-ocidentais foi definitivamente quebrada. A ‘pureza’ perdeu-se para sempre. Mas isso não deveria obscurecer por um momento o facto de que essas sociedades estavam e estão - embora agora obstruídas pelas grilhetas do imperialismo - desenvolvendo-se de modo independente rumo aos mesmos ideais de liberdade, igualdade e cidadania que a revolução burguesa havia prometido (e traído) no Ocidente. É precisamente da atrofia que o imperialismo causou ao desenvolvimento histórico das sociedades não-ocidentais que o multiculturalismo se alimenta hoje para expôr o sua argumentação altaneira, viciada e hipócrita.

O que nós hoje vemos surgir como projectos reintegradores por todo o lado onde movimentos reaccionários e tradicionalistas estão em ascenso - nomeadamente na Índia e em grande parte dos países muçulmanos - são de facto fabricações, nas quais a rica e sofisticada tradição cultural destes povos é expurgada de todos os seus elementos de laicismo e universalismo. Só aquilo que é paroquial e supersticioso, bem como as mais cruas manifestações de jingoismo regressivo e anti-feminino é que são celebradas como tradições genuínas. E é precisamente isto que nos é pedido que ‘toleremos’. Empreendimento racional, progresso, inovação e emancipação são suposto serem idiossincracias ocidentais (a superstição europeia) que não devem ser ‘impostas’ a outros.

O multiculturalismo é o novo nome do racismo, agora despido do seu desacreditado determinismo biológico que aparece substituído por um ainda mais rígido determinismo ‘cultural’. Contra ele deveremos sustentar que a humanidade é uma e una. A superação do presente sistema económico mundial será obra e projecto comum de todos os povos, com base no saber humano mais avançado. A solidariedade trans-étnica irá muito mais longe e profundo do que a ‘tolerância’ surda-muda do multiculturalismo burguês, até ao advento de uma consciência de classe verdadeiramente cosmopolita.

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Publicado na revista 'Política Operária' nº 75, Maio-Junho de 2000.

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