O Estranho caso da morte de Karl Marx



A humanidade s� se p�e a si pr�pria quest�es que est� j� em condi��es de resolver. As respostas ser�o certas ou erradas, consoante "resultem" na pr�tica, ou seja, conforme ajudem ou n�o ao desenvolvimento das pr�ticas sociais no �mbito das quais surgiu a quest�o. Na hist�ria do pensamento, h� naturalmente vultos que fazem a sua �poca e decaem depois naturalmente, ou porque as respostas que deram deixaram de ter validade ou porque a sua pr�pria problem�tica foi hist�ricamente ultrapassada. Estou a pensar em Arist�teles, em Euclides, em Ptolomeu, em Parac�lsio, em Galileu, em Newton, em Darwin, para citar apenas alguns dos maiores e dos mais provectos. Todos eles rasgaram importantes fronteiras para o conhecimento. Alguns inauguraram novos continentes cient�ficos ou estabeleceram, no seio destes, m�todos e problem�ticas ainda hoje tidos por prof�quos dentro de certos limites. Com o passar dos s�culos, contudo, as suas obras ruir�o todas, tornando-se apenas objecto de curiosidade para o historiador ou arque�logo das ideias. Nestes escombros sombrios se ver� sempre a mesma am�lgama incaracter�stica de s�nteses e intui��es brilhantes com ingenuidades, preconceitos e supersti��es intoler�veis. A sua unidade perde-se, pois perdido est� o particular universo intelectual em que essa obra respirava. Naqueles pontos mesmo em que ela abriu novos caminhos ainda hoje transit�veis, estes ter-se-�o de tal modo alargado e complexificado que j� mal se reconhecer�o na escarposa vereda de outrora, singela na sua heroicidade pioneira.

O pensador e revolucion�rio Karl Marx � um caso especial. Tamb�m ele descobriu e franqueou um novo campo para o conhecimento: o materialismo hist�rico. Esta ci�ncia diz-nos, basicamente, que: 1) � a produ��o social da exist�ncia das sociedades humanas que comanda todas as suas outras manifesta��es, incluindo por fim as mais requintadamente espirituais; 2) desde que as sociedades humanas produzem um excedente econ�mico, este � apropriado por uma classe exploradora; 3) as formas por que se manifesta essa apropria��o, os mecanismos da explora��o e as pr�prias classes em confronto, v�o-se sucedendo historicamente; 4) os meios de produ��o que uma sociedade usa s�o o factor decisivo no estabelecimento de determinadas rela��es de produ��o; 5) com a transforma��o dos meios de produ��o, d�-se um impulso para a muta��o nas rela��es de produ��o; 6) a transforma��o hist�rica das sociedades � concretamente operada pela luta de classes, 7) com o modo de produ��o capitalista nesceu uma classe - o proletariado - que tem por miss�o hist�rica varrer para sempre da hist�ria da humanidade as sociedades de classes. Este programa � imenso, ainda mal aflorado sequer, quanto mais esgotado. Se o compararmos com o darwinismo actual - onde mal se reconhece j� o tosco esbo�o do seu fundador - , concluiremos que o que impressiona no materialismo hist�rico � a impon�ncia praticamente inalterada dos seus monumentais fundamentos. O marxismo � ainda uma ci�ncia econ�mica insuperada e incontorn�vel (a �nica verdadeiramente credora de estatuto cient�fico) e uma integral concep��o do mundo materialista e dial�ctica, hoje em dia cada vez mais prestigiada � medida que prossegue a revolu��o nas ci�ncias naturais - mormente a astro-f�sica e a biologia - desenhando-se claramente um continuum epistemol�gico (n�o reducionista) entre aquelas e as ci�ncias da sociedade. Para simplificar, ocupar-nos-emos aqui apenas brevemente do �continente Hist�ria�.

O materialismo hist�rico, entendido como hip�tese cient�fica em sentido cl�ssico, � indemonstr�vel. Simplesmente n�o conseguiremos nunca objectividade e distanciamento suficientes para provar (ou refutar) a efic�cia explicativa do seu n�cleo te�rico. Por isso o materialismo hist�rico n�o � uma ci�ncia como as outras, relativamente neutras e consensuais, dentro da sua �poca hist�rica pr�pria naturalmente. � antes uma ci�ncia de tipo novo: dial�ctica, conflitual. A prova do materialismo hist�rico faz-se hoje pela luta do proletariado e a sua refuta��o pela contra-ofensiva da burguesia. Por outro lado, � ela pr�pria um instrumento de interven��o na realidade hist�rica (sua mat�ria-prima) no sentido da sua transforma��o. Assim se pode consider�-la tamb�m uma ci�ncia que, de certo modo, luta contra si pr�pria. Ao intervir na realidade hist�rica presente vai-se pondo a si pr�pria problemas novos, deslocando os par�metros de que partira (1). Por esta via, ou por outra, chegar� sem d�vida a altura de se p�r a si pr�pria o problema da sua supera��o por uma s�ntese superior e mais ampla. O materialismo hist�rico estar� vivo apenas enquanto for �til � luta dos explorados, emprestando-lhe vig�r, coer�ncia e efic�cia. Afinal, tamb�m a teoria qu�ntica em F�sica � tida por boa porque e enquanto resulta. Ela p�e a funcionar as televis�es e os computadores pessoais.

� �bvio que um pensamento deste tipo ter� certamente legi�es de refutadores. Afinal, a classe dominante � sua inimiga cong�nita e � ela que domina o Estado e todos os seus aparelhos de cria��o e difus�o ideol�gica. � ela que distribui favores e gl�ria medi�tica, fornece prebendas e lisonjas, constr�i carreiras e reputa��es mundanas. N�o admira por isso que assistamos com frequ�ncia � morte de Marx. Agora em directo: queda do muro de Berlim, etc. Morte de Marx, d�cima s�tima reposi��o. E nem assim o espect�culo parece perder em veem�ncia e verosimilhan�a. Aparecem tamb�m sempre uns volunt�rios e espont�neos que decretam ter superado e (ou) desmontado definitivamente os dogmas e sofismas marxistas. Dizem umas necedades em grande pose, d�o umas piruetas em cima da campa improvisada e saem rapidamente pela direita baixa. O p�blico aplaude, mas j� sem grande convic��o. �queles dos nossos amigos porventura mais cr�dulos e impression�veis, deve-se por�m dizer que a farsa j� � antiga. Come�ou ainda o primeiro volume de 'O Capital' estava fresco do prelo, com o tal ceguinho prof. D�hring. Desde ent�o, nunca mais cessou. N�o h� gera��o que n�o tenha ouvido tr�s ou quatro requiem pelo marxismo. � um tique nervoso da burguesia e um fen�meno c�clico de moda intelectual.

Com o profundo retrocesso do movimento oper�rio nos anos oitenta e o descalabro dos regimes da Europa de Leste, estava claro que a sanfona ia tocar outra vez, com redobrada energia. O marxismo foi pura e simplesmente varrido da "cena" intelectual francesa, onde tinha marcado presen�a preponderante durante d�cadas. N�o tanto o marxismo, ali�s, como um certo folclore e pastiche marxisantes. O movimento de rejei��o propagou-se rapidamente � maioria dos pa�ses latinos. No mundo cultural anglo-sax�nico, onde o fen�meno do mundanismo marxista nunca tomou ali�s as mesmas propor��es euf�ricas, mant�m-se praticamente as mesmas bolsas de pensamento marxista s�rio: as correntes ditas neo-estruturalista e do marxismo anal�tico. � claro que, por todos os azimutes, a hegemonia de momento pertence ao liberalismo.

Ora, esta arrog�ncia desmedida do neo-liberalismo (com expoente nas teses lun�ticas de Fukuyama sobre o "fim da Hist�ria") n�o agrada a toda a gente. N�o agrada, naturalmente, a toda a legi�o viva dos acad�micos e profissionais da marxologia, for�ados a uma d�cada inteira de clandestinidade, sil�ncio e humilha��o. N�o agrada, por outro lado, �queles que combateram ombro com ombro o marxismo - nas universidades, nos jornais e revistas, em col�quios e debates, etc. - no tempo em que este era duro de roer: os estruturalistas e p�s-estruturalistas, os te�ricos do desconstrucionismo, os nietzscheanos de esquerda, os p�s-modernistas da primeira hora. Para estes intelectuais "puros", o triunfo do neo-liberalismo � o triunfo do poder e dos seus comiss�rios acad�micos. Repugna-lhes o oportunismo e a venalidade destes sic�rios, a sua vulgaridade e auto-sufici�ncia. A sua insensibilidade ao sublime. Enfim, suspiram por outros tempos em que, apesar de tudo, havia alguma nobreza e aventura no "reino do esp�rito". � neste contexto que se d� o presente movimento de "reabilita��o" de Marx. Foi o livro de Derrida �Spectres de Marx�, um n�mero especial da revista �Magazine Litt�raire�, a constitui��o da sociedade Espaces Marx e, finalmente, a realiza��o do Congresso Marx Internacional, de 27 a 30 de Setembro de 1995, nas universidades de Paris-I e Paris-X (Nanterre), cujas actas foram publicadas pela revista �Actuel Marx� com o concurso das oficial�ssimas Presses Universitaires de France (PUF).

Simpatizante do P.S. franc�s, Derrida � o melhor sucedido de toda uma linhagem de fil�sofos franceses palavrosos, obscuros e herm�ticos. A sua tese principal parece ser a de que n�o h� qualquer suporte referencial real para os diversos discursos do conhecimento. Apenas enunciados sobre outros enunciados. N�o h� pois verdade, apenas jogos de linguagem e interpreta��es mais ou menos felizes ou veros�meis. � uma variante sobre velhos temas idealistas, que tem tido assinal�vel sucesso cr�tico e acad�mico, granjeando ao seu autor um invej�vel estatuto de fil�sofo globe-trotter mundialmente aclamado. Com 'Spectres de Marx', uma s�rie de palestras ambulantes sa�da em livro no ano passado, � lavrado um louvor ao arrojo e viol�ncia te�rica, ao "messianismo" do autor de 'O Capital'. Da leitura que fiz da vers�o inglesa (2), n�o me pareceu que se pudesse retirar qualquer proposta, al�m de uma vaga e obscura "nova internacional" de todos os inconformistas e deserdados da nova ordem mundial. De resto, h� apenas a registar uma homenagem � grandeza de Marx, o que s� faz prova de lucidez e sentido das propor��es. Mas a sua incompreens�o profunda do marxismo vem servida no seu habitual estilo turvo e arrevezado.

Haver� ainda amigos nossos que se sintam reconfortados por ver Marx homenageado por "um grande fil�sofo contempor�neo"? Por mim, sinto-me bem mais assegurado por ver os trabalhadores da Renault ou os estivadores de Liverpool em luta, rasgando novas vias � solidariedade prolet�ria internacional neste final de mil�nio.

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NOTAS:

(1) Esta est� longe de ser uma quest�o ret�rica. Uma grande parte dos desafios ao renovamento do marxismo relacionam-se com a transforma��es sociais ocorridas neste s�culo, em grande parte com o concurso decisivo da luta emancipadora do proletariado.

(2) New Left Review, n� 205, May-June 1994.


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