Modernidade e Mundialismo


A poeira come�a agora a assentar sobre a querela dos modernos e p�s-modernos, deixando � vista uma paisagem filos�fica de recorte algo amb�guo. Os argumentos foram quase todos gastos a desfazer equ�vocos e malentendidos, com muitos recuos e mal disfar�adas retrata��es de permeio. Vou gastar esta vossa e minha pr�xima meia hora com um pequeno esbo�o hist�rico de enquadramento da quest�o. F�-lo-ei em duas vias paralelas. Primeiro pela exposi��o de alguns dados fundamentais da hist�ria econ�mica e social do Ocidente, depois atrav�s de uma excurs�o pela hist�ria das ideias que, simultaneamente, foram moldando a imagem que este faz de si pr�prio.

N�o tenho aqui que tomar partido sobre qual o tipo e a estrutura da articula��o existente entre estes dois mundos: o da vida e o das ideias. Esta pequena conversa n�o vai ser uma Grande Narrativa nem uma teodiceia laica. Mas sabemos hoje todos mais ou menos que a produ��o da subsist�ncia alargada das sociedades humanas as vai compelindo atrav�s de fases hist�ricas sucessivas de organiza��o social e pol�tica, as quais, por sua vez, segregam os seus pr�prios universos mentais particulares. Tudo o mais � debat�vel, naturalmente. Quando absolutamente tudo for descoberto e estabelecido sobre as vias por que a humanidade tra�a o seu pr�prio acontecer, todo di�logo e luta cessar�o. Mergulharemos porventura no sil�ncio, l� onde a luz e as trevas convergem por fim.

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1.
Pelos finais do s�culo XV, surgiram na Europa os embri�es de um mundo novo. Em certas cidades da It�lia e da Flandres, as corpora��es de art�fices medievais, com a sua imut�vel estrutura hier�rquica, come�am a dar lugar � manufactura capitalista. Para dar resposta �s oportunidades oferecidas pelo novo com�rcio ultramarino, certos empreendedores (geralmente mercadores mas tamb�m alguns ex-mestres corporativos) resolvem reunir num mesmo local de produ��o os instrumentos e as mat�rias-primas, por si possu�dos, a fim de os transformar em mercadorias por interm�dio da interven��o de trabalho assalariado. Esta nova organiza��o produtiva n�o visa j� a satisfa��o de necessidades locais determinadas. Visa, atrav�s da venda dos seus produtos, a obten��o de um lucro que lhe permita a sua pr�pria reprodu��o alargada. Interv�m aqui uma l�gica acumulativa inteiramente nova, que ir� proporcionar um impulso espantoso ao desenvolvimento das for�as produtivas. Por outro lado, a produ��o e o lucro tornam-se fins em si pr�prios, separados das necessidades concretas do consumidor.

Para o capitalista, o mercado � uma entidade abstracta mais ou menos manipul�vel, n�o mais o sr. Van der Elst que precisa de uns sapatos novos ou a sra. Armand que quer um aparador. O que quero aqui salientar � que, desde a sua nascen�a, o capitalismo est� indissol�velmente ligado � expans�o europeia. Nada de admirar, pois, como veremos, que lhe surjam associadas ideologias cosmopolitas como a renascen�a, o iluminismo e o humanismo.

Preeminente entre estas ideias novas est�, como sabemos, a de modernidade e de progresso hist�rico linear cumulativo, por oposi��o � cosmologia c�clica dos antigos e dos medievais (ligada, como � intuitivo, ao modo de vida agr�cola). O capitalismo fez-nos descobrir subitamente que o mundo � um, que existe uma humanidade (ou um Homem com letra grande) e que esta visa o seu melhoramento e esclarecimento progressivos.

No per�odo inicial da civiliza��o capitalista, at� finais do s�culo XVIII, a vida econ�mica era dominada pelo com�rcio mar�timo de longo curso. As trocas com a �sia e a �frica eram naturalmente, trocas de valores n�o equivalentes, visto que eram firmadas, sob mais ou menos coac��o, com civiliza��es baseadas noutro modo de produ��o. Quanto � Am�rica, predominaram desde logo o esbulho e a coloniza��o. Foram os fabulosos lucros auferidos por este trato (de que Portugal gozou um ef�mero manancial) que permitiram o surto acumulador de capacidade produtiva nos pa�ses da Europa do Norte. E � num destes pa�ses, a Inglaterra, na altura j� possuidora da maior esquadra e frota mercantil do mundo, que ocorre a revolu��o industrial.

A produ��o manufactureira � suplantada pelo sistema de f�brica, baseada em instrumentos utilizadores de energia artificial. O centro de gravidade da vida econ�miva transfere-se do com�rcio para a empresa produtiva, detida individualmente, empenhada numa feroz e darwiniana concorr�ncia com as suas rivais. O capitalista, detentor dos meios de produ��o, adquire for�a de trabalho liberta dos v�nculos de servid�o feudal (e igualmente "liberta" de meios pr�prios de subsist�ncia) assim como mat�rias primas. Estas �ltimas s�o transformadas, pelo trabalho, em mercadorias para venda no mercado mundial. Realizado por este meio o seu valor, o processo produtivo pode retomar-se numa base alargada. Vencedora dos espanh�is, dos franceses e dos holandeses, a p�rfida Albion inaugura ent�o uma nova era na hist�ria universal: o imperialismo global.

Vem j� do s�culo XVII a f�til resist�ncia do esp�rito de Tordesilhas � doutrina do Mare Liberum de Hugo Gr�cio. O novo imperialismo capitalista difere dos seus antecessores, para al�m do seu �mbito universal, por ter produzido para os seus fins a mais engenhoso embuste ideol�gico alguma vez concebido: o liberalismo. Todos os monop�lios, privil�gios e barreiras comerciais devem por princ�pio ser derrubados em nome da racionalidade econ�mica. As na��es devem especializar-se na produ��o dos bens para que disponham de uma vantagem comparativa e troc�-los livremente no mercado mundial. Como foi desde logo �bvio, esta doutrina, imposta pelas armas, favoreceu a acumula��o de riqueza e a renova��o das capacidades produtivas no centro do mundo capitalista e instaurou rela��es de troca desigual � escala planet�ria. Mas teria e tem ainda um enorme sucesso. Assim como a Coca-Cola hoje em dia clama que a exist�ncia dos seus "placards" publicit�rias marca as fronteiras do mundo civilizado, assim o s�culo XIX foi assistindo, da �ndia a Cant�o e a T�quio, ao troar das canhoneiras anunciador da boa nova do livre cambismo. O mundo � uno e a mercadoria � o seu profeta.

Um punhado de na��es houve (Fran�a, E.U.A., Alemanha) que, n�o tendo sofrido a incid�ncia da hegemonia militar brit�nica, foram insens�veis ao canto da sereia liberal. Armadas de instrumentos proteccionistas, foram desenvolvendo a sua pr�pria acumula��o capitalista numa base industrial moderna. Pelo final do s�culo XIX, estavam em condi��es de competir globalmente com os brit�nicos e abriu-se a era das rivalidades imperialistas que levaria, j� no nosso s�culo, � eclos�o de duas guerras mundiais. Entretanto, o capitalismo tinha sofrido uma transforma��o profunda com a crescente concentra��o dos capitais em gigantescas corpora��es monopolistas ou oligopolistas e com o ascendente da import�ncia do capital financeiro. As empresas determinantes j� n�o s�o possuidas por capitalistas individuais em regime de concorr�ncia mas por gigantescas sociedades an�nimas que entre si manipulam o mercado a seu bel prazer. Uma estreita concerta��o nasce entre capital industrial, financeiro e o poder estadual no sentido do crescimento e da expans�o. Abre-se a desenfreada corrida �s possess�es coloniais culminada na confer�ncia de Berlim (1884). O liberalismo universalista cede momentaneamente o passo �s doutrinas racistas e chauvinistas que seriam os pais ideol�gicos do fascismo.

Ap�s o grande desastre de 1929, a classe capitalista assustada pede a interven��o do Estado, que passa a intervir crescentemente tamb�m na regula��o da pr�pria vida econ�mica. � o triunfo do keynesianismo, da social democracia e, por outro lado, do dirigismo estatal ao estilo mussolino-hitleriano ou estalinista. E novamente o universalismo racionalista cede o passo �s doutrinas organicistas e voluntaristas. Seria ap�s a II Guerra Mundial e a ascens�o de uma nova super-pot�ncia global indisputada, os E.U.A., que o liberalismo tomaria novamente a dianteira, agora reanimado ainda com a queda da Uni�o Sovi�tica, seu competidor que o foi apenas em termos militares e, em certa medida, ideol�gicos.

O surto imperialista norte-americano foi animado pelo curso internacional do d�lar e pela ascens�o fulgurante de um novo fen�meno econ�mico: a grande corpora��o multinacional. Uma superestrutura burocr�tica (F.M.I., Banco Mundial, G.A.T.T., O.N.U. e o seu Conselho de Seguran�a) ergue-se entretanto para consagrar o novo sistema mundial e vigiar o cumprimento escrupuloso das suas regras. Paira no ar a ideia de um governo mundial. Fukuyama avan�a com a sua tese do "fim da Hist�ria", pelo triunfo definitivo de uma �nica ideologia global, a da democracia representativa e da livre empresa.

Entretanto, o sistema de produ��o capitalista vai conhecendo crescentes problemas e disfun��es, devidas � sua caracter�stica racionalidade econ�mica. A t�o difamada baixa tendencial da taxa de lucro faz inequivocamente sentir os seus efeitos. Uma enorme capacidade produtiva jaz inutilizada. Uma grande parte do excedente econ�mico � aplicada em despesas improdutivas (militares, burocr�ticas, de incitamento ao consumo, condicionamento ideol�gico, etc.), indispens�veis todavia � sobreviv�ncia do sistema. A partir dos finais dos anos 70 o capitalismo entra numa fase de estagna��o permanente. A revolu��o cient�fica e tecnol�gica ocorrida n�o teve qualquer tradu��o significativa em termos de capacidade produtiva alargada, provocando apenas o desemprego em massa. � patente a fal�ncia total das receitas tradicionais de pol�tica econ�mica e crescem os sinais de entropia generalizada no tecido social das sociedades ocidentais. Nos pa�ses perdedores da "nova ordem internacional" cresce o desespero das popula��es, ascendem os movimentos de revolta tradicionalista e anti-moderna, campeiam o caos institucional e a regress�o � barb�rie.

Assiste-se ent�o ao paradoxo da proclamada fal�ncia do projecto universalista e emancipador da modernidade, no momento mesmo em que existem os meios t�cnicos de estabelecer canais de circula��o intensa, em tempo real, de informa��o entre os quatro cantos do planeta. A mundializa��o da economia trouxe-nos, sob o imp�rio das rela��es mercantis, uma balcaniza��o global das refer�ncias culturais e ideol�gicas, a proclamada incomensurabilidade das experi�ncias �ticas, a pulveriza��o dos projectos de liberta��o e de convivialidade ut�pica. � este enfim o terreno do novo cinismo p�s-moderno e da ironia relativista deste fim de s�culo.

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2.
Fa�amos agora um brev�ssimo apanhado do que de mais importante se passou entretanto na hist�ria do pensamento. O estilha�ar do enclausuramento aut�rquico da sociedade feudal teve a sua tradu��o ideol�gica nesse complexo movimento de ideias que ficou conhecido como o renascimento. A mundivid�ncia medieval era plana e chata como uma pintura bidimensional. O pensamento dos antigos foi apropriado acr�ticamente pela patr�stica e pelos doutores da Igreja, sem qualquer esfor�o de perspectiva��o hist�rica. O esp�rito sendo considerado intemporal, tratava-se de copiar infindavelmente as suas obras maiores para uso das pr�ximas gera��es.

Foram os homens da renascen�a que, juntamente com a no��o de profundidade na pintura, descobriram (ou melhor, conceberam) esse postulado extraordin�rio de que as ideias tinham o seu tempo pr�prio e se contextualizavam com as necessidades da sua �poca. Assim nasceu a ideia moderna de Hist�ria e, poderemos diz�-lo, foi lan�ado o primeiro alicerce da modernidade. A doutrina da douta ignor�ncia de Nicola de Cusa separa ent�o firmemente o conhecimento divino do conhecimento terrestre, rasgando os caminhos filos�ficos para o surto da ci�ncia experimental. O pante�smo imanentista e o "furor her�ico" de Giordano Bruno prop�e ao homem renascentista um universo infinito, actualizado em cada gesto concreto da sua exist�ncia quotidiana, simultaneamente como cria��o individual e impulso de transforma��o social. � j� um esbo�o completo do contrato f�ustico da modernidade, bem como uma antecipa��o do de�smo de Espinosa e da teoria leibniziana dos m�nadas.

O pensamento iluminista de Locke e dos enciclopedistas franceses foi o segundo marco fundamental da modernidade. O iluminismo parte da cren�a nos poderes ilimitados da raz�o humana para compreender o mundo e a sociedade. A humanidade est� empenhada numa lenta mas consolidada ascen��o das trevas e da supersti��o para o conhecimento racional e um cont�nuo aperfei�oamento moral. Estamos na �poca do Estado absolutista, a f�rmula que o capitalismo achou para enquadrar nacionalmente os mercados nascentes, dotando-os de uma s�lido travejamento pol�tico e firme protec��o aduaneira. O Estado-na��o setecentista (de que o Marqu�s de Pombal foi o mais alto defensor em Portugal) ser� ent�o o pr�prio modelo da racionalidade pol�tica, estando destinado a conhecer - atrav�s dos seus derivados constitucionalistas e republicanos - um enorme sucesso at� aos nossos dias. O optimismo racionalista teria o sua express�o mais extrema (e desesperada) j� bem dentro do s�culo XIX, no cientismo e na doutrina positivista de Auguste Comte. O evolucionismo de inspira��o darwiniana prolongaria ainda alguns dos seus temas mais caros - nomeadamente a cren�a num progresso hist�rico linear - at� bem dentro do nosso s�culo. Serviu igualmente de justifica��o ideol�gica para as agress�es imperialistas que a expans�o capitalista sequente � revolu��o industrial reclamava.

O s�culo XIX assistiu � emerg�ncia do movimento oper�rio como actor pol�tico e social. O g�nio de Karl Marx dot�-lo-ia com a mais formid�vel arma te�rica alguma vez forjada no terreno da luta de classes: o materialismo hist�rico. Est� hoje em moda (com algum apoio textual de circunst�ncia, sobretudo em Engels) associar o marxismo ao darwinismo, degradando-o assim num mero evolucionismo social, tribut�rio do optimismo cientista do s�culo passado. Este seria o Marx demiurgo, respons�vel por boa parte das cat�strofes hist�ricas do s�culo XX. Mas um vulto intelectual como o autor de 'O Capital' n�o se deixa assim "ultrapassar" t�o facilmente. A quest�o posta pelo materialismo hist�rico � a da busca de uma chave para a compreens�o da Hist�ria. Para a produ��o da sua subsist�ncia, as sociedades humanas s�o levadas a organizarem-se, criando-se historicamente certos tipos ideais de rela��es de produ��o (os chamados modos de produ��o: esclavagista, feudal, capitalista, etc.). Estas rela��es s�o determinadas pela tecnologia do trabalho usada - os meios de produ��o -, cuja evolu��o tende a for�ar mudan�as sociais e pol�ticas, de modo a optimizar as suas potencialidades produtivas. � em volta do n� g�rdio formado pelos meios de produ��o e pelas rela��es de produ��o que, por interm�dio da luta de classes, as sociedades se v�o transformando historicamente e, em consequ�ncia, transformando tamb�m o modo como reflectem sobre si pr�prias e se colocam as quest�es fundamentais da exist�ncia humana. O materialismo hist�rico n�o pode ser provado ou desmentido pelos factos, por isso que n�o � uma ci�ncia em sentido popperiano. � um instrumento te�rico guia para a ac��o e, neste sentido, est� certamente longe ainda de ter dito a sua �ltima palavra.

O espelho liso da raz�o universal seria, nos finais do s�culo XIX, quebrado por um imenso grito solit�rio: o de Friedrich Nietzsche. A verdade � um embuste e a raz�o um instrumento de dom�nio ao servi�o da vontade de poder dos fracos e ressentidos. S� tem nobreza a pot�ncia nua e crua do acto de afirma��o de si. As racionaliza��es s�o recursos de que se serve o ressentimento, tentando com a sua l�gica doentia amansar e moderar os excessos da for�a afirmativa, originariamente livre e sem peias. De resto, a razoabilidade de um enunciado depende sempre directamente da perspectiva de quem o formula. A verdade de A � incomensur�vel com a verdade de B ou de C. E aqui vai j� contido o essencial dos postulados filos�ficos p�s-modernos.

Um outro golpe mortal no projecto iluminista da raz�o universal seria ainda assestado por Sigmund Freud e a escola psicanal�tica. Os seus trabalhos v�m afirmar que o essencial da vida mental do homem se passa fora do seu dom�nio consciente. Que as esperan�as, anseios e fobias da humanidade se forjam e actuam no enorme continente negro do seu inconsciente. Estava assim aberto o caminho, no in�cio deste s�culo, para a festa sensual e a celebra��o irracionalista do primeiro modernismo. Da-da oficia as n�pcias e o sonho da raz�o produzir� os seus monstros. Andr� Breton dir� que o �nico acto surrealista digno desse nome � o gesto do solit�rio que dispara ao acaso sobre uma multid�o.

Com a f�sica qu�ntica, o perspectivismo chega ao dom�nio das part�culas elementares. Assistir-se-� ainda, sucessivamente, � morte do homem proclamada pelo estruturalismo e � decad�ncia do romance como paradigma arquet�pico do conhecimento est�tico. O caos determinista � agora a palavra de ordem na ci�ncia experimental. O nihilo-anarquismo epistemol�gico de Paul Feyeraband faz esc�ndalo mas ganha numerosos c�mplices secretos. Nas Faculdades de Letras triunfam as pr�ticas desconstrucionistas na an�lise dos enunciados textuais, sem distin��o de g�neros. Minada por sucessivas "desmontagens", a pr�pria ideia de obra de arte cai finalmente no mais profundo descr�dito e o g�nio criador mergulha na irris�o.

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3.
A ideia base do discurso p�s-moderno � sedutora, sen�o mesmo probante. O s�culo XX assistiu � fal�ncia de todas as estrat�gias emancipadoras baseadas em discursos fortes (as c�lebres "grandes narrativas" de Lyotard) sobre a condi��o humana e seu destino. Em vez de nos obstinarmos em torno destes ou de novos grandes sistemas de pensamento, devemo-nos abrir confiadamente ao puro fluir do acontecimento, celebrar o instante presente sem nos preocuparmos com a sua inser��o em qualquer matriz anal�tica dada ou a construir. Tanto a weltanschaung (concep��o do mundo) como a ambi��o da gesamtkunstwerk (obra de arte total), s�o desacreditadas. Os modernos pensavam que o progresso hist�rico nos era trazido por vagas sucessivas de novas escolas e pr�ticas de ambi��o totalizante. Da� o seu importante conceito de vanguarda, fosse ela pol�tica, cultural, est�tica, etc.. Acreditando e lutando por um mundo novo, estes movimentos caracterizavam-se pela sua coer�ncia interna sistem�tica e pelo prop�sito de "conquistar" a totalidade do espa�o da pr�tica social a que se referiam. Os p�s-modernos deixaram de acreditar no progresso e falam de trans-vanguarda (Bonito Oliva), de pastiche, am�lgama, revivalismo, colagem aleat�ria de refer�ncias. � a ideia de um "pensamento fraco" (Gianni Vattimo), ir�nico, contingente, fragment�rio, hedonista, sincr�tico, paradoxal.

O discurso p�s-moderno n�o nasceu de gera��o espont�nea, decantado atrav�s de gera��es sucessivas de fil�sofos profissionais. Corresponde e d� express�o ideol�gica a um dado est�dio de evolu��o do capitalismo, a que podemos chamar e tem sido chamado "capitalismo tardio" (Ernest Mandel), "sociedade do espect�culo" (Guy Debord e seguidores) ou "decomposi��o social" (tese da Corrente Comunista Internacional). Vivemos num mundo governado por impulsos c�leres, informa��o instant�nea e extrema complexifica��o dos fen�menos sociais. Vivemos tamb�m no reino da opacidade total, da manipula��o cega e da anomia. A organiza��o da produ��o � disfuncional, inadaptada �s novas capacidades produtivas emergentes. Os ciclos econ�micos tornam-se imprevis�veis. Os pol�ticos nada sabem, sen�o ler sondagens e sorrir para as c�maras. Os cientistas sociais n�o t�m modelos te�ricos e previsionais capazes nem solu��o para os problemas concretos. Os oprimidos n�o sabem que direc��o dar �s suas lutas nem que aliados buscar. � como se a roda da Hist�ria crescesse desmesuradamente, submergida a 9/10 no lodo e na treva, impulsionada por for�as ocultas ou irracionais. No momento da explos�o das tecnologias da informa��o, aparece como cada vez mais distante a utopia de uma sociedade transparente �s suas pr�prias determina��es, contempor�nea das suas causas e conscientemente actuante sobre elas.

Os chamados pensadores da suspeita ensinaram-nos que h� sempre que procurar uma causa real oculta sob o v�u da apar�ncia dos fen�menos. Hoje, � como se por baixo de um manto dissimulador apenas pud�ssemos encontrar um outro e assim sucessivamente at� � completa irris�o da pr�pria no��o de real. As m�scaras dan�am enlouquecidas. Facto e fic��o, ci�ncia e embuste ideol�gico s�o indistingu�veis no carnaval da p�s-modernidade. Sendo o mundo e o homem finalmente inapreens�veis, os reclames de Luciano Benetton v�m lembrar-nos que a solidariedade � redonda e lisa como uma batata nova. Isto - o mundo contempor�neo, com todo o seu drama, grandeza e abjec��o - n�o � finalmente para perceber, � para dan�ar.

Mas a que prop�sito vem esta festa? Dois ter�os da humanidade vegetam na mis�ria e na ignor�ncia extremas e o planeta vive perante a amea�a de colapso ecol�gico. Do lado do pensamento cr�tico, o que h� a retorquir � que do que se trata n�o � de compreender ou desvendar o mundo. Para isso h� os santos, os profetas e os tele-evangelistas. O que se trata, como h� 150 anos algu�m lembrou, � de o transformar, pela interven��o de ferramentas conceptuais eficazes e adequadas. A raz�o n�o produz qualquer revela��o de sentido ou finalidade, mas � o instrumento de que dispomos para intervir criativamente sobre o que nos rodeia. � a alavanca de Arquimedes. Para levantar o mundo, basta aplic�-la resolutamente tomando um ponto de apoio ficcionado. Fic��es actuantes, efabula��es veros�meis e percucientes. Do que precisamos hoje n�o � de humildade e ren�ncia, como prega um certo pensamento conservacionista anti-f�ustico, mas sim de mais arrojo intelectual e viol�ncia te�rica. O alegre demissionismo dos p�s-modernos � a p�fia melopeia que nos acompanhar� at� ao barranco de cegos em que se precipita a civiliza��o ocidental.

Associada ao discurso p�s-moderno, por vezes indistingu�vel dele, est� a recente voga do multiculturalismo ou do relativismo cultural. Ela hoje aparece-nos revestida de tonalidades progressistas, sendo mesmo um dos temas centrais na bizarra pol�mica do "pol�ticamente correcto" (PC). A ideia central por�m - a de que os padr�es e tradi��es culturais s�o incomensur�veis entre si - vem j� de Herder e Joseph de Maistre, expoentes da reac��o rom�ntica ao optimismo iluminista no s�culo XIX. As culturas nacionais seriam sistemas fechados. O africano ou o asi�tico n�o t�m nada a esperar da ci�ncia, da filosofia ou da literatura ocidentais, as quais ser�o sempre corpos estranhos introduzidos nas suas pr�prias concep��es e mundivid�ncia. N�o havendo nada a que se possa chamar cultura universal, a teoria evolucionista de Darwin n�o � superior nem inferior a qualquer mitologia criacionista ind�gena. S�o apenas incompat�veis e mutuamente excludentes. Segundo os modernos defensores PC do multiculturalismo, cada cultura encerra em si as suas pr�prias vias de desenvolvimento e o projecto de emancipa��o particular do grupo nacional, �tnico ou mesmo sexual a que pertence. N�o faz mais sentido pensar uma utopia universal, mas apenas heterotopias particulares e particularistas.

N�o � dif�cil perscrutar ao que vem e onde nos conduz este paternalismo multiculturalista. Leva os povos do terceiro-mundo e as minorias emigrantes nos pa�ses do centro � exclus�o volunt�ria dos benef�cios da civiliza��o tecnol�gica e do saber mais avan�ado. � sua bantustiza��o generalizada. Enquanto progride aceleradamente a integra��o econ�mica do planeta, os mecanismos da acumula��o capitalista � escala mundial conduzem todavia uma grande parte da humanidade ao isolamento e � autarcia. O mundo � um s�, � verdade, mas apenas para aqueles que possuem os meios de produ��o mais avan�ados. Esses dominam todos os seus recursos e exploram a sua m�o de obra em todos os azimutes. Controlam todo o circuito do capital e t�m acesso reservado ao saber cient�fico e aos mecanismos de decis�o pol�tica relevante. Para os outros, restar� a ignor�ncia, o enclausuramento, a irrelev�ncia. Pertencem ao sistema mundial enquanto m�o de obra explorada, facultadores de acesso a recursos naturais e h�spedes de res�duos industriais t�xicos, mas j� n�o enquanto participantes conscientes e vozes activas na vida do planeta. Porqu�? Porque pertencem a uma cultura pr�pria inviol�vel, diversa e incomensur�vel com a ocidental... O multiculturalismo � o novo nome do racismo. Contra ele deve ser sustentado que a humanidade � una e a sua emancipa��o global, a supera��o do presente sistema econ�mico mundial baseado na explora��o da for�a de trabalho, ser� obra e projecto comum de todos os seus povos com base no saber mais avan�ado. Ou n�o ser� nunca.

Nos anos 70 e 80, apareceram alguns comentadores a apregoar uma mudan�a radical no modelo produtivo das sociedades mais avan�adas. Estar�amos a entrar numa era p�s-industrial, na crista da "terceira vaga" para citar o t�tulo de um famoso best-seller de Alvin Toffler. A era industrial (alguns dir�o moderna) caracterizava-se pela produ��o em s�rie, pela padroniza��o dos comportamentos e estereotipiza��o do gosto. Foram obra sua coisas como a escolaridade obrigat�ria e gratuita, o sufr�gio universal, a imprensa de grande circula��o, o pronto a vestir, os sistemas de seguran�a social, partidos pol�ticos e sindicatos, etc., etc.. Era o reino das cadeias de produ��o e da massifica��o. Hoje, por contraste, estar�amos no limiar de uma era em que a produ��o ser� desmassificada, dirigida imediatamente aos interesses e gostos individuais do consumidor ou de segmentos muito restritos e particulares de mercado. As solidariedades mec�nicas e as identidades fortes de grupo ou de classe dissolvem-se pela sua pulveriza��o em mir�ades de pequenas comunidades informais. Aqui os p�s-industriais encontram-se com os multiculturalistas.

� meu receio por�m que, sob esta apologia de tons simp�ticos e mesmo libert�rios, se oculte uma realidade bem mais sombria: a realidade da exclus�o social, da precariza��o, da desqualifica��o, da pauperiza��o e da marginaliza��o de crescentes sectores da popula��o produtiva, provocadas pela crise de ajustamento do capitalismo aos novos meios de produ��o. �, uma vez mais, a eros�o da no��o de solidariedade mascarada de liberta��o da diferen�a.

H�, por�m, um argumento realmente forte no paiol dos p�s-modernos. O crescimento do excedente produtivo e a complexifica��o da vida social a ele associada, t�m conduzindo ao longo da hist�ria do pensamento ao progressivo abandono das suas chamadas grandes funda��es: Deus, o Homem, a Raz�o, a Hist�ria, etc. As filosofias da ess�ncia e do sujeito mergulharam no impasse. A humanidade vem-se emancipando continuamente dos seus mitos escatol�gicos e finalistas, mergulhando mais e mais decididamente na conting�ncia, na incerteza e no desamparo. Como dizia h� tempos Bernard-Henry L�vy: "Deus morreu, Marx morreu e eu mesmo n�o me sinto l� muito bem". Segundo os p�s-modernos, o projecto da modernidade ter-se-ia limitado a substituir os velhos dogmas da provid�ncia divina e da reden��o por um seu suced�neo laico, o complexo mitol�gico formado pela hist�ria, o progresso e a emancipa��o. Estes mesmos s�o agora os alvos centrais da sua cr�tica.

� certo que as no��es de finalidade e necessidade hist�rica t�m de cair. Elas s�o varia��es sobre o tema teol�gico do destino que afluem de facto ocasionalmente nos projectos emancipadores modernos, nomeadamente no marxismo. O mundo de hoje n�o as comporta mais. Mas a meu ver elas n�o s�o essenciais � defini��o de modernidade. Pelo contr�rio, aquele trajecto anti-fundacionalista � que � precisamente a caracter�stica fundamental do pensamento moderno. O homem moderno � aquele que, na express�o de Hegel, substituiu as suas ora��es matinais pela leitura do jornal. � agn�stico, mundano, intr�pido, voraz, her�ico, solit�rio e inconsol�vel. Foi a sua insatisfa��o e inquietude permanentes que o levaram a afastar os sucessivos patamares de conforto a apaziguamento ontol�gico a que ia acedendo. Sabe hoje que a hist�ria � um processo sem sujeito nem fim, destitu�do de um qualquer encadeamento causal acess�vel ao conhecimento. Sabe que as suas certezas e esperan�as de hoje ser�o ru�nas amanh� e que finalmente nada nem ningu�m ter� salva��o. E contudo n�o abdica de compreender e agir conscientemente sobre a sua circunst�ncia.

O nihilismo e o a-teleologismo, n�o t�m de conduzir ao demissionismo intelectual e � folia epicurista que s�o o pathos caracter�stico do discurso p�s-moderno. Os antigos diziam primum vivere, deinde philosophare. Primeiro h� que viver e s� depois filosofar. N�o � necess�ria nenhuma grande narrativa sobre o curso da Hist�ria ou o destino da humanidade para convocar os oprimidos e exclu�dos do sistema econ�mico mundial � ac��o libertadora. Basta uma teoria do valor aprofundada e a renova��o da economia pol�tica marxista. Este basta � naturalmente ir�nico. Trata-se de tarefas cicl�picas, de uma dimens�o intelectual incompar�vel com as bolas de sab�o de s�culos de filosofia especulativa. O que � a riqueza? Onde se cria? Quem se apropria dela e a que t�tulo? A estas perguntas a "ci�ncia" econ�mica oficial diz nada ou responde com evasivas ideol�gicas. Uma boa teoria cr�tica n�o conferir� qualquer certeza ontol�gica sobre estas quest�es. Mas poder� ser uma preciosa ferramenta para derrubar a ordem vigente e construir uma outra mais solid�ria e ecologicamente mais sustent�vel. Ou pode simplesmente tirar o actual sistema produtivo an�rquico e irracional do seu impasse, conferindo algum sentido e transpar�ncia �s trocas entre os seus v�rios factores. No limite, poder� salvar a vida no planeta, incluindo naturalmente a de todos os pensadores metaf�sicos.

A raz�o cr�tica sabe que trabalha sem funda��es, que os seus m�todos s�o discut�veis, que a sua ci�ncia � de cis�o e de confronto, insuscept�vel de prova objectiva. Opera sem qualquer cau��o epistemol�gica. N�o busca a verdade mas t�o s� ser um utens�lio da causa dos explorados e dos exclu�dos de todo o planeta. Sabe tamb�m que s� a hist�ria julgar� um dia do maior ou menor acerto das suas teses e que, de todo o modo, elas sempre caducar�o naturalmente quando o campo problem�tico de que partiram deixar de ter actualidade. Totalmente imersa naquilo que algu�m j� apelidou de "essa imensa ins�nia do mundo", ser� uma servidora da vida concreta desses homens e mulheres que persistem insensatamente, na lama e no esquecimento, em edificar as magn�ficas cidades do futuro. De l� lhes chegam os t�nues raios de uma luz amb�gua e ir�nica. N�o h� esperan�a, e assim mesmo eles esperam.

Para concluir, julgo que a integra��o sistem�tica da economia mundial nos coloca irrecusavelmente face � ess�ncia inalterada do desafio da modernidade: o de um projecto para a emancipa��o global e solid�ria da humanidade. Este desafio, actualmente, � o da liberta��o do jugo das rela��es mercantis que esmagam a grande maioria da popula��o do planeta, amea�am o seu equil�brio ecol�gico e constituem um entrave ao pleno aproveitamento das capacidades produtivas j� dispon�veis. Falo aqui de emancipa��o, mas n�o a entendo naturalmente como um avan�o rumo a um qualquer futuro radioso prefigur�vel. O homem n�o ascende para a luz e n�o escrever� nunca a sua pr�pria hist�ria num caderno pautado at� ao infinito. Mas pode, em cada momento, delimitar racionalmente o campo das suas op��es, inscritas que est�o estas j� sempre no desenvolvimento das contradi��es da sua situa��o presente. E possui ainda essa qualidade quase dir�amos providencial de se ir forjando sempre novos instrumentos te�ricos � medida que se lhe colocam diferentes e mais complexos desafios. Nunca se p�s a si pr�prio um problema de que n�o possuisse os elementos necess�rios � solu��o. Dividido por interesses antag�nicos, consciente da sua radical solid�o e do tr�gico absurdo da sua condi��o, carregar� ainda assim incans�velmente o seu rochedo at� ao cimo do monte. Como escrevia Camus h� mais de cinquenta anos, "� preciso imaginar S�sifo feliz".

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