«Amo aqueles a quem enche um grande desprezo, pois trazem consigo o
respeito supremo, são as flechas do desejo apontadas para a outra margem. Amo aquele cuja alma é profunda, mesmo nas feridas, e que pode morrer
de qualquer acidente fútil; porque é de bom grado que passará a ponte. Amo aquele que tem a alma transbordante a ponto de perder a consciência
de si mesmo, e nele carrega todas as coisas assim e a totalidade
das coisas que causa a sua perda.»
NIETZSCHE “Assim Falava Zaratustra” (trad. de Alfredo Margarido)




Ante-memória turva

A António Ramos Rosa 1. depois da difusão prolixa dos espantos inventei esta paleta de enumerador de sinais torneei então abraços inúteis atalhei razões de aventuras brancas e iniciais supus-me um nome de percursos dilatados e suspensos exposto o rosto à erosão dos pássaros o desconchavo da memória a apurar desvelos de sobrevivente não sei de que velhos lençóis lavados e puídos até à náusea pois começar é um compromisso (a insinuação dos limites) a atenção decorrendo agora como um hábito de lacerar e cindir o incurso da morte uma duas três e mais vezes na íntima plenitude do ser não há fórmula de síntese soluto colagem final dos acenos todos mas o tempo (os círculos concêntricos de raio variável) mas percorrer a vertiginosa espera até onde remontam as águas que o desejo delas já suspeita ou acomete. 2. a ante-memória turva qual incestuoso amanhecer no ar serena se (re)trai acerca do silêncio quase nenhum algor apenas a demanda obscurecida dos olhos oblíquos indiferenciados cálida ou perversa ciência sustém a imensa espera pois no limiar do tempo (na própria abordagem da finitude) é que a torrente conflui e o ágil porvir emudece quem lhe retém a forma tacteada intacta necessária aquela apenas ciosa de um nome completo. oh rescenda então a claridade da entrega qual árvore insubmissa trespassando a rosácea da transmutação derradeira a nave do silêncio desfiando sua poalha de oiro âmbar e bolor e também essa incrível verosimilhança em que se diz a refracção do indizível avance e acometa a penumbra do dizer liquefacção ou intensidade é lá que a memória se faz corpo num corpo outro que se estranha sua própria raiz muito aquém da memória. 3. substância viva não o digo - ce qu’on dit n’est plus – coisa que tange readquire a luz a incinerada exactidão não o digo e repito a fala ou levitação antiga que nem um só gesto comete que nem é gesto inteiro assim miraculosamente extinto e de si redivivo arco tenso de várias mãos realizado ele é substância viva ou o que resta de seu batimento primeiro quando a imersa rebelião das superfícies intercepta qualquer continente naufragado onde a rebentação ecoa total e reconhecida indizível. rodear-me pois de perversas alusões consumptivas tactear a morte infinita no bojo da noite que serenas e hábeis e secretas sonoridades onde o amor reflui se compenetra sua íntima instância é então no ar (apenas aquela sucessão de espessuras) que se incendeia o poema dói no próprio âmago do silêncio a claridade assoberbada.

Incisão






       «Se se prefere, não houve nunca um interpretandum que não tivesse
sido
interpretans, e é uma relação mais de violência que de elucidação a que
se estabelece na interpretação. (...) ela necessita apoderar-se, e
violentamente, de uma interpretação que está já ali, que deve trucidar,
revolver e romper a golpes de martelo.»
MICHEL FOUCAULT «Nietzsche, Freud e Marx» Alma Mater “Caesareas leges, et claros juris honores, dum decet ipsa tibi quod decet aula dabit.” Dístico de uma Aula da Universidade de Coimbra idónea grande esperada as paredes incindíveis sobre o legado da terra a feição agravada parada tomada a um lado a bater sombras na laje (tangência de sol? fractura?) garbosa de coroas e mitras bafejando incenso e poeira num ranger vil de portadas e as vozes/ilhas ladainhas que cobrem o espaço reboam os aspectos finais redundantes amor de pedra com esquinas rectas e frias aos meus dedos muralha limite-lugar exacta e aceradamente disposto para o crime. O Reino da estupidez - Ciência administrativa e policial aquele que critica deve ser chamado à razão questão de método ou bem talvez de hermenêutica cite a melhor bibliografia autorizada pp. 652-679 e passim sorria muito use gestos largos dicção irrepreensível. Aquele que duvida pode ser esclarecido com um mínimo dispêndio de chá e dan cake ou com um bom pontapé nos tomates ingratus unus omnibus nocet. Mas aquele lá que interroga com o olhar fixo e um desenho equívoco nos lábios sem mercê sem quartel - esse deve perecer. Distante «You’d better run and join your brother John» GENESIS “The Lamb lies down on Broadway” as horas as horas como sombras de um silêncio antigo para lá da memória a minha carne dispersa retém um nome acometido nas ruas - thorem meu irmão john espera-me nessa noite de todas as viagens ancoradas por um sopro no tempo espera-me lá muito longe e nessa estranhada lonjura é o seu ombro que espera o meu os seus olhos que procuram nos meus reler a mesma indeclinável distância parto agora é que as luzes da cidade se extinguem e os meus passos ecoam por dentro das casas. Domicílio vigiado amar é difícil (risco um fósforo o fogo estala monstruosamente) requer muito esforço continuado de abstracçâo como andar de bicicleta já tentei sangrar os dedos com uma faca as ilusões desfeitas, correm as lágrimas ao rio na infância do mundo bobby sands e o seu magnífico esqueleto didáctico a malta no soweto a dançar e a rir o sentido do tempo. que é ser-se uma casa devoluta e indisponível? a insónia macerada de pés nus em tábuas velhas e infectas abjecta circunvagação de jornais livros e aguardente amar é difícil - quod erat demonstrandum lá fora devagar a chuva cai (o cigarro arde as têmporas explodem) e sacode-me a face como um látego. Apontamentos de antropologia «Eles já deviam saber que nós somos duros» Adepto do Liverpool F. C. após o massacre de Heysel Park a morte circula na grande-área viaja solta numa obsessão geometrizada algures na bancada um petardo luminoso a multidão imola-se em fumo e é o jogador da camisola amarela que domina ele parou agora na ponta direita e centra largo sem oposição a bola explode na trave com um gemido brutal o estádio agoniza deus é uma presença/ausência inteligível quase concreta um diálogo no sangue dos heróis. Broken bottles under children's feet a noite ergue-se num continente envelhecido vejo beirute na tv amanhâ estarei talvez em durban la paz belfast seul há nma cidade real no meu pensamento com toda a ficção do mundo com redes de arame protectoras ratazanas em terraços suspensos a suja metralha nas ruas o próximo bloco que se alonga por um passo a mais no asfalto. O número da besta 1. a rosa nuclear tem carinho pelos seus filhotes submarinos trespassam a sétima avenida engalanada no silêncio da pradaria os silos aí se oficia ao deus défice orçamental oh águia rediviva da civilização do colesterol in god we trust in god we trust in god we trust homens grisalhos assentam os bonés com rigor o cavalo de picasso pasta sem fome já 2. a doutrina dissuasora recebe flores no seu camarim unanimidade da crítica solid gold o investimento seguro e cumulativo as ilusões pequeno-burguesas são espirros na multidão o cavalo de picasso é gordo e sacode as moscas 3. rasga-se o sol em mil abismos de enxofre as verdes cabeleiras da raiva se entumescem em alucinação e estupor colapsam. as sínteses e o vento vem varrer a praça dos vilíssimos remorsos. O ídolo da juventude estou morto sobre um piano abandonado agoniado de jazz descrente de sonhos que não me sonhei sonhar reincidente nesta lucidez de estar farto de moscas vou entrando nas répteis represas do presente rasgando anjos de papel com as botas e os punhos (o sangue cai sempre sem remorso num silêncio incorruptível) estou vivo num mar de plástico e excedentes e o refrão soa distante como não haver mais distância expande-se e reflui e explode nas minhas têmporas no future no future no future ergo a face o sorriso acoplado leviathan cuspindo no chão então digo é meu o século do terror sem limites. FMI fotografado por B. B. o cobre e o tungsténio oscilam em lima e também em lusaka a fome e a raiva são espancadas nas ruas agitam-se os agentes agiotas da banca mundial agir agir agir já murrow park washington d. c. é onde os deuses burocratas de axilas suadas e gargalhadas prolixas treslêem e classificam cataratas de papel desdobrado separam a vida da morte têm a tensão arterial rigorosamente vigiada e relatórios médicos detalhados ao fim do mês. Introdução à teoria das catástrofes o quark provavelmente é cindível e nunca haveremos de perceber grande coisa da economia da matéria informação entropia calor não procures a beleza resiste a vozes que não te chamam nem escutam cresce e organiza-te. em verdade eu vivo numa era de trevas - - dizia o b. b. (1898-1956) - uma palavra que não seja dúplice é um absurdo as ciências propõem jogos de azar os políticos sorriem e uma nuvem pousou no coração da europa carregada de pensamentos secretos que se partilham já sem horror. springsteen em minneapolis e a juventus no communale há uma vibração eléctrica no ar sinto-a passar ela sacode o coração das multidões e este bate em uníssono brutalmente sem sentido. Sangue árabe mil bênçãos mil manhãs radiosas para ti meu irmâo oxalá as mãos postas o mijo secando nas paredes da medina a grande rosácea do ser vela na deriva dos povos servidão orgulhosa em seu fétido destino em tento à desmedida grandeza de um deus sem rosto o sangue ao canto da boca agressão sufocada em lágrimas para lá da esperança a amarga face contra o chão uma e outra vez - não compreendo. oh abre para mim as tabernas dia e noite que eu cresci a odiar a escola e a mesquita meus pais e vizinhos amaldiçoam-me os passos vou-me embora para al-andalus de olhos secos os pés nus bem firmes no caminho. Abril português sombras e navios não existem uma utopia adormece no meu corpo os amigos partiram derramando no cais as mesmas velhas promessas então adeus pá (não houve acenos) uma cadeira quebrou-se ao peso dos risos e abraços perdidos para sempre o amor é esta casa fechada e sabes bem do que te falo pá. em abril dizer-te palavras que ficaram como marcas de copos sobre a mesa tocar-te levemente é a pequena possível lucidez. Por Antígona
“Não se consegue perceber se se treme de febre ou de frio”
Carta de Ulrike Meinhof na prisão
abaixo o capitalismo disse ela derramando algum açúcar no tampo da mesa os amigos muito juntos tocando-se sorriso contra sorriso partiríamos então numa manhã inexcedível descalços e eufóricos as mãos incendiadas na desordem em busca de um norte para pousarmos as mochilas ficaríamos afinal a face contra o vidro gotas de chuva ziguezagueando na memória - die eiserne maske der freiheit. os criados equilibram bandejas de martinis passam as consciências municipais nos seus fatos riscados a alemanha no outono hans martin schleyer deve morrer ainda a razão do estado. Nota para um suicídio preterido o monstruoso equívoco já pode ser cremado numa imensa roda de esconjuros e anátemas as cinzas ficarão entregues à brisa célere do esquecimento ou do compungido remorso. voltará passados noventa dias será rei e profeta aclamado na ágora dos mentecaptos. Na morte de Valentin González (El Campesino) suores frios de noite os filhos da puta berram as obscenidades do seu chefe maneta. medo aos touros quando eles oscilam a cabeça e eu não sei o comprimento exacto da investida as minhas mãos tremeram naquela tarde na planície aberta e seca como um remorso. estive longe depois vivi muito o sangue tornou a correr veloz nas minhas veias - não me apunhalaram. Para o Smolny
“Atirava a cabeça para trás, depois inclinava-a sobre o ombro
enquanto metia os dedos nas cavas do colete, debaixo das axilas. Nesta
posição havia nele qualquer coisa de espantosamente divertido e cativante.
Parecia um galo vitorioso (...). Gostava de coisas divertidas e ria-se
com o corpo todo, verdadeiramente inundado de alegria.”
Máximo Gorki «Lenine»
o homem é nada - apenas a carcaça do tempo esse precário equilíbrio e tensão de músculos livro e espada uma silhueta recortada contra o vento na perspectiva a cavalaria inimiga cruza com ele o cabelo tingido a gola alçada um olhar lúgubre preso à esquina do passeio ele vai entrando entrando nessa noite incendiada e passa para o outro lado do tempo e é o próprio tempo reescrevendo-se pelo seu passo. Damné par l'arc-en-ciel algo portanto nos prevenia contra a beleza e o levou a escarrar a face do anjo ele caminhando durante horas dias sem sombra naquele seu passo de potro bem erecto feroz como lâmina desperta pelo ciúme riscando de azul a linha dos campos já despertos pela poalha de oiro do sol o horizonte abrindo-se então magnificamente sohre visões irisadas de monções âmbares raros febres distantes. Novas investigações sobre Caim alcool e violência alguns episódios psicotrópicos podem fazer de um homem santo tal bogart em knock on any door ( o crime não compensa) o risco o riso o rio não temas os sinais as quantidades mensuráveis escarnece de deus mata teu irmão e teu amor nele o sangue correu sob muitas pontes já a paz acedeu às ruas escorada no medo em chernobyl vi um homem evaporar-se num segundo morre-se de fome ou imunodeficiente e a prudência das cidades diz que se mate mata-te pois essa culposa ignorância do crime revive entâo coincidências que perduram do not go gentle into that good night ferido peleja de bruços ainda morde e pragueja. Elucidatório final sobre o sexo dos anjos Para a Sra. Elisabeth Badinter têm sim senhor eu vi serve-lhes de leme ao que me apercebi se estão em repouso o instrumento recolhe e dá lugar a um pequeno orifício róseo e carnudo por certo já os encontrou são como aqueles sacos de nylon de recolher em bolsa (tenho um mas está estragado). quando se juntam aos pares em sua angélica conjugalidade penetram-se cada um por sua vez. as harpas trinam enlouquecidas alheadas da prometida cólera de Jeová video meliora proboque deteriora sequor por toda a extensão das nuvens corre um rumor de galhofa dos pequenos querubins. Sida Sob patente alemã em nome de um Hans Magnus Enzensberger não toques não te envolvas jovem amigo vêm tempos de ficar quieto ao abrigo da virtuosíssima caspa dos censores não olhes não esperes não procures não não mexas em nada faz cálculo trigonométrico a horas certas podes rever os teus ídolos no ecrã gigante então recorta o cupão do semanário e a sorte pode ser tua se fores ousado. dies certus an incertum quando assim produz seus efeitos o assassínio esperado de rainer werner fassbinder detido lá rente ao chão um corpo deixa de fazer assim tanto sentido. As chuvas ácidas cola-te ao teu acto tudo permanece e pensa o que tudo é diverso e possível as mãos colhem os frutos por nascer não no tempo - o espaço em retroacção - mas em acto pensa como é improvável esse teu ser aqui e agora sempre a hipótese da negação lá onde não é o teu acto cola-te ao teu acto e não actues pensa o que tudo não é e já foste. de noite pela estrada larga o viajante sem sombra na américa todas as causas são equivalentes newton trincando a maçã bem aventurados os crentes mas de noite pela estrada larga o céu carregado de nuvens que eu suspeito.

A disjunção do instante

«O valor de todas as coisas é a sombra que elas projectam, a hora
efémera que elas tiram à massa confusa do Tempo
– a hora que se destaca, e tem relevo, e persiste,
e reage contra a maré do Tempo.»
TEIXEIRA DE PASCOAES ‘O Bailado’ Perigo de vida «There’s a party in my mind, and I hope it never stops» TALKING HEADS, “Fear of Music” as mãos no presente não se iludem tremem os dedos aturdidos os cigarros são vozes demasiado escutadas confundem-se seus solilóquios sempre lentos e acerados degolar a irmã não é excitante o copo rebola de riso pelo chão velhos pederastas fizeram-me propostas nada obscenas tornei a ser sovado na rua com naturalidade the grasshopper lies heavy the grasshopper lies heavy subir escadas talvez onde o irreconhecível e pendurar-me nos espaço com os headphones postos vozes roucas estragos visíveis saltar de combóios em andamento é fácil quando se é jovem os avisos perdem-se no diálogo dos gestos e asserções lugares incomuns resgatar afinal a imediata solidão própria nem muito fiel a precaridade do ser não há árvores imarcescíveis ruy belo. Queixa das almas jovens incensadas o telefone não tocou - horas recidivas lembram recados velhos e inúteis sobre a mesa sequestrados do presente sem tempo nem compreensão do tempo apenas o sempre retomado labirinto mental a putrefacção de uma espera que do amor só é profíqua existe apenas sua crueza incisa. o viver mais ou menos o borrão no papel traço inteiramente inútil o poema inacabado e absurdo. A terrível manhã «Que terrível manhã, que trágico descobrimento de morte e de ódio se está preparando nessa infância.» Miguel de Unamuno «Visiones y Comentarios» o crepúsculo desce nesses hábitos de viagens infindas a noite afaga os mitos de que a revolta é sentido e abrigo pão negro vinho fugaz para a memória dos vivos ávida e inconclusiva vem então o vento trazer esse nu amanhecer dos corpos na praia deserta expostos enfim à doce volúpia dos cães e do esquecimento. Para Elisa desenhar um corpo por delito e preenchê-lo lábio a lábio cruelmente despidas as margens de côres e aspectos banais a cisão mais grave suspensa no silêncio onde cabem talvez os teus passos certas horas a demora sofrida das palavras na pele seca e já riscada pela súplica do sal o gume da boca sacrificada o grito sob a fractura dos blocos. Hashish a cabeça bate lateralmente (um som cavo) as pernas flectem no esboço de um passo vagas alternas vibram no ar a luz multicolor e caleidoscópica modela algo que é ainda um espaço posto que rarefeito (ou sintético?) ouço música tocar (possivelmente john cale) longe lá ainda a percepção inquieta de outros ruídos sinceros e afáveis. Der durstige mann a horas impróprias debruçado ainda sobre as cinzas de um tambor o luar de setembro toldado inflecte sobre ele uma crosta em sopa fria tarde demais talvez o desejo envelhece sem perder o azul mas essa só noção de azul inamovível ainda no ar se vai recompondo inteira e madura como uma tese grandes são os desertos o homem parado na beira do caminho aspirando o pó do caminho o seu peso específico. Não debruçado sobre o papel pedaço descorado a letra oblíqua a descrença a grande essencial náusea das palavras ponto. Europa sentes o vento no sopé da estátua desdizendo o sal de que foi feito o excesso e a renúncia a gasta memória de preces demasiado escutadas cavalo enlouquecido pelo orgulho de empédocles - ogni viltá convien che qui sia morta. ouço a respiração densa dos séculos os homens calcaram o seu próximo calcularam essa incerta rota do ouro e do cânhamo - fusão das calotes na imensidão a cotovia bailou com o urso - doía a semente das gerações lançada na terra ferida pelo teu riso de peste e excomunhão águia bêbada de amor lúbrica e cúpida meretríssima senhora da pólvora e das insígnias da razão. naufragaste com sepúlveda numa impremeditada nudez própria agora selling england by the pound acaso te reconheças por imagens cruas e a serpente da astúcia troçou do teu meio-dia num lacht die welt der grause vorhang riss die hochzeit kommt fur licht und finsterniss. Saudade árvores rubras te chamam já as carpas jazem confusas e submissas e tu não partiste ainda aguardas a vinda do irmão na rota oblíqua das aves o pão esquecido na mesa pobres e excomungados ficamos mais juntos no silêncio denso quase táctil. Os loucos morrem fiéis à terra comum roda e tempo as duas faces de jano movimento perpétuo o galo cantou agora e na praça acende-se um calmo desejo amanhecer e viagem de siegfried no reno oh repete repete eternamente essas velhas canções do meio-dia. Hora 1. espreitei a morte nesta cidade a cortina balouça os chacais esperam a crua ocasião do sangue e do saque. 2. amigos e inimigos todos se afastam com terror há um presságio gravado na sua testa não consigo decifrá-lo a cotovia no varandim o vento corre célere cada vez mais cada vez mais diz morre diz morre morre. Hölderlin em Paris 1. essa criança robusta de olhar claro azul líquido amante simples de estranhas coisas chegou lívido leve camisa rasgada o cabelo erguido em chamas as botas sujas do estrangeiro - docemente o seu sangue gotejava nas lajes e ele entrava devagar na luz da infância e da ideia. uma dúvida não partilhada pode ocasionar um dano trágico fiéis à terra restemos sobretudo fiéis à terra mão recta e enxuta vai tecendo o advento dessa cidade pIena a canção dos heróis o éter sagrado que há-de ser dos justos e dos loucos esta demanda apenas diotima suspensa no tempo o raio feroz água brilhando entre os dedos gross und unbezwinglich sei des menschen geist in seinen forderungen johann friedrich desmaiou perto do sena - apolo feriu-me - qualquer velho cão pardo cheirou-o e afastou-se na margem. 2. em verdade ele era pobre e sem malícia em verdade ele conheceu apenas essa mais íntima metáfora do conhecimento em verdade ele foi a infância dolorosa do uno einstein sorri que não há éter algum 1905 questão de espelhos e imagens tempos divergentes scardanelli e os punks em berlim cai a última neve dos impérios alheios e a verdade é uma bela noiva com toda a virtude de jamais se ter entregue senão por dinheiro. 3. sulcos viagens a pele seca de promessas e excessos de que um amor velho expele já os justos sinais - essa respiração irmanada de todo o ser na inteira comunhão do que eternamente ao ser se volve - oh vem ver o mar deste pontão firme na terra o anel no bico da gaivota vem ver devir continentes indivisos a longa espera quais solenes frutos a haver como nada se sobrepõe a si mesmo a final. Décadas de paz
À memória de Jorge de Sena, com um certo temor.
eles vêm matar-te companheiro e a questão é: para, quê o grande degelo? a calote tomará outra forma não necessariamente outra massa os amigos farão odes às amigas os gatos não temerão mais a lua com a sua reverberação insana e veneza será salva claro tudo isso é certo mas irónico silente o dedo do tempo esmagar-te-á e não poderás recomeçar o que nada acaba tu sim cada homem tem ensejo para um só grito na treva natal antes de recolher à lama mortais e imortais - todos mentiram. Metafísica insustentável era outubro e toda esta água a correr entre as pedras o musgo era doce um tremor inebriava os dedos álgidos ao toque. vi o sol reverberar nas altas copas uma espera irónica bailava o vento silente e raso entre as ervas.

O grande rebelde

(Fragmentos) «Cresce e fala na tua boca e crescem nas tuas mãos, cadeias. Arrasta para ti o Universo, arrasta! Ou serás tu arrastado.» HUGO VON HOFMANNSTHAL ele vinha do sul ou era assim que o víamos por essa estrada suspensa do azul a espargir o terror e o assombro dos murmúrios quando a sua sombra se erguia do chão e tocava a haste mais pura do silêncio. no seu olhar líquido uma pertinaz busca de cores e continentes a partilha dos sorrisos toda a intensidade dos gestos a nitidez dos limites eram com ele à sua chegada o rosto breve instante suspenso do acaso. jaz sobre a sua espada de sílica distenso a cabeça intacta pendida para o poente o peito aberto sobre a terra num abraço pastoso e lento vinde harpias beber do seu sangue que os seus inimigos não tardam a retalhar o seu corpo para o pasto das aves está morto. há um qualquer rumor novo nas cidades nas árvores correm notícias sussurradas e uma vez mais a mesa está posta para ele. (................................................... .................................................... ............................................) osa infecta já madura de verdades digladiantes su des halben zu entwohnen und im ganzen vollen schönen resolut zu leben — o velho de weimar não tinha astúcia subiu aos céus numa revoada de querubins gorduchinhos transformá-lo transformá-lo disse o caçador sem repouso trilhando o seu rasto de tabaco sobre a página insone pelejo com as unhas vai-se erguendo a manhã já afronta os olhos que buscais o dardo da manhã minha mais pura dádiva dardo feroz rasga a cortina do medo assim iremos eu e o JLRG no elmo empenachado a bola de terra dos heróis — how about it ez? — o sangue desperto lágrimas caíram aqui febre despojos muitos cabeça a descoberto o chacal atento senti-lhe o hálito os ombros contra uma porta que não abriu eis porque sou então «trágico» refractário à atenção dos críticos aduladores de sintagmas porque o tempo vem em que nenhuma palavra será poupada à demência dos agrimensores porque o tempo vem em que a tua voz soará falsa aos teus ouvidos como um eco maligno e irrisor o tempo vem para a barbárie neo-humanista o jusnaturalismo a eficácia performativa o irredento fedor dos cadáveres expostos por delírio de razão tempo do assassino homme de lettres acolitado por acessores a aderecistas vários te dirão o que te forçarás a acreditar por temor de ti próprio calar-te-ás então ou expelirás a propósito tuas novíssimas utopias sintéticas salvação pré-programada. (..................... .............................) a chuva caiu ontem todo o dia faz frio acorrem as danças esse maldito som de Maio coros e cores de quanto se foi incauto dessa vertigem revel riso à taça transbordante eu iria buscá-la a uma estação creio que em Coimbra recordo-me de certo cheiro a lavanda (ou maçãs verdes?) os dedos na sua saia ela sorria e cedia os olhos muito abertos feridos. estive em alguns sítios pouco recomendáveis fui estudante moço paquete marinheiro jacques viu-me dans le port d’amsterdam dans le port d’amsterdam a beber vinho arrotar alto e mijar às portas perseguido pelos cães conheci então querelle em ajaccio ofereceu-me tabaco sírio e anfetaminas pousou-me a mão no joelho toquei sax tenor num clube de jazz ganhei boas maquias à lerpa atento astuto o cigarro na boca descaído perdi uma eleição para deputado municipal perdi também a honra ocasionalmente escarnecido escarrado e calado as pernas trémulas o gelo na nuca. tive grandes esperanças e amei «por actos certos» certos porra como te odeio a ti fédor mikhailovitch lobo triste o pelo hirsuto e coçado aí na velha foto remoendo praga e peste a monstruosa providência estarás tu certo? (........................... ......) de polir as unhas do descontentamento mas era então o mês do grande degelo ele desceu ao horto com um grande arco na mão direita falou ao cão e ao açor e pousou o arco numa rocha junto de um regato bebeu então (.......................... ......................................... ...................................) quando regressou interrogaram-no sobre de que era feito o arco da aliança de todos os seres mas ele não ouviu a pergunta absorto nos seus pensamentos hialinos. baixou-se então lentamente e tocou a erva com as mãos olhou o sol durante o que nos pareceu muito tempo embora pudesse ser apenas um segundo seu finalmente sorveu o ar como que desperto tomou as suas armas e partiu pela floresta dos doze caminhos já escurecia nunca mais alguém o viu ou teve notícia dele. (.................................... ............................. .........) dade que dessas frondosas árvores se fizeram fósforos agora húmidos do suor de muitas esperas escrevi pois a seguinte Carta Para Atirar ao Mar Dentro de uma Garrafa Quando Encontrar Uma deixei de ler por completo rio agora com muito menos frequência viajo do quarto para a sala da sala para o sótão depois volto ao quarto e olho o tecto. o poder acha que sou um rapaz com interesse deu decerto instruções ao comandante distrital da psp — que não lhe toquem! há muitos anos que ninguém me toca e a publicidade na tv serve-se de mim para vender um chocolate e também um desodorizante creio sinto apenas um amolecimento de estearina por entre meus ralos cabelos — as coisas do espírito portanto — definhar a vontade nesse caldo tépido das coisas já vagas e indistintas vou talvez morrer neste ano ou não mas este será o meu último livro.



NOTA DE EDIÇÃO


Os poemas que se compilam neste volume foram escritos entre 1983 e 1991, sendo visíveis em muitos deles as marcas e o pathos específico de uma era passada, aliás facilmente identificáveis. Julgamos mesmo que a poesia, por mais que busque acercar-se do absoluto e do inominado, será sempre o produto desse atrito entre a nossa carne mortal e o tempo. Uma primeira versão, posteriormente alargada e refundida, das três primeiras secções deste livro, foi galardoada em 1986 com o Prémio Manuel Laranjeira de poesia instituído pela Câmara Municipal de Espinho, entidade que entretanto se desinteressou pela sua publicação. Alguns poemas foram já publicados na revista Vértice (série coimbrã), suplemento Ler e Escrever do «Diário de Lisboa», suplemento dominical e revista Encontro de «O Comércio do Porto», e ainda na bela e horrorosa Última Geração.

O autor deseja expressar os seus agradecimentos a Wolfgang Goethe, U2, Ruhollah Komeiny, Carlos de Oliveira, Dylan Thomas, Phillip K. Dick, Jacques Brel, Jorge de Sena, Bertold Brecht, Richard Wagner, Vergílio Ferreira, Genesis, Fernando Pessoa, Dante Aligheri, Karl Marx, Hans Magnus Enzensberger, Johann Christoph Hölderlin, Friedrich Nietzsche, Sex Pistols e Arthur Rimbaud. Os títulos, versos ou fragmentos de verso em itálico são citações suas. A muitos mais deve ele algo, naturalmente, mas terá de dirigir-lhes um aceno muito genérico.

O autor persiste em respirar, brutal e inconsideradamente, mas vai agora concentrar-se sobretudo em envelhecer sem mais sobressaltos.

Na capa de Exílio de Caim reproduz-se parcialmente uma fotografia de Leonard Freed, extraída de New York Police (Photo - Notes, 1990). Deste volume tiraram-se, durante o mês de Setembro de 1992, 300 exemplares, na Tipografia Freitas Brito, Lda., Rua do Ferragial, 12 a 20, em Lisboa.

                                                                           Lisboa, Outubro de 1992
1
Hosted by www.Geocities.ws