Diálogo sobre a sociedade do futuro

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Anselmo:
Dizes ser partidário do comunismo. Numa época em que essa bandeira está tão generalizadamente votada ao descrédito, não achas que a reconstituição do movimento terá de passar primeiro pelo encerramento do debate e por um balanço final da experiência soviética?

Leocádio:
Tenho escasso interesse em categorizações rígidas da formação social da defunta União Soviética. Isso geralmente conduz a estéreis guerras conceptuais, de carácter mais ou menos escolástico, constituindo terreno ideal para o sectarismo. A minha convicção é que a revolução soviética (entendida como movimento à escala europeia) foi derrotada no começo da década de 20, não tendo chegado sequer a esboçar uma estratégia coerente de transição para o comunismo. Isso aconteceu por diversas razões, sendo que a primeira e mais decisiva delas terá sido o insuficiente desenvolvimento das forças produtivas na velha Rússia. Persistiu a separação entre trabalho manual e intelectual; mantiveram-se as relações mercantis (salários, preços, etc.) e a vigência da lei do valor; o trabalho era arregimentado e alienado; o Estado manteve-se e reforçou mesmo as suas funções.
Basicamente, o que ocorreu foi uma mudança meramente jurídica (logo, apenas superestrutural): a transferência da propriedade dos mais importantes meios de produção. Isto é, obviamente, uma simplificação mas servirá para os efeitos demonstrativos que agora tenho em vista. A União Soviética foi um grandioso projecto político e as suas marcas - nomeadamente a emancipação política das nações colonizadas - estão ainda vivas em todo o percurso deste longo século XX. Todavia, não chegou sequer a empenhar-se verdadeiramente nas tarefas de transição para o comunismo. Lenine estava certamente alertado para esta problemática e fez importantes contribuições teóricas para ela. Nos seus últimos escritos, podemos sentir uma crescente ansiedade a este propósito. Após a sua morte, a questão foi completamente falsificada e a ortodoxia revisionista tomou conta do aparato do PCUS.
A lição teórica fundamental a reter é que o capital não é uma coisa, um objecto (erro muito comum entre economicistas e toda a espécie de social-democratas, de Estaline aos socialistas de mercado). O capital é uma relação social historicamente determinada. A simples expropriação ou nacionalização não começa sequer a tratar do problema da transição. A propriedade (posse, contrôlo, etc.) é uma mera manifestação da existência de dadas relações de produção, não o contrário. Transferir a propriedade dos principais instrumentos económicos, em si mesmo, não altera em nada as características sociais fundamentais de um determinado modo histórico de produzir.
O movimento e os partidos de tradição operária têm estado empenhados num projecto socialista, aliás hoje em dia de tal modo corrompido que chegou à irrisão. Ora nós, marxistas, somos comunistas. O nosso objectivo é o comunismo e este não é um sonho utópico de uma qualquer noite de Verão. Muito pelo contrário, o comunismo é a nossa tarefa imediata. Ele está perfeitamente na ordem do dia, apesar de muito poucas pessoas se aperceberem disso.
O desemprego estrutural que se verifica presentemente nas sociedades industriais mais avançadas é causado pelas mudanças tecnológicas, isto é (sob o capitalismo), pela elevação da composição orgânica do capital. Este processo está a entrar em conflito com as presentes relações de produção, cuja lógica apenas permite ao trabalho vivo ser fonte de valorização do capital. Como Marx predisse, as taxas de lucro estão em queda. A burguesia tenta alargar as suas margens de lucro atacando a remuneração do trabalho (salários reais e diferidos, prestações sociais, etc.). Mas isto apenas pode conduzir a uma crise de sub-consumo e dificuldades para a reprodução da força de trabalho. O capitalismo evolui, de crise em crise, num círculo vicioso perfeito.
A resposta para esta situação é uma nova concepção do trabalho social. Devemos trabalhar todos, menos, diferentemente. Para isso teremos que operar uma ruptura com as relações de produção capitalistas. E isso só poderá acontecer mediante uma revolução política e tomada do poder estatal em todo o mundo pelo proletariado internacional.
Durante bastante tempo, continuaremos a ter salários, preços e mercado. O trabalho continuará a ser (economicamente, pelo menos) compulsório. Mas, devido à aceleração da revolução tecnológica, os horários de trabalho reduzir-se-ão continuamente (20 horas por semana, 15, 12, 8...). O tempo disponível assim ganho será ocupado com actividades livres e criativas dos trabalhadores (e não desperdiçado, como hoje, em lazeres mercantilizados). Muitas destas actividades serão, é claro, produtivas, mas completamente livres das relações de produção capitalistas. Será trabalho comunista. Não subsistirá aqui qualquer divisão do trabalho e, portanto, nenhuma relação mediatizada pelo valor ou pelo dinheiro como equivalente geral.
Uma feroz batalha (e também cooperação) entre estes dois modos de produção se produzirá então, sob o contrôlo e direcção da ditadura do proletariado. No final deste processo, a subsistência e progresso da sociedade humana será inteiramente baseada na actividade livre, criadora e associativa dos trabalhadores. Será uma economia (ou, talvez melhor, uma pós-economia) da abundância e do dom, sobre a qual nenhum tipo de coerção (v. g., o Estado) subsistirá. Não haverá mais dinheiro ou relações fetichizadas. De cada um segundo as suas possibilidades, a cada um segundo as suas necessidades. O reino da liberdade triunfa sobre o reino da necessidade.
É claro, tudo isto são generalidades. Mas se pensas que é puramente utópico, é melhor veres de mais perto porque pode este processo estar já a começar a desenrolar-se, bem diante dos teus olhos. Tudo o que posso dizer é que estamos perante a necessidade urgente de trabalhar novamente, de raiz, a teoria da transição. De outro modo, poderemos em breve encontrar-nos, totalmente impreparados, perante as suas tarefas concretas e inadiáveis. É claro, todo este processo não é certo ocorrer de todo. Não acredito em nenhum determinismo histórico férreo. O que temos seguramente é uma boa hipótese de lá chegar, talvez iniciando a ruptura já na primeira metade do próximo século. A iniciativa é nossa. Os dados estão lançados.
O “velho” enganou-se frequentemente, na análise política de acontecimentos seus contemporaneos e em questões técnicas menores. Mas o seu domínio profundo sobre a lógica interna e a estrutura do capitalismo (produto de décadas passadas a percorrer e ruminar “das ökonomischen scheisse”) fizeram dele o mais poderoso dos visionários históricos.

Anselmo:
Serás capaz de descrever detalhadamente como podem e devem ser então conduzidas no futuro as diversas tarefas da transição, em especial a liquidação da divisão entre o trabalho manual e intelectual?

Leocádio:
Comecemos pela minha própria experiência pessoal sobre a divisão entre trabalho manual e intelectual. Eu tenho um emprego como consultor jurídico numa autarquia local (é trabalho improdutivo mas os métodos de organização são semelhantes ao do trabalho criador de riqueza). Tipicamente, isto significa estudar alguns volumosos e confusos processos administrativos, acrescentando-lhes depois mais uma ou várias folhas de papel com a minha opinião jurídica sobre o assunto. Com alguma sorte, o dossier será então carregado para uma qualquer outra secretária distante. Os meus colegas de ofício fazem isto da seguinte maneira: escrevem o seu parecer ou informação e entregam o manuscrito às “meninas” (empregadas de secretaria administrativa). As “meninas” dactilografam então o texto em computador, imprimem-no e entregam-no de novo ao jurista para corrigir erros. Depois o texto volta às “meninas” para correcção e novamente para o jurista para assinar (por vezes ainda para acrescentos e novas correcções).
Eu faço tudo isto de modo diferente. Dirijo-me de imediato para a sala das “meninas” (onde estão os computadores) e, enquanto converso amigavelmente com elas, dactilografo a minha própria informação, corrijo-a, faço o seu lay-out, imprimo-a e assino. Os meus colegas, é claro, desprezam este tipo de sociabilidade inter-classista. Mas eu pratico-a apenas em parte por convicção ideológica. A verdade é que o meu método é incomparavelmente mais rápido e eficaz. É claro, tudo isto é muito belo e até idealista mas, sob o domínio das relações de produção capitalista (e a minha autarquia guia-se por princípios de racionalidade económica), a generalização dos meus hábitos de trabalho tenderia, mais tarde ou mais cedo, a deixar as “meninas” sem o seu emprego. Felizmente, a arrogância e preconceito de classe dos meus colegas impedirão, durante mais algum tempo, que isto aconteça.
Esta história não é meramente anedótica. Este novo sincretismo entre tarefas manuais e intelectuais é imposto pelas tecnologias mais avançadas. Há algumas indústrias (software, electrónica, etc.) onde praticamente não se contrata já trabalho predominantemente manual. A fronteira entre o “blue-collar” e o “white-collar” torna-se fluida e incerta. Isto reflecte-se mesmo nas mais modernas teorias burguesas de administração de empresas, onde as hierarquias rígidas e piramidais do taylorismo perdem terreno a favor de estruturas mais abertas, livres e flexíveis. Penso que os trabalhadores do futuro comunista serão sobretudo engenheiros e o seu labor consistirá em supervisionar e optimizar o funcionamento de vastos e complexos sistemas produtivos automatizados, fazendo eles próprios no local os necessários ajustamentos e melhorias. A maior parte (e depois a totalidade) do tempo de vida humana será libertado do trabalho físico compulsivo. É claro, a actividade livre e criativa de todos constituirá a atmosfera cultural em que o progresso no campo produtivo se processará. Logo, as fronteiras entre trabalho produtivo e improdutivo tenderão também a esbater-se. Trabalho, arte, ciência e desporto serão ocupação comum de todos. Trabalharemos todos filosofando alto, com as nossas mentes e as nossas mãos. O efeito acumulado e combinado de toda esta actividade, individual e colectiva, será o “governo”, se é que esta palavra será ainda portadora de algum sentido. Não tenho, é claro, nenhuma rota infalível traçada para chegarmos de aqui até lá. Como disse, importantes tarefas teóricas esperam-nos e são urgentes. Felizmente, alguns camaradas já as iniciaram. Mas a maioria de nós continua ainda demasiado confusa, desmoralizada e sem rumo. Outros, tenderão ainda a socorrer-se exclusivamente de teorias estalinistas e/ou maoistas. A meu ver, estas pura e simplesmente não servem. Uma vez mais, não quero envolver-me numa discussão dos méritos das revoluções soviética e chinesa. Lenine e Mao Zedong foram grandes revolucionários e muitos dos seus ensinamentos são indispensáveis. Além disso, eram ambos comunistas (o que é já mais do que se pode dizer tanto de Estaline como de Trotsky). Mas a transição para o comunismo não foi ainda verdadeiramente empreendida em lado algum. Não na Rússia, não na China, não em Cuba.
Iremos certamente necessitar de:
1) Ditadura do proletariado à escala mundial;
2) Uma enorme realocação de recursos, retirando-os à produção mercantilizada ou aos sectores que apenas fazem sentido dentro da sua lógica (armamentos, produtos de luxo, publicidade, automóvel, finança, etc.) e empregando-os na satisfação das necessidades básicas das pessoas, sua educação e formação profissional;
3) Distribuição do trabalho (económica ou administrativamente) compulsivo por todos os indivíduos aptos, o que permitirá de imediato uma significativa redução do seu horário semanal. Algumas estimativas estabelecem que, após a realocação de recursos prevista em 2), e mantendo o presente nível de produção, poderíamos começar imediatamente com um horário semanal de 20 horas. Para todos. À medida que os níveis de produtividade subissem, os horários semanais de trabalho reduzir-se-iam, tendendo para zero;
4) Enquanto isto, o modo de produção comunista começa a florescer, com base na actividade livre de todos os trabalhadores. À medida que ele satisfaz cada vez maior número das necessidades humanas correntes, a produção mercantilizada circunscrever-se-à cada vez mais a certas bolsas de resistência isoladas;
5) Sob a liderança e vigilância política do proletariado, toda a produção mercantilizada será finalmente extinta. Salários, preços e mercado serão coisas do passado. A oferta e a procura estarão em permanente contacto por intermédio de uma miríade de canais de comunicação electrónica instantânea.
Nesta fase, não poderei dizer muito mais do que isto. Em última análise, só a luta de classes concreta e real poderá traçar as sendas do futuro, completando este esboço ou desmentindo-o por completo. Contudo, creio estarmos já na posse de elementos suficientes para iniciar o trabalho numa teoria da transição, mais ou menos de acordo com estes traços gerais. A teoria pode também ser uma força material e um elemento decisivo no despertar da consciência e combatividade da classe. A nossa mensagem para o proletariado e para as massas deve ser: há fortes razões para a esperança e vida para lá do capitalismo. Prossigam na luta, quebrem o jugo.

Anselmo:
A natureza da transição entre o capitalismo e o comunismo é, obviamente, a questão chave da revolução. Tu opões-te aos estéreis debates sobre se a União Soviética era capitalista ou não, propugnando antes um melhor esclarecimento teórico do período de transição. Estás a tentar reorientar o método da discussão. Também eu penso que o problema não é apenas que várias visões erradas aparecem nesses debates. A questão é que temos que encontrar um melhor método de abordagem.

Leocádio:
Sim, penso que um melhor método de abordagem deve ser achado. Em particular, um que não esteja comprometido por dogmas petrificados que nos foram legados pelos diversos participantes nestes acontecimentos históricos e que são ainda hoje objecto de culto nas minúsculas seitas dos seus seguidores e devotos. Um certo “retorno a Marx” será útil aqui.

Anselmo:
Contudo, parece-me que a questão de saber se a União Soviética era capitalista de Estado ou socialista é importante. De um ponto de vista teórico, a avaliação dos regimes revisionistas é uma das questões chave da história revolucionária do século XX. Isto é algo de novo e da avaliação destes regimes depende em larga medida saber-se se o marxismo se sustém ou está ultrapassado. O proletariado, quando reconstruir partidos revolucionários, será imediatamente confrontado com a questão: foi o socialismo ou o capitalismo de Estado que entrou em colapso nos finais do século XX?

Leocádio:
Não albergo grandes dúvidas sobre esse assunto. Penso que a União Soviética era capitalista, tendo perdido o rumo à transição esperada pelo menos desde o final das guerras civis (e de intervenção estrangeira). Isto é, as tarefas específicas da transição não chegaram a ser desempenhadas. Lenine fez um tremendo esforço, em circunstâncias históricas muito difíceis, mas a verdade é que estava ele próprio bastante confuso. Não temos uma estratégia leninista coerente de transição para o comunismo.

Anselmo:
Poder-se-ia dizer que a definição estalinista de socialismo desiste do objectivo comunista, chamando socialismo a algumas características próprias da transição. Isto é uma parcela da verdade. Mas a crítica do estalinismo e dos regimes revisionistas tem de ir mais longe. Não é só uma questão da visão teórica do socialismo dada pelos revisionistas mas também a de saber-se se estes regimes estavam de facto em transição para o socialismo ou estavam antes, de facto, a construir uma ordem capitalista de Estado. Ou seja, os revisionistas permaneceram - embora errados - nossos camaradas ou atravessaram as linhas de classe?

Leocádio:
Eu creio que, na maioria dos casos, eles atravessaram claramente essas linhas de classe. Quem, quando e porque o fizeram permanece (e permanecerá certamente por muito tempo) matéria sujeita a debate. Estou convencido que muitos partidos operários atraiçoaram a sua linha de classe ainda na oposição. Outros fizeram-no já no poder. Outros não está ainda bem claro que o tenham feito de todo. A corrupção revisionista (que obedece no fundo à dinâmica da luta de classes no seio dos partidos operários ou nas sociedades de transição) é um processo longo, complexo, não linear, sujeito a retrocessos e flutuações. Não há um ponto determinado, claramente identificável, a partir do qual se possa dizer que a traição se consumou. Por outro lado, não creio que se possa, desde já, tratar esta questão cientificamente.
No estado actual do debate, tudo parece depender de convicções sobre as crenças íntimas dos dirigentes. O que nos conduz ao extremo caricato dos estalinistas/maoistas que apontam a data e hora exacta da morte dos seus ídolos como referência temporal última do triunfo do revisionismo, quer na União Soviética quer na China. Todavia, a meu ver, os dirigentes poderão ainda estar fundamentalmente de boa fé e o processo de transição ter já flagrantemente descarrilado devido ao influxo imparável de forças históricas regressivas. Fidel Castro é um vigarista ou um D. Quixote? Recentemente li um livro (de Evgueni Varga) que tinha um capítulo dedicado aos últimos anos de Lenine intitulado “o sonhador no Kremlin”. Há uma dialéctica entre os factores objectivos e subjectivos que normalmente escapa aos “estudiosos”. É tudo pois, fundamentalmente, uma questão de estrutura e dinâmica sociais, a ser estudado segundo as leis do materialismo histórico. O problema é que a história é uma ciência que não pode ser estudada “contemporaneamente”. Precisamos de distanciação e de perspectiva. Hoje temos mais ou menos bem estabelecido onde e quando se deu a transição do feudalismo para o capitalismo, mas a transição para o comunismo (a nossa tarefa presente) não tem ainda um percurso traçado. Lenine, com toda a certeza, não era um dirigente oportunista, mas estaria ele no trilho certo para o comunismo? Só a história o dirá quando puder ser feita com rigôr.

Anselmo:
Embora elementos capitalistas e socialistas se misturem na economia de transição, penso que não se pode entender que haja uma parte da economia que seja comunista, outra que seja capitalista e uma luta entre elas. É certo que as forças socialistas e comunistas na sociedade de transição lutam contra as forças da regressão e do capitalismo, mas as forças comunistas não estão organizadas ao modo de uma sociedade sem classes:
- Uma sociedade sem classes não tem partido nem governo; no entanto, as forças comunistas na sociedade de transição apoiam a ditadura do proletariado e o partido proletário;
- A classe operária procura desenvolver um controlo social sobre a produção na sociedade de transição; no entanto não há uma classe trabalhadora na sociedade sem classes;
- Uma sociedade sem classes não tem divisão em classes, enquanto a sociedade de transição a tem. Poderemos dizer que uma parte da sociedade de transição não tem classes e que uma outra parte está dividida em classes? Não seria isto como dizer que os subúrbios operários de hoje são o embrião de uma sociedade sem classes já que a burguesia vive alhures?
- Pode uma parte da economia ter um horário normal de 40 horas por semana e outra parte ter 20 horas por semana? E como pode uma parte da economia ser inteiramente livre de dinheiro e produção mercantil, enquanto outras partes recalcitrantes da mesma economia se basearão ainda na produção mercantil: como trocarão elas os seus produtos entre si?

Leocádio:
Antes do mais, queria esclarecer que eu uso o termo socialismo (quando o uso de todo) como sinónimo de sociedade de transição ou, considerada nas suas características políticas, ditadura do proletariado. A transição de que falamos é para o comunismo. Teremos pois, sociedades capitalistas, depois sociedades post-revolucionárias (ou socialistas) e, finalmente, sociedades comunistas. Não acredito pois em “construir o socialismo”. O socialismo é um estado dinâmico (caracterizado por um equilíbrio de forças favorável à transição para o comunismo), não um objectivo ou uma realidade social de características claramente identificáveis.
Posto isto, parece-me que não compreendeste de todo o meu esboço de uma sociedade em transição. Devo, antes do mais, advertir para o facto de este ser um esboço puramente conjectural. Nunca teve realização objectiva em qualquer parte do mundo. Por outro lado, ele supõe a existência de altos níveis de produtividade e um certo grau de abundância.
A meu ver, a ditadura do proletariado imporá um horário de trabalho semanal para todos. Digamos, 20 horas por semana. Ninguém mais trabalhará 40 horas semanais. Todo o cidadão - incluindo os capitalistas remanescentes, burocratas, etc. - trabalhará 20 horas por semana, sendo remunerado por isso com um salário. Com esse salário, as pessoas poderão comprar bens que continuam a ser produzidos e distribuídos através de mecanismo mercantis. Porém, como as pessoas têm muito tempo livre poderão (sob direcção e contrôlo genéricos da ditadura do proletariado) começar a empenhar-se em trabalho comunitário livre. O produto deste trabalho é distribuído livre e gratuitamente.
Suponhamos que eu trabalho numa fábrica capitalista de computadores. No meu tempo livre, cultivo laranjas, por puro divertimento. Tu terás que gastar parte do teu salário a comprar um computador dos que eu ajudo a fabricar mas podes ter as minhas laranjas de graça. Ou terás a opção de consumir laranjas que sejam ainda produzidas numa base mercantil, se estas forem de melhor qualidade ou se tu fores um ideólogo burguês empedernido. A ditadura do proletariado supervisionará todo este processo, dirigindo os recursos de um sector para o outro. Reprimirá os esforços da classe capitalista para alargar a influência das relações mercantis e recuperar o poder político. Um certo grau de competição existe pois entre o sector capitalista e o sector comunista. A ditadura do proletariado providenciará que ela se desenrole com vantagem progressiva e consolidada para as posições de classe dos trabalhadores. O capitalismo privado apenas será tolerado onde e enquanto for necessário para assegurar a provisão da sociedade em certos bens.
À medida que os níveis de produtividade se elevam, o trabalho assalariado começa a contrair-se. Digamos que, após 30 anos, talvez possamos estabelecer uma semana de trabalho de 15 horas, novamente para todos. Talvez possamos então pôr fim a todo o capitalismo privado, colocando todos os meios de produção sob apropriação social. Talvez possamos reforçar o contrôlo democrático sobre todas as unidades de produção e os órgãos de planeamento. Seremos todos proletários, como trabalhadores assalariados e, simultaneamente, seremos todos produtores comunistas.
Uma vez que dispomos agora de ainda mais tempo livre, mais bens podem ser produzidos inteiramente fora dos circuitos do capital. No fim do processo, digamos, dentro de uns cem ou duzentos anos, toda a produção será comunista. Não subsistem as distinções de classe. O Estado deperece. Em meu entender, nenhum aparato administrativo separado será necessário para regular a economia. Na verdade, não há já qualquer economia. É aqui que entram as comunicações electrónicas instantâneas, equilibrando a oferta e procura de bens de forma perfeitamente ajustada, sem hiatos nem “crises”. A alocação de recursos produtivos é automaticamente canalizada para onde as pessoas, de forma inteiramente livre, colocam maioritariamente as suas exigências de consumidores. É um sistema “anárquico” no sentido em que ninguém tem o poder de dirigir e controlar a livre iniciativa dos produtores. Contudo, lembra-te bem, não é da oferta e procura capitalistas que estamos a falar aqui. Não há mercado e a lei do valor foi abolida. Trata-se aqui de produção e distribuição inteiramente livres. Significa isto tão só que a sociedade se auto-regulará, produzindo e consumindo de acordo com a sua livre vontade e desígnio.

Anselmo:
Com respeito à teoria da transição, tinhas razão quando disseste que eu não tinha compreendido totalmente a imagem que fazes da sociedade comunista. Mas a verdade é que continuo a ter um certo número de questões a pôr-te sobre os teus pontos de vista.
Vejamos a questão do planeamento social e da produção planeada. Eles diferem inteiramente da concepção burguesa segundo a qual um tirano diz a toda a gente o que se deve fazer. Numa sociedade sem classes a administração das coisas não é certamente a mesma coisa que um governo.

Leocádio:
O planeamento é um instrumento indispensável durante o período de transição. Mecanismos de mercado funcionarão aí também, nos interstícios progressivamente reduzidos que lhes serão deixados. Tenho porém problemas em aceitar um corpo separado de planeadores numa sociedade plenamente comunista. Por mais contrôlo democrático que se exerça sobre eles, a tendência existirá sempre para que eles se constituam como uma nova oligarquia. E o perigo existe igualmente de que este corpo de planeadores exerça pressão no sentido da apropriação de facto dos meios de produção.
Eu sei que, na tua concepção, o planeamento será feito pela sociedade no seu todo, logo não haverá um corpo separado de planeadores. Não vejo porém como isto possa ser feito, a não ser por intermédio de mecanismos (electrónicos) de comunicação instantânea. Dado que estamos a falar da alocação de recursos (ou da mera “administração das coisas”), posso concluir que as nossas visões não estão afinal assim tão separadas como isso?

Anselmo:
A questão do planeamento na sociedade futura, plenamente comunista, parece ser uma daquelas questões em que continuamos ambos a tentar perceber o que o outro quer dizer. Tu tens certas questões sobre o que quero eu dizer com planeamento por intermédio da sociedade no seu todo, enquanto eu não percebo como é que o planeamento pode ser feito simplesmente através de comunicações electrónicas instantâneas.

Leocádio:
É verdade que continuamos ambos a tentar perceber o que é que o outro entende por comunismo. Mas também é verdade que isto acontece desde que existe um movimento comunista, o que remonta a muito antes de Marx e Engels. Pessoas vêm lutando pelo comunismo há milénios e nunca ninguém fez uma ideia muito clara de como ele funcionaria.
O comunismo é uma ideia de tal maneira compulsiva que se assume que ela haverá de ser, de um qualquer modo, factível. Será uma reminiscência de um outro mundo, de antes da queda?... Como sabes, eu não sou um homem religioso. Se o comunismo não for tão só uma ilusão religiosa (e isso é ainda uma hipótese), então deve ser uma poderosa intuição colectiva. Marx também não era um homem religioso, mas quando escreveu a “Crítica do Programa de Gotha”, estava claramente transpondo a fronteira entre a ciência e a profecia visionária.
A minha ideia é que estamos agora a entrar num estádio da civilização capitalista em que podemos não apenas imaginar o comunismo (e o quadro torna-se cada vez mais nítido), podemos mesmo começar a ver pequenos fragmentos seus emergir espontaneamente. O nosso dever é estudar estas matérias em detalhe e começar a preencher as lacunas. No final, não teremos apenas uma visão, mas sim um muito concreto e detalhado programa político para a transição. Poderemos mostrar - com factos, números e gráficos - que há um caminho a percorrer que nos pode levar ao comunismo, já ao dobrar da próxima esquina da história. Provavelmente só então o proletariado se levantará para o ajuste de contas final com a burguesia.

Anselmo:
Na verdade, eu penso que haverá algum tipo de aparato administrativo no comunismo. Será ele um “corpo separado”? Sim e não. Ele não será um corpo separado na medida em que não estará alienado da sociedade como um todo; não estará separado e acima da sociedade; não haverá uma classe especial de pessoas que dirigem e dispõem do destino da grande massa dos excluído. Por outro lado, ele será um corpo separado no sentido em que existe, sem dúvida, com uma individualidade própria.

Leocádio:
Tenho muitos problemas com esta tua formulação. Ela quebra a simetria perfeita da nossa visão, que é para já a melhor garantia que temos. E também choca com algumas das características tidas por assentes da futura sociedade comunista: a abolição da divisão social do trabalho e da distinção entre trabalho manual e intelectual. Um corpo administrativo separado criará métodos de direcção, a sua própria ciência “separada”. Isso significa que as pessoas comuns ficarão alienadas de importantes decisões que afectarão as suas vidas. É uma questão de tempo e acabaremos por regressar a uma sociedade de classes.

Anselmo:
Marx e Engels afirmaram que a produção em larga escala requer um certo trabalho de supervisão; e requer também uma certa autoridade directa. Eles não se coibiram de apontar que, seja na produção fabril ou na direcção de um navio à vela, tem que existir uma tal autoridade. Eles distinguiram, em princípio, entre a natureza repressiva de uma tal autoridade na sociedade de hoje e a supervisão que será sempre necessária na produção de larga escala. Só a produção em larga escala cria a possibilidade de os trabalhadores se libertarem da escravidão; mas a produção em larga escala é necessariamente produção coordenada, esforço coordenado.
A questão chave do comunismo (que ditará o seu triunfo ou perecimento) é se essa coordenação pode ser conseguida sem opressão. Os capitalistas dizem que não, sendo portanto o comunismo utópico e irrealista. Marx e Engels disseram que sim - se os meios de produção forem propriedade social, se as divisões de classe na sociedade forem eliminadas, a coordenação e administração da produção pode perder o seu carácter político, tornando-se uma administração “de coisas” e não uma opressão de pessoas. O marxismo diz que não é a existência de um aparato administrativo em si própria que cria opressão, mas a divisão da sociedade em classes. São os anarquistas que dizem que não - que tudo o que não seja democracia directa é opressivo, não se apercebendo que estão assim a acorrentar as massas ao mercado.

Leocádio:
Depois de te ouvir dizer isto, dá-me a impressão que o teu anti-revisionismo ainda não foi suficientemente longe. Com o que acabas de dizer poderíamos facilmente encontrarmo-nos na mesma velha ratoeira revisionista. Tu partes da “propriedade” social dos meios de produção para a eliminação da divisão em classes. Isto é exactamente o método estalinista.
Mas a divisão da sociedade em classes não é uma função da propriedade dos meios de produção. É antes o contrário. Uma certa divisão em classes da sociedade (produto de determinadas relações de produção) é que gera uma determinada forma de apropriação dos meios de produção. Propriedade é um mero conceito jurídico (burguês). Se quisermos superar o capitalismo, não podemos limitar-nos a expropriar a burguesia, mantendo depois vigilância apertado sobre o inimigo que brota do nosso próprio seio (a luta em duas linhas dos maoistas). Temos que transformar as relações de produção, o que só pode ser feito se as forças produtivas estiverem suficientemente maduras.
É verdade, é claro, que a produção em larga escala implica esforço coordenado. Mas como é que este esforço será coordenado? Se o fôr pelos métodos autoritários tradicionais (por um corpo separado de planeadores), não nos teremos afastado um centímetro das relações de produção capitalistas. Os correspondentes padrões de apropriação seguir-se-lhe-ão necessariamente, após um período de degenerescência revisionista. Podes gritar, pular e fazer mil e uma “revoluções culturais”. É inevitável.
E como é que este aparato administrativo se restringirá à “administração das coisas”? Será que as coisas se começarão a mover de um lado para o outro à voz de comando do aparato administrativo? Não será afinal necessário comandar pessoas? As decisões (por mais democráticas e participadas que o sejam) não serão depois impostas pela força? Não será pois necessário um aparato repressivo que assegure a obediência? Não é isto um Estado? Portanto, aí tens: um Estado na tua sociedade “sem classes”. Este paradoxo deriva do erro teórico que cometes na tua abordagem da transição, ou seja, continuas preso nos pântanos revisionistas.

Anselmo:
A tua concepção é que a coordenação da produção pode ser conseguida por intermédio de mecanismos de democracia electrónica. Não compreendo como é que concebes isto, como é que isto se pode fazer. Por exemplo, tu falaste de a oferta e a procura serem postas em contacto. Eu compreendo como é que isso se passa num mercado, entre compradores e vendedores. Este método é adequado para estabelecer conexões no mercado entre uma multidão de pequenos produtores. Mas não compreendo como é que a oferta e a procura podem dirigir por completo a produção numa sociedade sem classes, ou proporcionar um planeamento consciente.

Leocádio:
A ideia genérica seria: disponível em casa no teu monitor (Tv, PC e video-fone integrados) tu terás uma descriminação detalhada de todas as necessidades e exigências de bens e produtos, conforme expressas por todos os cidadãos. Tu próprio podes introduzir as tuas exigências de consumidor no sistema através do teu terminal doméstico. O sistema então analisará os recursos produtivos disponíveis e apresentará um quadro síntese, de fácil consulta, que indica em que sectores é que a sociedade dispõe de excesso de capacidades para a procura registada e onde é que ela está em défice. A contabilidade e registo universais que Lenine considerava fundamental para a construção do comunismo poderá ser facilmente feita através da internet. Poderíamos chamar-lhe Centro Mundial de Estatísticas sobre Recursos Vladimir Lenine, ou qualquer coisa no género. Toda a gente teria acesso a esta informação. Todas as decisões individuais serão assim intervenções socialmente conscientes.
Como as pessoas estarão imbuídas de valores cooperativos, elas tenderão a deslocar as suas ocupações dos sectores onde elas já não são necessárias para aqueles em que ainda há falta de recursos. Como as pessoas são altamente educadas e as tarefas produtivas relativamente simples, mudar de ocupação é uma coisa fácil e até atraente. Não haverá incentivos materiais para o fazer. As pessoas fá-lo-ão simplesmente movidas pelo desejo de ser socialmente úteis. Um novo equilíbrio é assim atingido. É a “mão invisível” do comunismo. O planeamento consciente é o resultado da soma de todas estas decisões informadas dos produtores, mediante as quais a oferta e a procura de bens manterão entre si uma ligação íntima e subtil, em tempo real, evitando quer os desencontros catastróficos próprios da sociedade mercantil capitalista, quer as disfunções conhecidas do planeamento burocrático.
Apesar das aparências em contrário, não há “produtores individuais”, ao gosto anarquista, na sociedade futura atrás descrita. Ela será uma sociedade holista e cooperativa no sentido marxista, mas uma em que a informação necessária para a sua coordenação flui “por todo o lado”, multilateralmente, e não num esquema piramidal. Ela funciona perfeitamente coordenada, mas as pessoas não são nelas meras peças numa engrenagem cujos propósitos e direcção geral lhes escapem. Elas conhecem todo o quadro e movem-se conscientemente dentro dele.

Anselmo:
Quando eu falo de o planeamento ser feito pela sociedade como um todo, não quero apenas dizer que os órgão planeadores são eleitos pela sociedade. E não penso que planeamento central signifique que um único órgão planeador decide até ao último detalhe, sendo as suas decisões impostas por agentes nomeados que vão até cada empresa e dizem “façam exactamente assim”. A todos os níveis, as pessoas envolvidas devem ter a sua própria consciência e iniciativa (e também o seu próprio quinhão de contribuição para as decisões gerais); elas tomarão uma miríade de decisões por si próprias; mas as decisões locais devem conter-se nos limites do plano global.

Leocádio:
Ouve por favor, Anselmo - isso que estás a dizer é um montão de boas intenções, das quais, rezam crónicas fidedignas, o Inferno está cheio. Essa via já foi tentada antes e falhou. Não há aí nada de novo. Nós tivemos alguns dos mais dotados dirigentes comunistas deste século prosseguindo essa via, seguidos por tremendas vagas de entusiasmo e emulação populares. Tudo falhou. O que te faz pensar que resultará agora? O facto de agora termos estudado o revisionismo e estarmos preparados para o enfrentar? O facto porém é que, quando embarcas nesta via, partes já derrotado. Estás a assumir que haverá sempre dirigentes e dirigidos. Os primeiros decidirão da alocação de recursos produtivos (incluindo o trabalho humano), enquanto os segundos obedecerão e colaborarão por todas as formas, preenchendo os pequenos detalhes de execução (à maneira dos “círculos de qualidade” toyotistas de hoje). Isto é, porém, a essência da sociedade de classes, o seu núcleo definidor. É sobre esta mesma invariante que as diversas formas de exploração se sucederam historicamente.
Enquanto seguires esta via, a apropriação privada capitalista dos meios de produção lutará sempre por reaparecer à superfície. As relações de produção capitalistas estarão envoltas num sobretudo institucional que não lhes serve. É por isso que o capitalismo de Estado é instável. Ele funciona e pode mesmo obter resultados extraordinários, em períodos de grande mobilização social. Quando as coisas voltam à velocidade de cruzeiro (e nenhuma sociedade pode viver permanentemente, durante gerações, em estado de dinamização revolucionária), ele continua a funcionar. Mas não tão bem como o capitalismo puro e simples. Quando se apercebem disso, todos os dirigentes “comunistas”, bon gré, mal gré, acabam por se render ao revisionismo. Tipicamente, começarão por conceder alguma liberdade de gestão às empresas, depois alargam-se as relações de competição mercantil, por fim opera-se a privatização pura e simples.

Anselmo:
Marx e Engels propugnaram que, após a tomada do poder pela classe trabalhadora, esta transformará antes do mais os meios de produção em propriedade estatal. É um passo dado no sentido de se entregar à sociedade no seu todo a direcção da produção. Assim, a nacionalização da economia é uma parte inevitável do período de transição, o que não quer dizer porém que toda e qualquer nacionalização seja um passo na direcção do socialismo. Só é um tal passo quando for promovida por um governo proletário e, além disso, quando servir para aumentar a capacidade da classe operária para tomar o contrôlo da produção.

Leocádio:
Concordo com o que tu dizes, com algumas reservas. Quando os trabalhadores tomarem o poder, eles não se limitarão a usar o Estado tal como o encontrarão; eles esmagarão o Estado burguês e erguerão no seu lugar um aparelho político completamente diferente - a ditadura do proletariado. É claro que sabes isto perfeitamente. Trata-se do ABC da teoria marxista do Estado. Após a tomada do poder, os trabalhadores prosseguirão então assegurando o contrôlo da economia e revolucionando as relações de produção. Nesta última parte é que a luta de classes se centrará na sociedade de transição. Uma enorme quantidade de energia e imaginação tem de ser investida aqui.
O facto é que a nossa linguagem política corrente prega-nos partidas. Quando tu empregas expressões como “governo” proletário, “nacionalização” da economia ou “propriedade” estatal, deves ser alertado para o facto de estares a usar conceitos saturados de significado burguês, com pesadas reminiscências revisionistas. Os trabalhadores não se limitam a formar “governo”, nem a “nacionalizar” os meios de produção transformando-os em “propriedade” estatal. Algo de muito mais profundo se deve passar aqui. Este Estado já não será um Estado (ou governo) no sentido clássico e a apropriação não tomará a forma (tipicamente burguesa) da propriedade. Os padrões de apropriação mudarão de conteúdo e não apenas de sujeito. Uma feroz batalha deve então travar-se para transformar constantemente as relações de produção (e, consequentemente, toda esta arquitectura institucional) conduzindo-as na direcção do comunismo. De outro modo estaremos seguindo directamente a via revisionista. Sei que concordas com isto. Sucede apenas que não dispomos ainda de um vocabulário político que nos livre destes equívocos.
Não tenho tanta certeza de que concordes com o que vou dizer de seguida. Penso que Lenine fez um fabuloso trabalho de regeneração da teoria marxista do Estado. Mas na esfera económica, penso que ficou ainda prisioneiro da visão evolucionista, típica da II Internacional. Ele tendia a ver no capitalismo monopolista de Estado o imediato limiar do socialismo. Todas as coisas estavam já no seu lugar - faltava apenas o poder operário e a expropriação. Penso que esta visão é errada e foi responsável por muitas das dificuldades com que ele se enfrentou mais tarde, quando confrontado com as tarefas práticas de assegurar o contrôlo dos trabalhadores sobre a produção. A socialização da economia (produção em larga escala, etc.) sob o capitalismo é feita sob uma lógica capitalista e para uso capitalista apenas. Após a tomada do poder, os trabalhadores devem esmagar não apenas o Estado burguês mas também a “empresa” burguesa (o paradigma capitalista da organização produtiva). Sem isso, não poderão transformar as relações de produção e, inevitavelmente, o seu poder político será corrompido e desvanecer-se-à como um castelo de areia.
É claro que, para levar a cabo com sucesso a revolucionarização das relações de produção, devem as forças produtivas estar já para isso suficientemente maduras e, por assim dizer, de si próprias clamarem por uma tal transformação como por uma libertação. Creio que isto começa a acontecer hoje. Mas não era certamente esse o caso no tempo de Lenine (e isto não era apenas uma questão do atraso relativo da Rússia). Não havia condições técnicas - e logo, consequentemente, culturais, políticas, etc. - para a consolidação do poder dos trabalhadores. Creio que este foi o factor mais decisivo na derrota da revolução soviética.

Anselmo:
Engels chega à conclusão que “é absurdo falar do princípio da autoridade como sendo absolutamente mau, e do princípio da autonomia como sendo absolutamente bom. Autoridade e autonomia são coisas relativas cujas esferas variam com as várias fases de desenvolvimento da sociedade. Se os autonomistas se limitassem a dizer que a organização social do futuro confinará a autoridade aos limites em que as condições de produção a tornarem inevitável, poderíamos sem dúvida compreender-nos;...” (Friedrich Engels, ‘Sobre a Autoridade’)

Leocádio:
Exactamente. A autoridade (consentida) pode ter o seu lugar em vários e específicos sistemas produtivos. Se tivermos algo como um sistema rodoviário na sociedade do futuro, o seu funcionamento será coordenado por um corpo gerente eleito, o qual disporá de autoridade. Se uma pessoa livremente decide tomar parte nesta “empresa”, deve certamente estar preparada para se ajustar aos seus requisitos técnicos e, quando necessário, receber instruções e cumpri-las. Se não está preparado para isto, é melhor mudar-se para outra actividade, uma vez que esta aqui exige disciplina. Contudo, sempre direi duas coisas: 1) A sociedade no seu todo não será coordenada por intermédio de métodos autoritários, mesmo no sentido lato que lhe estamos a dar aqui; 2) À medida que a produção se vai automatizando cada vez mais, a autoridade tornar-se-á uma excepção e a autonomia será a norma em todo o lado. O trabalho rotineiro, mecânico e desqualificado será feito por artefactos robóticos. As pessoas reais tenderão a fazer apenas trabalho criativo, para o qual a autonomia é indispensável.

Anselmo:
Deixa-me fazer-te outra citação, agora de Marx:
“O trabalho de supervisão e direcção surge necessariamente todas as vezes que o processo imediato de produção se apresenta em processo socialmente combinado e não no trabalho isolado de produtores independentes. Possui uma dupla natureza.
“De um lado, em todos os trabalhos em que muitos indivíduos cooperam, a conexão e a unidade do processo configuram-se necessariamente numa vontade que comanda e nas funções que não concernem aos trabalhadores parciais mas à actividade global da empresa, como é o caso do regente de uma orquestra. É um trabalho produtivo que tem de ser executado em todo sistema combinado de produção.
“De outro lado (...) esse trabalho de direcção é necessário em todos os modos de produção baseados sobre a oposição entre o trabalhador - o produtor imediato - e o proprietário dos meios de produção. Quanto maior essa oposição, tanto mais importante o papel que esse trabalho de supervisão desempenha. Atinge por isso o máximo na escravidão (...)
“Nos escritores da Antiguidade, que tinham diante de si a escravidão, esses dois aspectos do trabalho de superintendência eram teoricamente inseparáveis conforme ocorria na prática e como os vêm hoje os economistas modernos que consideram absolutamente válido o modo capitalista de produção”.
Mas Marx acreditava que estes dois aspectos da supervisão podiam de facto ser separados. Apontando vários exemplos de “fábricas cooperativas”, ele afirmou que: “O carácter antagónico do trabalho de direcção desaparece na fábrica cooperativa, sendo o dirigente pago pelos trabalhadores, em vez de representar o capital perante eles.”
(‘O Capital’, Livro 3, Volume V, Capítulo XIII “Juro e Lucro do Empreendedor”, págs. 441-2 e 446 da edição brasileira. Na verdade, toda a passagem de págs. 441-449 é fascinante.)

Leocádio:
Boa malha, Karl. Se eu compreendo bem, através das sucessivas sociedades de classe ao longo da história, o trabalho de coordenação tem vindo a perder algum do seu carácter mais despótico. Na sociedade sem classes, supervisão e trabalho ordinário deixarão de ser antagónicos. Por fim (conclusão minha), a supervisão desaparecerá pura e simplesmente, quando os avanços na robótica e na automação a tornaram tecnicamente inútil. Ou melhor, o que desaparece é o trabalho humano supervisado. A supervisão (mais o trabalho analítico e de engenharia) continuará sim, mas agora exercer-se-á sobre o trabalho das máquinas.

Anselmo:
Embora especifiques que a ditadura do proletariado terá planeamento social, isso parece ser apenas para regular a competição entre os sectores comunista e capitalista. Aparentemente, o sector comunista da sociedade de transição não obedecerá a planeamento e terá internamente um sistema muito similar ao que tens vindo a descrever para a sociedade do futuro. Além disso, tu aparentemente não consideras o planeamento social na ditadura do proletariado como uma verdadeira e própria medida de transição, mas apenas como uma triste necessidade.
O marxismo tem uma muito diferente teoria da transição, que eu considero bem mais realista. Ela não considera a existência de um sector comunista acabado desde o início. Em vez disso, a classe trabalhadora tem que transformar-se e desenvolver as suas capacidades para dirigir a economia no seu todo através de um período de lutas. Embora possa haver partes da economia que estarão mais directamente sob contrôlo operário e outras que não, nenhuma parte da economia pode ser completamente comunista enquanto houver outras partes importantes dela ainda submetidas ao velho sistema. Tudo isto significa que o marxismo vê a organização como uma parte essencial da sociedade sem classes e, além disso, a única maneira de superar o capitalismo. É por isso que ele reconhece como medidas de transição aquelas que ajudam a construir este novo tipo de organização.

Leocádio:
Esta é, sem dúvida, a tua questão mais difícil e o ponto mais decisivo da nossa discussão. Devo admitir aqui uma certa sensação de ter sido apanhado com os meus deveres de casa por fazer. Continuo a trabalhar nestas matérias mas o progresso é lento e as obras de referência muito poucas. O terreno está ainda quase inteiramente por desbravar.
Vou só deixar aqui algumas observações exploratórias. Espero que compreendas que a clarificação destas questões é não apenas uma tarefa fundamental que temos diante de nós. Ela é, em todos os sentidos, hoje e aqui, a nossa tarefa.
O planeamento na sociedade de transição não será, de modo algum, uma “triste necessidade” mas um instrumento absolutamente indispensável do poder operário. Em primeiro lugar, para equilibrar os níveis de desenvolvimento à escala mundial. Como poderíamos nós sonhar em construir uma sociedade comunista sem nivelar as abissais disparidades regionais em recursos, riqueza acumulada, capacidade técnica e apetrechamento cultural que nos serão legadas pelo capitalismo, produto da sua lei do desenvolvimento desigual e combinado? Do imperialismo, em suma. Como poderíamos nós fazer isso sem planeamento? Um longo trabalho de planeamento e realocação consciente dos recursos disponíveis, certamente a prosseguir por várias gerações. Não há outra maneira de limpar a face da humanidade da vergonha absoluta que constitui o legado deste sistema. De drenar este pantanal obsceno e celerado em que se vai transformando a “economia-mundo” capitalista.
Por outro lado, o planeamento social é também um instrumento indispensável na luta pela superação das relações de produção capitalistas. É claro, entendo aqui o planeamento não num sentido tecnocrático mas num sentido profundamente político, como instrumento nas mãos das massas trabalhadoras para o avanço das suas posições no terreiro da luta de classes. Sem planeamento social, neste sentido, não há possibilidade de avançar em direcção ao comunismo. Deves estar lembrado da ênfase que coloquei nos horários de trabalho decrescentes, os quais são obviamente uma medida de planeamento social. E todo o processo de tomada progressiva de contrôlo dos trabalhadores (dos trabalhadores eles próprios, e não apenas a sua vanguarda organizada) sobre as esfera social, económica, política e cultural se desenrolará, sem dúvida, sob planeamento. Por último, será sob rigoroso planeamento social que o Estado proletário começará a definhar e o poder será gradualmente devolvido à livre iniciativa das massas sob o comunismo. O meu problema não é com o papel que o planeamento desempenhará na sociedade de transição, mas sim com uma concepção de planeamento em que este não se empenha na transformação da sociedade sendo antes, de facto (como na defunta União Soviética), um instrumento de estagnação e consolidação de privilégios de classe.
Posto isto, uma palavra deve também ser dita sobre os limites do planeamento. O optimismo racionalista do planeamento social total já fez a sua época. À medida que o volume e complexidade da informação necessária para regular uma sociedade crescem constantemente, vai-se tornando cada vez mais patente a inanidade de qualquer tentativa de o fazer exaustivamente por métodos centralistas. Já o é hoje, a um nível nacional. Muito mais o será no futuro, enquanto a população cresce, a produtividade e sofisticação tecnológica explodem e as formações sociais nacionais se fundem numa única comunidade global. Nenhuma mente singular (ou conjunto articulado de mentes dispostas hierarquicamente) será capaz de dominar por completo este processo social em constante aceleramento e complexificação. É verdade que eu sustenho que o comunismo deve ser construído desde os inícios da sociedade revolucionária, sendo esta uma falha de todas as experiências socialistas deste século. Nacionalizações e contrôlo operário devem ser medidas políticas instrumentais guiadas pelo objectivo central de transformar as relações de produção no sentido do comunismo. Por si próprias e privadas deste enquadramento não nos conduzirão a lado algum. Todas as medidas que vão no sentido do desenvolvimento da capacidade da classe trabalhadora controlar a produção no seu todo (seja ela comunista ou mercantil) são certamente medidas transicionais, no sentido em que eu emprego a expressão. A construção do comunismo será feita pela emergência de um forte sector comunista na economia e (na verdade, principalmente) pelo desenvolvimento e aprofundamento dos processos democráticos de contrôlo pelos trabalhadores do outro sector ainda submetido às relações mercantis herdadas do capitalismo. Estes dois sectores não se limitam a seguir caminhos separados e paralelos, um lutando contra o outro. Eles colaboram na tarefa de satisfazer todas as necessidades humanas e, sob o contrôlo da ditadura do proletariado, fundir-se-ão mais tarde na sociedade comunista plena. Para isso ser possível, terá de haver uma constante intervenção no sector mercantil, de modo a reforçar nele o poder e a autonomia dos trabalhadores. Logo, o grosso dos esforços de transformação das relações de produção será dirigido a este sector, que será também aquele onde se travarão quase todos os confrontos de classes neste período de intensas lutas e decisões cruciais.
É claro que o sector comunista não estará sujeito ao planeamento no sentido em que não estará sujeito a ordens imperativas de alocação de recursos no seu seio. Isso seria totalmente contrário aos seus fundamentos. No entanto, os seus produtos estarão sujeitos a contabilidade e serão levados em conta no planeamento global da sociedade de transição. Se, por exemplo, tivermos programação informática no sector comunista suficiente para o abastecimento de toda a sociedade, não se farão investimentos sociais neste campo. Por outro lado, à medida que eles aí se forem revelando supérfluos, a autoridade planeadora libertará recursos do sector mercantil para o sector comunista, incentivando o desenvolvimento deste último. Neste sentido lato, poderemos sempre dizer que o contrôlo operário, exercido pelos órgãos competentes da ditadura do proletariado, se estende de facto genericamente ao conjunto de toda a produção social, sem prejuízo da autonomia própria do sector comunista.
Devo insistir, por último, em realçar o facto de que o sector comunista não será uma “parte” da sociedade, no sentido físico ou geográfico. Na sociedade de transição todos devem trabalhar por um salário numa unidade de produção, seja ela apropriada pela sociedade ou (residualmente) por particulares. Logo, toda a gente estará sujeita ao planeamento democrático. O “sector” comunista é o que todos estes trabalhadores produzirão e distribuirão livremente - totalmente fora das relações mercantis ainda dominantes, lei do valor, etc. - no seu tempo livre. Não há uma separação física, no seio da sociedade de transição, entre um espaço com classes e outro sem classes. Essa separação passa pelo interior da consciência do trabalhador e está ligada à maneira como ele vai gerindo (sob a direcção genérica dos órgãos próprios da democracia operária) o seu tempo de vida e actividade. O comunismo é pois esta libertação progressiva do tempo do trabalhador em relação a todo o tipo de constrangimentos, económicos ou políticos.

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Publicado na revista 'Política Operária', nºs 69 e 70, de Março-Abril e Maio-Junho de 1999.

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