Globalização?







1.
Num momento em que as trombetas do mercado livre soam em triunfo apoteótico por todos os azimutes, alguma boa alma optimista poderá ter esperado uma conclusão rápida e sem problemas da presente ronda negocial do General Agreement on Trade and Tariffs (Acordo Geral de Comércio e Tarifas Alfandegárias), vulgo G.A.T.T.. Recorde-se que estas negociações -- o famoso Uruguay Round iniciado em Punta del Este -- arrastam-se desde 1986 entre as suas 109 partes contratantes sem que se vislumbre ainda qualquer acordo de princípios. Para além do propalado objectivo de uma baixa global de 30% nos direitos aduaneiros, a palavra de ordem é o "multilateralismo", ou seja, acabar com as cláusulas de salvaguarda, legislação anti-dumping, subvenções, acordos bilaterais, quotas de mercado (managed trade) e outras formas de distorção à concorrência perfeita. Em verdade, e na cínica expressão do ex-secretário geral Arthur Dunkel, trata-se afinal de concluir uns 7.000 acordos bilaterais posteriormente multilateralizados.

A haver problemas, esperar-se-ia que eles viessem da parte das nações periféricas tradicionalmente exploradas pelos mecanismos da troca desigual. Livre circulação de mercadorias mais livre circulação de capitais mantendo-se e reforçando-se ainda porventura (veja-se a recente legislação xenófoba na França e na Alemanha) a inamovibilidade da força de trabalho: este é o cenário ideal para a transferência maciça de valor das periferias de baixos salários para o centro capitalista. Supondo um mesmo nível de produtividade dos meios de produção de duas formações sociais, está provado que, pelo comércio a preços de mercado, aquela que remunera pior a sua força de trabalho está efectivamente a transferir valor para a outra, a fornecer-lhe mais horas de trabalho do que as que recebe em troca. Supondo níveis de produtividade diferentes, a transferência ocorre igualmente na proporção do desnível salarial. Mas o Uruguay Round prevê ainda a institucionalização de uma outra poderosa forma de exploração dos países periféricos: a chamada protecção universal da propriedade industrial sob a forma de brevets e marcas. Por intermédio destes mecanismos, os capitalistas das metrópoles centrais poderão receber uma verdadeira renda ociosa por concessões e licenças de fabrico outorgadas às suas clientelas do terceiro-mundo. Há quem augure convincentemente que esta forma de exploração em breve suplantará as tradicionais exportações de capital (vulgo investimentos externos), julgadas demasiado arriscadas em tempos de instabilidade política. Teremos assim o centro capitalista ocupado exclusivamente em sectores industriais de ponta e por actividades de controle da circulação do capital, enquanto a periferia labora em indústrias concessionadas de 2ª geração pagando por isso uma espécie de tributo. Não é a primeira vez que aparecem sinais de uma refeudalização das relações de produção... E faltaria ainda falar da liberalização mundial do comércio dos serviços (transportes, telecomunicações, banca, seguros, audiovisual, etc.), a qual será naturalmente mais um instrumento de subordinação económica, política e cultural das nações subdesenvolvidas.

Todavia, as burguesias do Terceiro Mundo tudo isto aceitam de boa mente e são mesmo as mais interessadas na conclusão rápida de um acordo, a fim de beneficiar do derrube de velhos mecanismos proteccionistas como o Acordo Multifibras de 1974 e as subvenções europeias, japonesas e norte-americanas à agricultura. Chegou-se irrefutavelmente a uma conclusão curiosa mas nada imprevisível: os maiores obstáculos e distorções ao comércio livre provêm dos países capitalistas do centro. A ideologia da livre troca serviu-lhes (atrás da força militar, naturalmente) como aríete para penetrar e destruir os modos de produção não capitalistas, aí plantando as relações capitalistas de produção. Umas vez estas relações consolidadas, e as nações colonizadas de algum modo atracadas subalternamente ao sistema mundial, foi tempo para os países do centro defenderem os seus sectores atrasados (agricultura e certas indústrias envelhecidas como os têxteis ou o aço) contra a competição do Terceiro-Mundo e, agora, da Europa de Leste. Apenas deste modo podem as burguesias dos países centrais manter a sua querida paz social interna e as suas alianças de classe tradicionais (campesinato, pequena burguesia, aristocracia operária). São pois os dirigentes dos países neófitos e periféricos quem, mantendo os seus mercados geralmente abertos, acabam por bater com o nariz na porta dos mercados ricos e ainda ter de ouvir enfadonhas prelecções adicionais sobre democracia, direitos humanos e sociais, ecologia e assim por diante. É o chamado fair trade (comércio justo???!) oposto ao free trade (comércio livre), na expressão retomada recentemente por Clinton. Ficaram a saber, enfim, o que já podiam ter adivinhado, descontada a cegueira ideológica: No comércio internacional, como em toda a ordem social burguesa, regem em última análise as relações de força efectiva no terreno e não os esquálidos princípios gerais e abstractos da ortodoxia doutrinal, adamsmithiana ou outra. A revisão do G.A.T.T. está dependente de um acordo prévio no G7, a concluir na sua cimeira de Tóquio. É apenas mais um episódio da moderna luta inter-imperialista, com as burguesias dos países periféricos (afinal os únicos "livre-cambistas") esperando à porta ansiosas pelo desfecho final.

Dizia Karl Marx há cento e cinquenta anos: "...em geral, nos nossos dias, o sistema proteccionista é conservador, enquanto o sistema do livre-câmbio é destrutivo. Ele dissolve as antigas nacionalidades e leva ao extremo o antagonismo entre a burguesia e o proletariado. Numa palavra, o sistema da liberdade comercial apressa a revolução social. É só nesse sentido, meus senhores, que voto a favor do livre-câmbio" (1). É com um calafrio na espinha e alguma apreensão histórica que hoje revisitamos estas palavras. O proletariado português deve favorecer a ruína da indústria têxtil do Vale do Ave, dos pescadores, dos comerciantes e dos pequenos e médios agricultores, porque isso apressa a revolução mundial? Não podemos hoje naturalmente responder a esta pergunta. Faltam para isso os absolutamente necessários instrumentos teóricos aprofundados e a constituição de um sólido sistema mundial de alianças de classe pela revolução. Não é que as premissas gerais do problema se tenham alterado substancialmente desde Marx. Mas o que é facto é que o salto teórico por ele dado com relativo à vontade e elegância naquela passagem não estamos nós hoje em condições de o dar senão agarrados com quatro mãos à amurada, tolhidos de vómito e vertigem e com quinhentos credos na boca.

Podemos arriscar isto: A integração económica europeia está aí, é um facto; a burguesia nacional traiu a sua aliança com o campesinato e a pequena burguesia comercial e industrial, apunhalando-os pelas costas; por via de acordos inter-imperialistas que a transcendem, pode ver-se obrigada a abrir ainda mais o seu mercado a produtos concorrentes oriundos de fora do espaço europeu. O proletariado português não tem que verter nenhumas lágrimas pelos sectores económicos nacionais vencidos, seus antigos exploradores. Tem por sua vez a hipótese te cativar para a sua luta massas crescentes de população proletarizada, beneficiando ainda do enfraquecimento do bloco de alianças de classe no poder. Por último, tem como obrigação histórica o estabelecimento de contactos e redes de solidariedade com o proletariado europeu e mundial na base de uma teoria e de uma estratégia de luta revolucionária renovadas.

2.
Os trabalhistas venceram as eleições na Grã-Bretanha. Depois do “novo democrata” Clinton, o new labour de Blair, ambos convertidos ao novo senso comum neo-liberal e fazendo reiteradas profissões de fá de renegação do sistema de tax and spend. A coligação “Oliveira” governa já na Itália e êxitos do “centro-esquerda” são possíveis proximamente em França e na Alemanha. Ao extremismo da ofensiva reaccionária do eixo Thatcher-Reagan nos anos 80, sucedem-se aparentemente soluções mais benignas e consensuais. Mas na verdade do que se trata é da consolidação de posições tomadas na ofensiva em toda a linha da burguesia iniciada no final da década de 70 (como resposta à crise estrutural do capitalismo) com nada menos que a liquidação histórica da social-democracia.

Agora é oficial e universalmente reconhecido: há apenas uma maneira de governar dentro do sistema capitalista tardio em que vivemos. A nova ortodoxia económica do “pensamento único” impõe flexibilização e precaridade no emprego, baixa dos salários reais, privatizações em massa, desmantelamento dos sistemas de segurança social, neo-conservadorismo na moral e nos costumes, rigidificação das normas securitárias e dos procedimentos de polícia com apelos latentes à intolerância e xenofobia. É assim porque é assim mesmo e não doutra maneira.

Para embrulhar este mesmo produto, porém, a indústria democrática afadiga-se a arranjar sempre novas roupagens, ouropéis e luzes feéricas. Na razão directa em que a amplitude real do leque das opções políticas propostas se estreita, o jogo eleitoral e a vida político-mediática quotidiana explode em espectacularidade e dramatismo de opereta. O debate resume-se a uma troca de slogans e “ideias-chave” de poucos segundos. O essencial é a imagem e a criação de uma empatia personalizada de um para milhões. Grande plano, aqui. Olhos nos olhos. Vejam como sou absolutamente sincero. Neste mundo de total mercantilização do espaço público, é claro que os grandes corpos organizados de doutrina política (como, apesar de tudo, ainda o era a velha social-democracia) soçobram por completo na anomia e na irrisão. É a política - o espectáculo tem de continuar.

Enquanto isso, as decisões realmente importantes, das quais dependem as condições de vida - emprego, salários, meio ambiente, saúde, educação, cultura, lazer, etc. - de milhões e milhões de trabalhadores e gente comum, decidem-se em clubes fechados por agentes obscuros e desconhecidos. É uma enorme teia de tecno-burocracias públicas e privadas, com académicos e grandes patrões à mistura. Um mundo de encontros internacionais (v.g. Davos), think-tanks, institutos privados, congressos e seminários. São as reuniões preparatórias das cimeiras do G7 ou de Bruxelas, os trabalhos da O.C.D.E., da O.M.C., do F.M.I./Banco Mundial, do Clube de Paris. Encontros mais ou menos informais entre governadores de bancos centrais, ministros das Finanças, dirigentes da alta finança e das grandes corporações multi-nacionais. Tudo no maior anonimato e inescrutabilidade pública. E todavia, é nas decisões aqui tomadas que os nossos "eleitos" dirigentes se limitam afinal a pôr rubrica e despacho.

É claro que, com isto, não quero aqui desenhar nenhuma concepção conspirativista da história. A verdade é que, noutro plano, subjacente a todas estas movimentações está o funcionamento de poderosas leis objectivas do sistema de acumulação capitalista: a concentração e centralização de capitais, o crescimento da composição orgânica do capital, a baixa tendencial da taxa de lucro, as crises de subconsumo, o desenvolvimento desigual e combinado, o imperialimo. É devido ao funcionamento implacável e inexorável destas leis que nos encontramos na actual situação de impasse económico e estrangulamento político.

Depois dos acordos GATT assinados em Marrakesh em Abril de 1994, a nóvel Organização Mundial do Comércio (OMC), sob a direcção do italiano Renato Ruggiero, tem já três novos pacotes em agenda: regras de concorrência, abertura de mercados públicos e investimento. Para cada uma destas áreas, a conferência inter-ministerial realizada em Dezembro de 1996 em Singapura criou “grupos de trabalho”. As ditas “regras de concorrência” visam o desmantelamento de todos os monopólios públicos criados por decisão política. É já o caso a televisão e das telecomunicações (objecto de uma deliberação da OMC em Fevereiro último), e será em breve a vez da energia eléctrica, dos transportes aéreos e ferroviários, correios, etc.. Guterres está atento e cumpridor por antecipação.

A abertura dos mercados públicos compreende uma série de medidas destinadas a derrubar todas as normas e práticas informais de preferência por produtos e serviços nacionais em concursos promovidos por entidades públicas. Os mercados públicos representam em certos países de 10 a 15% do PNB e está fora de questão deixá-los fora do âmbito da livre concorrência global. Aliás, nesta matéria existe já um acordo plurilateral que entrou em vigor em Janeiro de 1996 e vincula 24 países de entre os mais industrializados. Trata-se agora de o tornar gradualmente extensível a todos os membros da organização, o que se fará com o habitual cortejo de argumentos doutrinais, chantagem e ameaças veladas sobre os países ditos “em vias de desenvolvimento”. A páginas tantas, alguém julgou justificado apresentar estas medidas como visando o “combate à corrupção” nas administrações. Ao que algumas delegações do terceiro-mundo retorquiram que o Congresso norte-americano é certamente bem mais corrupto do que os seus governos. A palavra corrupção caiu, sendo substituída por “promoção da transparência” (2).

O coroamento de todo este edifício será porém o novo Acordo Multilateral sobre o Investimento (AMI), neste momento com um projecto a ser ultimado e discutido no seio da O.C.D.E.. A sua aprovação chegou a estar aqui agendada para a conferência ministerial de 27-28 de Maio mas, devido às polémicas em torno da lei anti-cubana Helms-Burton, foi agora adiada para Dezembro deste ano. Uma vez mais, após a sua aprovação pelos países ricos, acentuar-se-ão as pressões de diversas ordens à sua extensão aos mais periféricos que se vêm assim sob a ameaça de exclusão total dos circuitos internacionais de circulação de capitais.

O AMI é um poderoso instrumento ao serviço de uma maior inter-penetração de capitais e, também, da liberdade de acção para a pilhagem planetária levada a cabo pelas grandes corporações transnacionais. Abrange todos os investimentos directos (indústria, serviços ou sector primário) ou participações. O seu objectivo é criar um ambiente estável para os investimentos externos, garantindo livre acesso aos mercados, total liberdade de movimentos e de repatriamento integral dos lucros, bem como a proibição da imposição de obrigações contratuais por parte dos estados hóspedes (sociais, ambientais, de partilha tecnológica, etc.). Os estados signatários ficarão, entre muitas outras coisas, impedidos de restringir o acesso do investimento externo a quaisquer sectores económicos, de impôr prazos mínimos de fixação do investimento, de criar incentivos fiscais ou outros para certos tipos de comportamento dos investidores, de prestar assistência financeira a pequenas empresas ou a projectos julgados de interesse social, de criar programas de desenvolvimento para regiões defavorecidas, etc., etc.. As corporações privadas terão direito de acção sobre os estados signatários com o fim de revogar qualquer disposição legal ou administrativa que elas julguem restritiva dos seus “direitos” como investidoras. As acções serão julgadas arbitralmente por um painel de peritos cujas decisões são vinculativas.

Uma poderosa corrente contemporânea de pensamento, com influência em sectores de esquerda inclusivé marxistas, fala, a propósito destes desenvolvimentos, de uma tendência para a globalização ou mundialização da economia. É aliás essa mesma globalização irresistível que explicaria a indistinção das propostas políticas ritualmente presentes ao sufrágio público.

Se por globalização se entende a tendência do grande capital para actuar com base numa estratégia planetária, ela é indiscutível, embora seja apenas o desenvolvimento de uma tendência sempre presente no capitalismo. O capitalismo foi sempre uma economia-mundo, desde o seu dealbar no mercantilismo do sec. XV. Mas por globalização quer-se dizer mais do que isto. Quer-se significar que o sistema é agora dominado por uma teia contínua e transnacional de capital sem qualquer fidelidade e dependência nacionais, apostada em derrubar os estados-nações como velhas barreiras indesejadas postadas no caminho do seu império global sem freio. Estar-se-ia no limiar da constituição de um “governo mundial oculto”. Daí até apelar ao movimento operário a que se empenhe e desgaste continuamente em batalhas de retaguarda pela “soberania nacional” (aliada a fracções decadentes da “sua” burguesia) vai um pequeno passo. Dado aliás convictamente por toda a sorte de “PC’s”, confederações sindicais, ONG’s humanitárias, católicas progressistas, etc..

Em primeiro lugar é necessário frisar que a globalização neste sentido é um logro ideológico sem qualquer base real que a sustente. As grandes corporações multinacionais são todas elas clara e substancialmente identificáveis com um estado ou conjunto de estados imperialistas, em conjunto com os quais concertam e executam a sua estratégia de domínio mundial. A liberalização dos fluxos económicos - multilateralmente concedida em regime de reciprocidade - não significa de modo algum divórcio entre o capital e o poder político, ou submersão deste por aquele. Pelo contrário, nunca um poder político forte e atento foi tão decisivo para que o grande capital poder vencer estes acrescidos desafios darwinianos no tabuleiro mundial. A concentração e centralização de capitais levar-nos-á inevitavelmente do monopolismo nacional para o de bloco regional e, finalmente, mundial. Cada estado ou bloco de estados imperialista fará tudo, absolutamente tudo ao seu alcance para ter consigo o galo vencedor nos sectores mais disputados: automóvel, aviões, espaço, electrónica, informática, comunicações, entretenimento, utilitários domésticos, bens de consumo de maior valor acrescentado.

A única política marxista concebível não é certamente a de olhar para trás na direcção do proteccionismo e do isolacionismo, mas em frente na via do internacionalismo proletário e da organização paulatina, mas a passos firmes e seguros, da solidariedade e luta operária a nível mundial. Relativamente ao AMI e outros instrumentos semelhantes, há uma distinção a fazer: onde e enquanto eles forem claramente instrumentos de agressão neo-colonial e pilhagem imperialista pura e simples, devem ser opostos. Mas, entre os países dos grandes centros acumuladores, nenhuma concessão deve ser feita ao social-chauvinismo e ao nacional-reformismo oportunistas. A via é a da revolução proletária internacional. E é a força destrutiva e revolucionadora do capital (“tudo o que é sólido se dissolve no ar” - do Manifesto) que vai desbastando as arestas mais vivas dos nacionalismos e particularismos locais, preparando o caminho para a irrupção da fraternidade universal dos produtores livres.






NOTAS:

(1) 'Discurso sobre o Problema do Livre-Câmbio', pronunciado de viva voz na Associação Democrática de Bruxelas a 7 de Janeiro de 1848. Cf. Karl Marx, 'Miséria da Filosofia', Escorpião, Porto 1974, p. 158.

(2) Martin Khor, ‘L’OMC, fer de lance des transnationales’, 'Le Monde Diplomatique', Maio de 1997.






Com base em dois artigos publicados na revista 'Política Operária', nº 41, Setembro-Outubro de 1993, e nº 60, Maio-Junho de 1997. 1
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