Debate com Claude Bitot


O comunismo resgatado
Coment�rio a um livro de Claude Bitot (*)

Quando Marx e Engels encaravam no seu tempo a possibilidade da revolu��o prolet�ria, faziam-no nao porque achassem que o capitalismo houvesse j� esgotado todas as possibilidades de desenvolvimento. O que eles pensavam � que, por um superior esfor�o organizativo e consciencializador, dando mostras de aud�cia e iniciativa revolucion�ria, o movimento oper�rio poderia abreviar o reino do capital, for�ando a sua sa�da de cena antecipada.

A partir por�m dos in�cios do s�c. XX, e particularmente com a contagem decrescente para o Armaged�o belicista, comecou a predominar entre os melhores pensadores marxistas (Lenine, Bukharine, Trotsky, Rosa Luxemburgo, etc.) a ideia de que o capitalismo estava, pelo pr�prio desenvolvimento natural das suas contradi��es internas, na sua fase terminal e agonizante. Come�aram a surgir as vis�es "catastrofistas". Comecou a imperar a ideia de que esta era a hora aprazada para a revolu��o prolet�ria, sob pena de sobrevir uma decad�ncia econ�mica geral (1) e o apodrecimento da situa��o social. "Socialismo ou barb�rie".

Quase noventa anos passados sobre estas vozes antediluvianas, for�oso � reconhecer que o capitalismo sobreviveu afinal bastante bem �s guerras e deu mesmo provas de uma grande vitalidade nos "trinta gloriosos" anos que se seguiram a 1945. As rela��es de produ��o capitalistas foram finalmente estendidas a todos os sectores econ�micos e a todo o globo. A produtividade do trabalho cresceu exponencialmente. O pacto social fordista e social-democrata funcionou nos pa�ses avan�ados, pacificando (e institucionalizando) notavelmente os antagonismos de classe no seu seio. Tudo �xitos inegaveis da ordem burguesa que, por muito tempo (alguns pensar�o: definitivamente) arredaram a revolu��o social da ordem do dia. Nada mau, para um moribundo.

Quando ruiu fragorosamente o capitalismo de Estado que, durante setenta anos, pensou poder ombrear e finalmente superar o seu cong�nere demoliberal, o momento foi mesmo de alguma euforia para os ide�logos burgueses. E todavia, desde meados da d�cada de 70, o sistema est� em crise profunda. J� l� iremos. Antes disso, temos que poder explicar esta estranha vitalidade de que o sistema deu de facto provas durante a melhor parte deste s�culo. Este � um problema fulcral para o marxismo, mesmo que para isso tenha que amputar ou reavaliar substancialmente uma boa parte da sua tradi��o mais rom�ntica e apaixonada. � isso mesmo que um pensamento que se pretende vivo e actuante tem o dever de fazer.

Claude Bitot prop�e neste livro uma tese extremamente ousada, embora a meu ver ainda insegura e tacteante. Para ele, o per�odo de guerra (1914-45) correspondeu naturalmente n�o � agonia do sistema capitalista, mas a uma sua crise de crescimento. A seu ver, a(s) guerra(s) e o fascismo foram provocados pela reac��o de camadas sociais retr�gradas (aristocracia, propriet�rios, funcion�rios, pequena burguesia) ao dom�nio pleno e efectivo da burguesia. S� com o triunfo das pot�ncias atl�nticas (lideradas pelos EUA, a mais avan�ada das na��es capitalistas) foram por completo derrotadas estas �sobreviv�ncias do antigo regime�, para parafrasear o historiador A. Meyer, no qual Bitot se inspirou. Esta vit�ria marcou ainda a passagem do dominio �formal� ao dominio �real� do capital, ou seja, basicamente, a explora��o deixou de se basear na extrac��o da mais-valia absoluta, passando a basear-se (atrav�s do embaratecimento dos meios de subsist�ncia, proporcionado pela penetra��o do capitalismo na agricultura) na extrac��o de mais-valia relativa.

Os problemas que esta tese levanta s�o quase tantos como os que resolve, ou tenta resolver. A sua interpreta��o das guerras mundiais desvaloriza sobremaneira a teoria do imperialismo e o papel das rivalidades entre as pot�ncias. Nem fica afinal muito claro de que modo � que as guerras participaram na resolu��o deste ajuste de contas final entre �antigo regime� e capitalismo. Estas contradi��es (que existiam sem d�vida alguma na �poca) atravessavam transversalmente todas as na��es (pelo menos as europeias) que participaram nos conflitos. Bitot admite mesmo que as burguesias industriais participaram alegre e convictamente, ao lado dos seus estados-maiores reaccion�rios, na matan�a e no del�rio chauvinista. Por outro lado, a sua interpreta��o do fascismo vai contra tudo o que dele j� foi dito ate hoje. Fica ademais sugerida a ideia (extremamente perigosa) de que fascismo e guerra n�o s�o j� armas pr�prias da burguesia moderna, mas instrumentos perimidos de combates travados em tempos nas suas linhas recuadas.

N�o sendo as respostas ainda plenamente convincentes, o m�rito fica no entanto de se ter apontado devidamente o problema. Se a p�pria ordem burguesa s� atingiu assim a sua plena maturidade ap�s as guerras mundiais da primeira metade do s�c. XX, n�o temos sen�o que concluir que, at� ent�o, foram precoces e votadas ao fracasso todas as revoltas prolet�rias. 1848,1871, 1917-23, s�o movimenta��es desesperadas e sem sa�da do ponto de vista da luta comunista. � revolu��o russa de 1917 estaria destinado o desenlace mais cruel: n�o a derrota �s m�os dos seus inimigos, mas o apodrecimento e a degenera��o. Entretanto, a organiza��o crescente da classe oper�ria que se opera a partir do �ltimo quartel do s�culo passado nunca foi verdadeiramente animada pela vontade de derrubar o capitalismo, mas antes de o reformar progressivamente. Ela abre tamb�m o caminho do dom�nio �formal� para o dom�nio �real� do capital. Direitos associativos, sufr�gio universal, Estado-provid�ncia s�o etapas desta matura��o da ordem capitalista, que atingiria o seu apogeu no final dos anos sessenta do s�c. XX.

Se Bitot se mostra ir�nico perante as an�lises e reivindica��es de imin�ncia da revolu��o comunista feitas sucessivamente de h� s�culo e meio para c�, n�o hesita por�m um instante em fazer ele pr�prio, e peremptoriamente, o mesm�ssimo diagn�stico. A seu ver, o capitalismo encontra-se desde meados da d�cada de setenta no seu fim de ciclo hist�rico (2). A crescente composi��o org�nica do capital desemboca, como previsto por Karl Marx, na queda tendencial da taxa de lucro. As contratend�ncias a esta queda puderam ser mobilizadas at� aqui com sucesso, a ponto de esta lei ter sido longamente escarnecida pelos economistas burgueses e abandonada envergonhadamente por muitos �marxistas�. E no entanto a� est� a longa crise desde 1975 a lembrar-nos que s� o trabalho vivo cria mais-valia. A diminui��o da participa��o do capital vari�vel no conjunto total do capital faz assim press�o para a queda da taxa de lucro.

A burguesia tenta naturalmente reagir a essa quebra da rentabilidade do capital. � a hora do neoliberalismo, do desmantelamento do Estado-provid�ncia, do ataque aos sal�rios reais. Mas se a burguesia consegue assim algum al�vio para a sua taxa de lucro, pela mesma causa provoca o retraimento da procura solv�vel para os seus produtos. Corre assim o risco de criar crises cada vez mais agudas de sobreprodu��o, enquanto os padr�es de vida se degradam e h� uma �regress�o social" generalizada. Em feroz concorr�ncia uns contra os outros, facilmente os capitalistas caem ent�o na tenta��o de licenciar mais trabalhadores, substituindo-os por capital constante. Com o resultado de baixar ainda mais a taxa de lucro... Seguindo-se naturalmente mais ataques aos rendimentos do trabalho.

Para Bitot, � nesta sequ�ncia que emergir� com toda a naturalidade uma insurrei��o prolet�ria vitoriosa. Primeiro (estamos nessa fase), os trabalhadores envolver-se-�o em lutas defensivas e conservadoras de privil�gios particulares. Perdidos estes, a massa prolet�ria ser� progressivamente homogeneizada e nivelada por baixo. Nessa situa��o, a sua consci�ncia de classe e combatividade emergir�o poderosamente, sendo a luta dirigida agora contra o sistema e pela tomada do poder. � bem achado, e um curso plaus�vel de acontecimentos. Mas n�o vejo garantias suficientes de que tudo se v� passar deste modo. O materialismo hist�rico ainda n�o � uma ci�ncia exacta. Enfim, ningu�m poder� acusar Bitot de n�o ter fixado claramente qual a prova pr�tica das suas teses, mesmo correndo o risco de vir a ser objecto dos sarcasmos de uma nova gera��o de marxistas.

Uma das asser��es mais curiosas de Bitot � a de que, quanto mais madura estiver a situa��o econ�mica para o socialismo, mais o seu triunfo pode ser obtido por meios relativamente pac�ficos. O partido � entendido em acep��o lata, que pode dispensar a sua organiza��o formal � imagem dos outros partidos pol�ticos (burgueses). A ditadura do proletariado dissolvera os �rg�os do Estado burgu�s e subtitui-los-� por �rg�os representativos livremente eleitos e revog�veis. Exercer� naturalmente a repress�o sobre o revanchismo da burguesia mas sendo a situa��o pol�tica favor�vel, a �ditadura� dever� normalmente consentir ampl�ssimas liberdades p�blicas. As na��es avan�adas assistir�o gratuitamente as mais pobres, at� as fazer atingir o seu pr�prio n�vel de desenvolvimento e instru��o. Ser� posto em pr�tica um programa pol�tico imediato constante de: 1) planeamento concertado entre todas as associa��es livres do proletariado; 2) redu��o do tempo de trabalho; 3) um trabalho mais rico e criativo; 4) uma retribui��o igualit�ria entre todos os tipos de trabalho. � este socialismo inferior que abrir� ent�o o caminho ao advento do socialismo superior ou comunismo.

Estamos pois em presen�a de um projecto ambicioso e de uma obra importante que incondicionalmente saudamos. Mesmo nas suas imperfei��es, h� aqui em curso um trabalho rigoroso de recria��o e vivifica��o dos conceitos fundamentais do marxismo. Talvez que, na incontorn�vel dial�ctica entre o voluntarismo e o determinismo econ�mico estrito, o autor se tenha deslocado um pouco demais na direc��o deste �ltimo. Entretanto, a irrever�ncia perante certos dogmas estabelecidos e a sua sede permanente de risco e cometimento tornam este livro uma leitura agrad�vel e de grande proveito para quem hoje se obstina insensatamente em compreender e em lutar.

�ngelo Novo
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Artigo publicado na revista 'Pol�tica Oper�ria' n� 54, Mar�o-Abril de 1996.

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NOTAS:

(*)'Le Communisme n�a pas encore commenc�', ed. Spartacus, Paris 1995, 275 pgs. 130 FF. Pedidos a Les Amis de Spartacus - 8, impasse Crozatier 75012 Paris.

(1) Este conceito de decad�ncia � ainda central nas an�lises dos herdeiros das esquerdas comunistas. Veja-se a recens�o muito cr�tica deste livro, assinada por Adele, em Perspective Internationaliste n� 29, Inverno 1995-96.

(2) Sobre esta quest�o, um resumo sucinto e elegante pode-se achar em Claude Bitot, �Inqu�rito Ao Capitalismo Dito Triunfante�, Dinossauro, Lisboa 1966, tradu��o de Francisco Martins Rodrigues.

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Debate sobre o livro �Le communisme n�a pas encore commenc� de Claude Bitot

Paris, 13 de Maio de 1996
Caro camarada,

(...)
Na sua not�cia sobre o meu livro �Le Communisme n�a pas encore commenc� voc� considera que eu �desvalorizo muito a teoria do imperialismo�. Com efeito, penso que � necess�rio remet�-la ao seu justo lugar e que ela se tornou obsoleta para nos dar conta do curso hist�rico do capitalismo moderno, tal como ele se desenrola desde 1945. Marx, no seu estudo do capitalismo, nunca construiu uma �teoria do imperialismo, est�dio supremo do capitalismo�. Foram os marxistas do princ�pio do s�culo (Luxemburgo, Lenine, Hilferding, Boukharine) que o fizeram. Esta teoria tornou-se de seguida uma esp�cie de vulgata marxista e foi repetida at� � saciedade. Vou-me pois esfor�ar por trazer algumas precis�es sobre o assunto.

Eu n�o nego a exist�ncia do fen�meno imperialista, mas como o recordo no meu livro, ele n�o � pr�prio do capitalismo. O imperialismo no seu sentido estrito significa a conquista de territ�rios e a sujei��o dos povos que a� habitam, isto por interm�dio da for�a armada. Houve assim um imperialismo grego e romano no mundo antigo, assim como um imperialismo �rabe e crist�o durante o feudalismo. � verdade que o capitalismo, atrav�s do colonialismo, vai por sua vez talhar-se um imp�rio. Mas este imperialismo, longe de ser o seu �est�dio supremo�, vai antes corresponder � sua fase de acumula��o primitiva e de arranque industrial: apossamento, a partir do s�culo XVI, sobre vastos territ�rios, permitindo-lhe, pela pilhagem, adquirir mat�rias primas, produtos coloniais e tamb�m uma m�o-de-obra ind�gena sobre-explorada. Um tal imperialismo atingiu o seu apogeu no fim do s�culo XIX. De seguida ele entra em decl�nio e, em 1945, inicia-se um processo de descoloniza��o que lhe p�e fim. � verdade que alguns terceiro-mundistas continuam a falar de �neo-colonialismo�, mas isso n�o corresponde j� a qualquer realidade tang�vel. Eis quanto aos factos. Examinemos agora a raz�o desta mudan�a.

Se o imperialismo foi, num primeiro tempo, um factor de desenvolvimento do capitalismo, tornou-se de seguida um trav�o a esse desenvolvimento. Com efeito, constatamos empiricamente que todos os pa�ses que se talharam imp�rios coloniais (Gr�-Bretanha, Fran�a, B�lgica, Holanda, Portugal) foram suplantados economicamente a partir dos come�os do s�culo XX, por pa�ses (E.U.A. e Alemanha desde logo, o Jap�o em seguida) que tinham muito poucas col�nias. A causa � que os pa�ses colonisadores, devido �s suas conquistas que lhes proporcionavam �rendas de situa��o�, m�o-de-obra barata e mercados protegidos, estavam pouco inclinados a investir e modernizar os seus equipamentos industriais. Os outros pa�ses capitalistas, esses, foram for�ados a industrializarem-se fortemente a fim de baixar os seus custos de produ��o e assim se manterem competitivos no mercado mundial. Por este facto, o dinamismo industrial destes �ltimos iria acabar por levar a melhor sobre os �Estados rendeiros� colonialistas. A partir da�, a descoloniza��o torna-se uma necessidade para os velhos pa�ses imperialistas, a fim de atalhar o seu atraso industrial. Assim, na Fran�a, � no momento em que ela perde as suas col�nias que come�a, sob o cajado do Estado gaullista, a moderniza��o do pa�s e das suas infra-estruturas. O mesmo se passou em Portugal, algum tempo depois. Liquidadas as suas col�nias, o pa�s enceta a sua marcha para a modernidade capitalista, aderindo mesmo � C.E.. V�-se pois que, chegado a um est�dio superior do seu desenvolvimento, o capitalismo desembara�a-se da sua faceta imperialista que n�o � j� mais que um arca�smo tanto mais dif�cil de conservar quanto leva � revolta os povos submetidos. Agora, ele sente-se suficientemente poderoso para funcionar exclusivamente com base nas leis econ�micas que lhe s�o pr�prias: concorr�ncia, competitividade, rentabilidade, tudo num mercado mundial sem limites, tendo por �nico crit�rio a troca mercantil de equivalentes, excluindo por conseguinte a pilhagem. � este o verdadeiro �est�dio supremo� do capitalismo. A �mundializa��o� de que se fala tanto hoje em dia n�o � mais do que a manifesta��o desta lei do mercado que governa agora o planeta em lugar do velho imperialismo com os seus mercados protegidos, os seus proteccionismos, as suas zonas de influ�ncia. Quanto � tend�ncia aos monop�lios, � fus�o do capital banc�rio e industrial que desemboca no capital financeiro, igualmente caracter�sticas do est�dio imperialista, ela tinha j� sido analisada por Marx com a lei da concentra��o do capital, lei que se verifica bem mais nitidamente hoje - com as firmas multinacionais e transnacionais - do que no tempo de Lenine.

Em resumo, a �teoria do imperialismo� que pretendia mais ou menos �completar� �O Capital� de Marx n�o aguentou o caminho. � guisa de conclus�o, contentar-me-ia em observar que uma tal teoria teve por principal efeito ocultar a an�lise econ�mica de Marx sobre a evolu��o do capitalismo, an�lise esta centrada no ciclo do valor e seu final catastr�fico: baixa da taxa de lucro que, de simplesmente tendencial, acaba por se tornar absoluta, ao ponto de trazer consigo crises que provocar�o o desabamento do modo de produ��o capitalista.

O meu comentador, �ngelo Novo, acha que proponho no meu livro uma �tese extremamente ousada�, embora, do seu ponto de vista, �ainda incerta e tacteante�, a saber, que o per�odo de 1914-45, em lugar de corresponder a uma �agonia do capitalismo� n�o teria sido sen�o uma �crise de crescimento� do mesmo. N�o h� a�, em verdade, nada de ousado. A partir do momento em que o capitalismo supera as suas crises, � preciso consider�-las todas como simples interrup��es passageiras da sua expans�o. O facto de que, ap�s 1945, ele tenha podido prosseguir o seu curso mostra � evid�ncia que ele n�o estava agonizante em 1914-45, mas que apenas encontrou alguns entraves ao seu desenvolvimento, dos quais acabou por se desembarassar. O que desorienta manifestamente �ngelo Novo � que, em lugar de ver neste per�odo de crise duas �guerras imperialistas� eu a� veja uma nova guerra de 30 anos, n�o para �uma nova partilha do mundo� como � repetido superficialmente, mas para assentar solidamente a domina��o capitalista moderna, ainda contestada, bem mais � direita do que � esquerda, em particular por toda uma poderosa corrente reaccion�ria de que o fascismo foi a express�o mais acabada. Assim, sejamos claros: a fase da �guerra de 30 anos� corresponde a uma guerra capitalista, a uma guerra civil burguesa, que op�e as for�as do capitalismo da �domina��o real�, ou se se prefere do capitalismo moderno, �s da domina��o ainda �formal� que haviam prevalecido at� a�, for�as estas que se haviam acomodado ao antigo capitalismo mas que se apercebiam claramente amea�adas de esmagamento pelo novo capitalismo. Esta �tese�, para retomar a express�o de �ngelo Novo, longe de levantar mais problemas do que os que �tenta resolver�, como este �ltimo pretende, explica porque o capitalismo, ap�s 1945, conheceu, durante os seus �30 gloriosos�, o seu mais brilhante per�odo, viveu em certa medida a sua idade de ouro: uma vez desembara�ado dos entraves que o amarravam ainda, estava agora em condi��es de chegar, sob todos os planos, como o explico no final do cap�tulo VII do meu livro (a partir da p�gina 147), ao seu mais completo desenvolvimento. Assim, e desde logo, � totalmente desprovido de sentido p�r a quest�o de saber se hoje poder� ressurgir o fascismo. Este corresponde a uma fase hist�rica bem particular do desenvolvimento capitalista, hoje ultrapassada; n�o � mais que um espantalho agitado por quem n�o compreende nada do movimento da Hist�ria.

Hoje o problema do capitalismo � outro: os entraves ao seu desenvolvimento est�o no seu pr�prio seio; ele encontra os seus �limites na sua pr�pria natureza que, a um certo n�vel da sua evolu��o, revelam que � ele pr�prio o entrave maior a esta tend�ncia, e o impelem portanto � sua pr�pria aboli��o� (Marx, Grundrisse). � por isso que falo de entrada do capitalismo no seu �fim de ciclo�. Mas � a� que �ngelo Novo me reprova, aproveitando para me dizer que �se Bitot se mostra ir�nico face �s an�lises e reivindica��es de imin�ncia da revolu��o comunista, feitas sucessivamente desde h� 150 anos, n�o hesita por�m um instante em fazer ele mesmo, e peremptoriamente, o mesmo diagn�stico�. � evidentemente, e de todo, inexacto. N�o anuncio de forma alguma a �imin�ncia da revolu��o�, nem digo que com este �fim de ciclo� o capitalismo est� j� agonizante e em desmoronamento. Mas vejo bem onde se situa a verdadeira diverg�ncia entre �ngelo Novo e eu: ela n�o est� na aprecia��o da situa��o econ�mica actual do capitalismo, ainda bastante amb�gua para n�o dar lugar a interpreta��es diversas, mas sim no facto de que eu - diferentemente dele, que a� � muito hesitante - considero a evolu��o actual do capitalismo como devendo desembocar em crises e em lutas de classes que este n�o poder� enfim evitar e que provocar�o a sua queda final. Disso a�, �ngelo Novo n�o est� seguro de todo: �n�o vejo�, escreve ele, �garantias suficientes de que tudo se passar� desta forma. O materialismo hist�rico n�o � uma ci�ncia exacta�. E no final do seu artigo, ele censura-me o meu �determinismo excessivo�. Mais vale ent�o censur�-lo a Marx, que acabo de citar acima, o qual fala de limites do capital que o �impelem � sua pr�pria aboli��o�. Dito isto, imp�e-se uma certa precis�o a prop�sito da teoria de Marx, da qual �ngelo Novo n�o parece ter tomado consci�ncia em toda a sua extens�o.

Que diz, com efeito, esta teoria? Substancialmente, que as contradi��es objectivas do capitalismo acabar�o por provocar lutas de classes revolucion�rias por parte do proletariado, as quais acartar�o a queda do capitalismo desembocando na ditadura do proletariado, ela pr�pria simples fase transit�ria para uma sociedade sem classes (carta de Marx, de 5 de Mar�o de 1852, a Joseph Weydemeyer). Se isto � falso ou, enfim, insuficientemente exacto para ser cred�vel, ent�o s� nos resta irmos dormir! S� um milagre poderia mudar favoravelmente o rumo das coisas. Pessoalmente, n�o retive uma hip�tese dessas, como dizia Laplace a Napole�o!

A teoria de Marx assenta sobre um certo n�mero de condi��es que devem estar reunidas para dar lugar a um desenlace revolucion�rio historicamente positivo. Se tal n�o for o caso, poder� haver explos�es revolucion�rias, movimentos sociais de grande envergadura, mas, como a Hist�ria abundantemente demonstrou, elas n�o atingir�o o seu objectivo, por falta de uma suficiente matura��o hist�rica. Por condi��es, � preciso entender tanto as objectivas como as subjectivas, na medida em que umas n�o se atingem sem as outras. Elas n�o s�o separ�veis. Dizer que as condi��es objectivas est�o reunidas mas que faltam as condi��es subjectivas n�o faz qualquer sentido de um ponto de vista materialista: se a situa��o objectiva � favor�vel, as for�as morais, de vontade e de consci�ncia, n�o faltar�o ao encontro. Nada � mais falso do que interpretar o determinismo hist�rico revolucion�rio de Marx como se ele significasse que bastaria descansarmos sobre for�as exteriores ao homem para que a Hist�ria se cumprisse. � justamente porque um tal determinismo opera que milh�es de energias, at� aqui apagadas, se despertam, entram em ac��o, s�o capazes de iniciativa e de clarivid�ncia, projectadas, empurradas para diante pela situa��o hist�rica. Mas �ngelo Novo permanece c�ptico. Ele procura reintroduzir uma certa dose de idealismo na composi��o das for�as que fazem a Hist�ria, vendo nesta uma �incontorn�vel dial�ctica entre o voluntarismo e o determinismo econ�mico estrito�. � um velho debate que atravessou todos os movimentos revolucion�rios do passado, na medida em que estes, tendo-se sempre encontrado perante situa��es imaturas, procuraram compensar esse d�fice por meio de expedientes �ideol�gicos� ou �t�cticos�. Possa o meu simp�tico contraditor compreender que est�o em vias de se completar as condi��es que permitir�o tornar imposs�vel todo o regresso atr�s: hic Rhodus, hic salta!

Claude Bitot

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Vila Nova de Gaia, 3 de Junho de 1996
Caro camarada:

(...)
Sobre a teoria do imperialismo, voc� afirma que ela �se tornou obsoleta para dar conta do curso hist�rico do capitalismo moderno�. Voc� tem evidentemente raz�o (embora esta seja infelizmente uma evid�ncia que ainda est� longe de se ter imposto por completo no campo marxista) quando diz que o imperialismo n�o � nenhum �est�dio supremo� do capitalismo. Pelo contr�rio, ele serviu � sua fase �de acumula��o primitiva e arranque industrial�. Estou de tal modo de acordo que n�o vejo nenhuma solu��o de continuidade entre a expans�o europeia (desde come�os do s�c. XVI) e o imperialismo dito cl�ssico (a partir de 1880). O imperialismo est� a� desde que h� capitalismo que �, como que geneticamente, o primeiro modo de produ��o de �mbito e escopo mundial.

J� n�o estou de todo de acordo quando diz que n�o h� nenhuma especificidade do fen�meno imperialista no capitalismo, em confronto com anteriores experi�ncias imperiais. A meu ver, o capitalismo define-se nuclearmente como um fen�meno pol�tico e econ�mico visando drenar valor desde vastos dom�nios territoriais para um centro acumulador dominante. Isso passa-se, evidentemente, desde os eg�pcios e os sum�rios, em forma��es sociais vivendo sob a domina��o de diversos modos de produ��o pr�-capitalistas (tribut�rio, asi�tico, esclavagista, etc.). Simplesmente, o capitalismo renovou com esta pr�tica, submetendo-a � sua pr�pria l�gica de extrac��o e acumula��o de mais-valia. E certamente que n�o acabou de o fazer. Dizer que, com a descoloniza��o, deixou de haver imperialismo, � realmente um pouco surpreendente da sua parte. Temos a troca desigual, a �d�vida�, o F.M.I., a Banca Mundial, a O.M.C., o Conselho de Seguran�a da O.N.U., o G7. Temos - acentuando-se cada vez mais - uma tutela pol�tica e militar permanente dos centros imperialistas sobre os povos de todo o globo. Isso n�o s�o certamente apenas �as leis econ�micas tal como Marx as analisou�. Em todo o caso, as leis econ�micas (como as outras), se quiserem ser efectivas, n�o poder�o dispensar nunca a espada - ou as �bombas inteligentes�. � evidente que n�o h� nenhum capitalismo puramente �econ�mico�. Isso � uma mitologia ideol�gica, hoje muito na moda � certo, com toda a explos�o euf�rica de neo-liberalismo legitimista dos comentadores burgueses. A �troca mercantil de equivalentes� n�o exclui a pilhagem, ela � a forma contempor�nea da pilhagem imperialista.

A teoria do imperialismo n�o � apenas Lenine (o seu livrinho �, como se sabe, uma obra de circunst�ncia, escassamente original e com um objectivo pol�mico muito preciso) e seus amigos. Houve, j� no p�s-guerra, importantes desenvolvimentos e contributos: Harry Magdoff, a escola da �teoria da depend�ncia�, Samir Amin, Arghiri Emmanuel e muitos outros. Por outro lado, esta problem�tica n�o est� de modo nenhum ancorada e comprometida pela quest�o do �est�dio supremo� e pela an�lise leninista da guerra, como voc� insistentemente pretende. H� tr�s grandes centros acumuladores no capitalismo contempor�neo. Todos os tr�s mant�m rela��es de domina��o e de explora��o no �estrangeiro�. Todos os tr�s rivalizam e se afrontam entre si, na prossecu��o dos seus pr�prios interesses. O Estado (n�o necessariamente sempre o ex�rcito - h� tamb�m a pol�tica econ�mica, industrial, monet�ria, cambial, a �coopera��o�, etc.) desempenha um papel essencial ao servi�o dos interesses estrat�gicos mundiais da sua pr�pria burguesia imperialista e contra os das suas rivais. Se voc� nega tudo isto (h� aqueles que pensam que, com a �mundializa��o do capital�, j� n�o h� centros rivais de acumula��o capitalista) ent�o � verdade, voc� n�o precisa de nenhuma teoria do imperialismo.

J� disse o que pensava quanto ao �est�dio supremo� e ao estertor iminente do capitalismo profetizados no dealber deste s�culo. Quanto � sua interpreta��o da �guerra dos 30 anos� e do fascismo, tenho que dizer-lhe que tamb�m a� (� certo que n�o li ainda o livro de Arno Meyer) vejo muitos problemas por resolver. Voc� diz que �� totalmente desprovido de sentido p�r a quest�o de saber se hoje poder� ressurgir o fascismo�. Ent�o Le Pen e os outros, ser� apenas bluff? Voc� pensa que o capital, sob press�o de uma agudiza��o das lutas de classes, seria agora �historicamente� incapaz de se desembara�ar das regras do jogo �democr�tico� e de recorrer a um regime autorit�rio e policial? Se assim �, estou naturalmente em frontal desacordo consigo. Se n�o � assim que pensa, a nossa diverg�ncia ter� provavelmente apenas a ver com uma quest�o terminol�gica sobre o que � ou n�o fascismo.

Prossigamos. O fascismo (stricto sensu, por assim dizer) como fen�meno hist�rico dos anos 20-30 seria ainda assim apenas um movimento arcaico e reaccion�rio? (1) N�o haveria a� tamb�m - ou sobretudo - uma radicaliza��o da ditadura de classe burguesa (sustentada � certo, nessa circunst�ncia hist�rica particular, por elementos reaccion�rios) e uma crispa��o pol�tica militarista e polici�ria devida � agudiza��o do conflito inter-imperialista? Se voc� v� a guerra e o fascismo como simples dores de parto da passagem � �domina��o real�, � dif�cil de identificar as linhas de afrontamento. Onde estavam ent�o os reaccion�rios e onde a burguesia progressista? Como se afrontaram eles ao longo desta tal guerra �nica? Isso deveria ter sido clarificado mais precisamente. Por isso eu digo que a explica��o n�o me parece ainda amadurecida.

Outra quest�o: Voc� n�o pretende ainda assim dizer que as guerras inter-imperialistas s�o uma coisa do passado? Nesse caso, as suas teses estariam muito pr�ximas do lugar comum hoje muito mediatizado de que �jamais duas �democracias� fizeram a guerra uma � outra�, etc.. Temos presentemente uma hegemonia militar indisputada dos Estados Unidos. � por isso que, a meu ver, n�o temos de momento a amea�a iminente de uma guerra. Mas nada nos diz que, amanh�, os tr�s polos actuais de acumula��o capitalista n�o conduzir�o de novo a sua rivalidade econ�mica at� ao conflito militar, que � ali�s o seu desenlace l�gico. � por esse modo apenas que se criar� enfim um novo equil�brio, porventura com mudan�a de polo hegem�nico. Perante a guerra, teremos ent�o necessidade da �velha� teoria do imperialismo (renovada, certamente). � por isso que eu acho que far�amos mal em a atirar �s urtigas sem ter qualquer coisa de bem s�lido e provado no seu lugar.

� evidente que voc� n�o disse que a revolu��o � j� para amanh�. Creio, por�m, que o seu diagn�stico de �fim de ciclo hist�rico� do capitalismo � da mesma ordem do �est�dio supremo� de outrora. Coisa diferente ser� dizer que a revolu��o socialista est� em marcha quando n�o est� nem poderia estar. Isso, os revolucion�rios dos anos 10-20 fizeram-no tamb�m. Equivocaram-se duas vezes: no diagn�stico geral e, consequentemente, na sua luta pol�tica concreta. Em ess�ncia, voc� diz que o seu diagn�stico era precoce. Hoje, sim, entramos na fase final do capitalismo. Baixa da taxa de lucro, regress�o social - um beco sem sa�da. � verdade, n�o sabemos o que isto vai ainda durar. Mas o capitalismo n�o poder� de forma alguma desembara�ar-se desta crise. � efectivamente um risco dizer isto, mas eu n�o lho �reprovo�. Bem pelo contr�rio.

Quanto a mim, tendo a ver o materialismo hist�rico como um �processo sem sujeito nem fim� (Althusser). N�s sabemos que � no eixo for�as produtivas/rela��es de produ��o que as sociedades humanas se transformam a elas pr�prias, por interven��o da luta de classes. Temos pois uma teoria da Hist�ria. Ela no-la torna intelig�vel. Ela integra a desordem do nosso presente num percurso conhecido e compreens�vel. Podemos assim conhecer o �campo� e as for�as em presen�a. Podemos tamb�m vislumbrar pontos de sa�da para as contradi��es presentes. Mas uma teoria n�o � evidentemente uma bola de cristal. N�o nos d� certezas ontol�gicas sobre o que o futuro nos trar�. H� a� um limite epistemol�gico evidente. Se o n�o respeitarmos, passamos directamente da ci�ncia para o profetismo e o videntismo. � certo que Marx pode ser lido como um determinista. Isso deve-se, a meu ver, a confundirem-se nele muito facilmente o cientista e o pol�tico. Do n�cleo cient�fico da sua obra, acho ser nosso dever retirar toda a carga determinista que o seu texto, por vezes, efectivamente suporta. Eu penso evidentemente que as sociedades de classes tendem para o comunismo. Mas n�s n�o sabemos sequer se o capitalismo vai ser a �ltima daquelas.

Quando falo da �dial�ctica� entre o voluntarismo e o determinismo econ�mico, evidentemente n�o tomo a express�o no seu sentido filos�fico mas sim etimol�gico. Na hist�ria do comunismo e do movimento oper�rio, houve como que um di�logo permanente entre os deterministas (digamos, Kautski) e os voluntaristas (Che Guevara, para dar um exemplo extremo). Dosearam-se variavelmente estas duas componentes, mas n�o se conseguiu realmente superar nunca a sua antinomia. Vejo-o a voc� mais do lado dos primeiros. Embora tivesse havido aqui um equ�voco, � verdade por�m que o voluntarismo est� frequentemente (e n�o por acaso) do lado dos �hegelianos�. Talvez esta confus�o tenha ainda assim algum sentido. A dial�ctica na Hist�ria �, certamente, um processo inteiramente materialista. Mas � preciso dizer que nesta �mat�ria� vai inclu�da a ang�stia, a capacidade de iniciativa e de organiza��o, os medos, a mis�ria, a aud�cia, os conhecimentos e a coragem de milh�es de homens e mulheres concretos, dolorosamente concretos. Isto n�o � uma mat�ria como qualquer outra. � mat�ria de uma ordem de complexidade totalmente �parte do mundo das reac��es qu�micas elementares com as suas leis inelut�veis. E quando sabemos hoje que, mesmo na micro-f�sica, o paradigma cient�fico dominante � h� muito j� indeterminista... Pela minha parte, direi que, reunindo-se um conjunto importante de condi��es hist�ricas favor�veis � revolu��o prolet�rias (e voc� garante-me que isso se far� brevemente), o mote latino apropriado ser�: alea jacta est!

Vai longa esta carta e n�o falei ainda sen�o das nossas diverg�ncias. � preciso contudo dizer que as nossas converg�ncias s�o bem mais importantes e decisivas. J� disse que o seu livro me deu uma grande alegria. Temos perante n�s um novo ciclo da revolu��o prolet�ria e � absolutamente necess�rio verificar e calibrar de novo as nossas armas. O seu ensaio � um dos mais not�veis esfor�os que eu conhe�o nessa via, que � a justa. A sua �ambi��o� n�o � v�, � parte e parcela da nossa pr�pria ambi��o de revolucion�rios - transformar o mundo.

�ngelo Novo

Nota:
(1) Em Portugal, justamente, uma maioria dos historiadores dizem-nos agora que n�o houve aqui nunca realmente fascismo stricto sensu. O regime de Salazar era antes ...uma simples ditadura reaccion�ria, paternalista e rural. Quanto ao fascismo verdadeiro (maxime, o alem�o e o italiano) ele seria um fen�meno de massas, urbano e modernista. Imagino que teria algumas dificuldades em exp�r-lhes o seu ponto de vista.

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. Paris, 13 de Junho de 1996
Caro camarada:

Na sua carta de 3 de Junho, voc� volta � carga a prop�sito do imperialismo hoje. A sua posi��o parece-me muito terceiro-mundista: apesar da descoloniza��o, nada teria mudado. Portanto, a Arg�lia de hoje, para tomar um exemplo, ser� a mesma do tempo da �Arg�lia francesa�... Que os pa�ses ditos do terceiro-mundo s�o dominados economicamente pelos grandes centros capitalistas � uma verdade, mas isso n�o tem nada a ver com o mauz�o F.M.I. ou com a m�zinha Banca Mundial. Isso decorre do seu atraso em termos de desenvolvimento: enquanto h� cerca de dois s�culos j� os pa�ses da Europa ocidental e da Am�rica do Norte come�aram a sua revolu��o industrial, s� h� uns vinte anos � que os pa�ses do Sul come�aram a sua. Apesar disso, constato que obtiveram j� resultados nada desprez�veis. Assim na China do Sul, em todo o sudeste asi�tico, e tamb�m na Am�rica do Sul e central, com o M�xico. Isso teria sido impens�vel na �poca do imperialismo. � um efeito da mundializa��o do capital que atinge assim o seu verdadeiro �est�dio supremo�. � claro que h� v�rios centros rivais de acumula��o no seio desta mundializa��o. Descortino desde j� dois: a Europa e a Am�rica do Norte (+ o M�xico), onde as taxas de crescimento do P.I.B. atingem penosamente os 2%. H� ainda um terceiro, com o sudeste asi�tico + a China do Sul, onde as taxas de crescimento s�o, a�, de 10% em m�dia! Nada mau, para pa�ses sob tutela �imperialista�... Ter�amos de acreditar que a tal �troca desigual� joga a seu favor! Que pensar� disto o terceiro-mundista Samir Amin, admirador da China maoista e te�rico da �desconex�o�? Hoje em dia, o que conta para um pa�s capitalista, n�o importa qual, � a sua capacidade para enfrentar os desafios da �mundializa��o�: o seu grau de competitividade econ�mica. E nesta competi��o feroz, os pa�ses do Ocidente n�o est�o para sempre seguros de ser os vencedores: se eles n�o se adaptam, correm o risco de se desindustrializar e de se terceiro-mundizar. � j� em parte o que ocorre na ex-U.R.S.S., e mesmo nos E.U.A. e Europa ocidental, onde h� regi�es economicamente sinistradas (o Norte de Fran�a, a Val�nia na B�lgica). O que rege agora o mundo n�o s�o mais os Estados, mas o Mercado, com as suas firmas multinacionais e transnacionais, que investem em fun��o dos seus interesses econ�micos exclusivos, sem qualquer considera��o pelas fronteiras. Dito de outro modo, o capital vai para onde a taxa de lucro � suficientemente rent�vel, n�o hesitando em deslocalizar a produ��o.

Voc� n�o compreendeu que temos que tratar o fascismo como um fen�meno hist�rico. � por isso que, tal como os �media�, considera Le Pen um fascista, enquante este n�o � mais que um puro partid�rio do liberalismo econ�mico, estilo Reagan (de que ele se reclama), e da �revolu��o conservadora� americana (defesa dos �valores morais� burgueses que, neste fim de ciclo do capitalismo, est�o efectivamente em deliquesc�ncia). Voc� faz uma bela confus�o: assimila o fascismo a um regime autorit�rio e policial. Nesse sentido Napole�o I e III, o regime versalh�s ap�s a comuna de Paris, Bismarck, Estaline, eram todos �fascismo�... � claro que, face a uma luta de classes revolucion�ria, as democracias burguesas fazem-se mais �musculadas�. Vi-mo-lo em 1848, com a repress�o feroz dos insurrectos de Junho, feita pelos republicanos de Cavaignac; em 1871 com o massacre dos comuneiros operado pelos burgueses de Thiers que instaurariam de seguida a III Rep�blica; em 1919, com o assassinato dos spartaquistas orquestrado pelos partid�rios da rep�blica de Weimar; em 1934 nas Ast�rias onde a jovem rep�blica espanhola liquida a insurrei��o dos mineiros. O que � que tudo isto tem a ver com o �fascismo�? S� os fascistas seriam capazes de recorrer � ditadura e � viol�ncia? Uma treta! Se a democracia burguesa se sente amea�ada ela � perfeitamente capaz de se defender sem para isso ter de recorrer ao fascismo. Ela por� em campo um regime de excep��o, far� reinar a lei marcial, e uma vez a Ordem reestabelecida, quer dizer, os revolucion�rios liquidados, ela retornar� ao jogo normal das suas institui��es. Quando o fascismo hist�rico surgiu, nos anos 30, n�o havia nenhuma amea�a s�ria de revolu��o prolet�ria, tendo esta abortado completamente h� dez anos atr�s. Mesmo o golpe de Estado franquista de 1936 n�o � uma resposta desse tipo: a classe oper�ria espanhola, inclusive a sua componente anarquista, n�o optou pela revolu��o mas sim pela �frente popular�. O franquismo � uma reac��o � rep�blica burguesa de 1931, como o hitlerismo � uma reac��o � rep�blica de Weimar de 1919, como o fascismo italiano � uma reac��o �s �ideias de 1789�.

Ap�s isto, pergunt�is-me: �Onde estavam os reaccion�rios e onde as burguesias progressistas?� Se voc� n�o faz qualquer distin��o entre a democracia burguesa americana e um campo de concentra��o hitleriano, entre a civiliza��o da Coca-Cola e a da extermina��o dos judeus ou do projecto de escraviza��o de todos os eslavos, ent�o que poderei eu dizer-vos? Reenvio-vos para o meu livro onde, a p�ginas 145-146, eu cito P. Souyri.

Voc� escreve: �n�o pretende ainda assim dizer que as guerras inter-imperialistas s�o uma coisa do passado?� Caro camarada, voc� esquece qual � a perspectiva que eu desenho no meu livro: n�o a de uma guerra futura, mas a da revolu��o, n�o j� �para amanh�, � verdade, mas num futuro que n�o ser� talvez assim t�o afastado, mesmo que para isso tenhamos de esperar ainda duas ou tr�s d�cadas. Sen�o para que serveria este livro? N�o o teria escrito. Pela minha parte, estimei que1995 n�o era 1938 e que a Hist�ria iria produzir algo de novo. Voc� mesmo, ali�s, parece inclinar-se para esse lado quando, no final da sua carta, escreve: �temos perante n�s um novo ciclo da revolu��o prolet�ria e � absolutamente necess�rio verificar e calibrar de novo as nossas armas�. Eis o que me parece colidir com o seu, digamos cepticismo, emergente aqui e ali no seu discurso, como por exemplo quando escreve: �n�s n�o sabemos mesmo se o capitalismo ser� a �ltima sociedade de classes�. Tive a impress�o de que voc� est� atacado por uma esp�cie de desencorajamento, ali�s muito espalhado na �poca actual. Ap�s o optimismo desbordante, completamente irrealista, de 1968 (para v�s portugueses, de 1974), sucede-se hoje um estado de desilus�o aguda, igualmente irrealista. No que me diz respeito, tenho bem consci�ncia de remar contra a mar�. Mas pessoalmente, n�o cederei ao esp�rito do tempo. Os elementos que, ap�s 1968, julgavam que a revolu��o estava ao alcance dos dedos so�obraram por completo. Aqueles que sobreviveram passam o tempo a dizer que n�o v�m qualquer sa�da. Isso serve de alibi � sua ren�ncia. O meu livro foi uma primeira tentativa de romper com este estado de deteriora��o ideol�gica em que mais nenhuma perspectiva pol�tica e hist�rica emerge. Contra tudo e todos, persistirei na via que me tracei: considerar que a an�lise marxista � ainda mais v�lida hoje que no passado, s� ela permitindo manter uma vis�o sobre o futuro. Esta �ambi��o�, penso bem prossegui-la, tendo bem consci�ncia de que estou ainda longe de lhe estar � altura.

Sauda��es fraternais,

Claude Bitot

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. Vila Nova de Gaia, 3 de Julho de 1996
Caro camarada:

(...)
Voc� julga-me �terceiro-mundista�. Embora n�o o aceite de todo (haveria a� muito que discutir), tamb�m n�o o acho assim um ep�teto t�o infamante como isso. Eu nasci em Mo�ambique e conhe�o razoavelmente bem as devasta��es que provoca a �mundializa��o�. Pelo contr�rio, n�o conhe�o nenhum tra�o de verdadeira �revolu��o industrial� em �frica. Ser� preciso esper�-la ainda? Voc� diz-me que as rela��es de domina��o econ�mica internacionais decorrem apenas do �atraso no desenvolvimento� dos pa�ses do Sul. � crer demasiado, receio-o, nos caracteres universalistas do capitalismo. A sua vis�o parece-me pr�xima da teoria dos est�dios econ�micos de Rostow. Seria apenas necess�rio aguardar pelo inevit�vel take-off dos pa�ses retardat�rios e em breve viveremos num mundo sem desequil�brios regionais. Simplesmente, no �capitalismo real�, as rela��es de domina��o que os pa�ses �atrasados� sofrem (a �d�vida�, a troca desigual, a �especializa��o� na agricultura e na extrac��o de mat�rias-primas) s�o um trav�o ao desenvolvimento e mecanismos eficazes de reprodu��o dessa mesma domina��o e explora��o. � isso o imperialismo.

Voc� diz-me que �o que rege agora o mundo n�o s�o mais os Estados, mas o Mercado, com as suas firmas multinacionais e transnacionais, que investem em fun��o dos seus interesses econ�micos exclusivos, sem qualquer considera��o pelas fronteiras�. Penso que far�amos mal em desvalorizar o papel do Estado, ao gosto do �ltimo grito das modas intelectuais. O fen�meno de acelera��o da �mundializa��o� � real. Mas isso n�o se acompanha de nenhum de qualquer decl�nio do Estado. Haver�, quanto muito, fen�menos de transnacionaliza��o de certas parcelas, ali�s muito restritas, do poder estatal, que assim se v�m transferidas para organismos regionais ou mundiais. O capital n�o poderia viver um segundo sem o poder pol�tico e o aparato coercivo burgu�s. Isso a�, creia-me bem, as multinacionais sabem-no de sobejo. Em tempo de borrasca, elas lembrar-se-�o muito rapidamente da sua bandeira nacional. Em tempo de paz, elas beneficiam tamb�m (e influenciam as suas decis�es) da �pol�tica econ�mica� e cambial, da diplomacia, do poder militar, etc. do seu Estado, para assim melhor �competir� no tablado mundial. H� multinacionais (nomeadamente brit�nicas) que j� pouca ou nenhuma influ�ncia t�m na vida econ�mica e social do seu pa�s de origem, continuando por�m a subornar e a receber avultados favores da sua classe pol�tica. Tudo em nome das tais competitividade e mundializa��o.

Sobre o fascismo, estarei de acordo consigo em remet�-lo ao seu contexto hist�rico dos anos 30-40 (acho contudo que voc� se equivoca gravemente sobre Le Pen). Simplesmente, l� est�, eu vejo o fascismo nesse sentido estrito como uma simples sub-esp�cie epocal dos regimes burgueses musculados. Por isso eu admitia que a quest�o fosse simplesmente terminol�gica. N�o sou historiador, mas terei uma grande dificuldade em admitir absolver a grande burguesia da subida e tomada do poder por parte do fascismo hist�rico, como me parece que voc� faz (como o faz ali�s o �ltimo Hobsbawn, por exemplo).

� claro que n�o confundo (nem julgo que se equivalham) o nazismo e a civiliza��o da Coca-Cola. Mas voc� esquece-se que a sua �guerra de trinta anos� come�ou muito atr�s, em 1914. T�nhamos ent�o os regimes aristocr�ticos (mas com burguesias poderosas e 100% cooperantes, institui��es �democr�ticas�, etc.) da Europa central de um lado; a Fran�a e a Gr�-Bretanha, moderadamente �democr�ticos�, aliados � R�ssia czarista, do outro. Os Estados Unidos chegaram atrasados � festa. � um pouco dif�cil discernir a� claramente um conflito de classes como causa primeira e principal do conflito. Em todo o caso, voc� n�o o faz de forma convincente no seu livro. Se tudo isto n�o foi sen�o um conflito de classes, ao menos a R�ssia (a tal �reserva da reac��o europeia�) parece estar do lado errado. Se fosse esse o caso, esperar-se-ia antes uma s�rie de revolu��es e/ou de guerras civis (como em 1948) e n�o guerras cl�ssicas entre blocos nacionais incindidos. As burguesias germ�nicas n�o aspirariam tamb�m elas � passagem � �domina��o real�? Ent�o porque se solidarizaram elas t�o pronta, empenhada e at� euforicamente com o kaiser e o imperador? Iludiram-se sobre o que estava em jogo? Estranha cegueira! Como voc� bem sabe, mesmo a social-democracia e a esmagadora maioria do movimento oper�rio apoiaram a� convictamente o esfor�o de guerra. Kautski cometeu mesmo a impud�ncia de dizer: �Eis a guerra contra o despotismo russo � qual aspirava Marx!� E ele tinha ent�o fortes e bons argumentos para sustentar que o �progressismo� estava do lado germ�nico. O capitalismo alem�o era, j� ent�o, mais din�mico e moderno que o franc�s e brit�nico, pa�ses que, como voc� ainda recentemente afirmou, estavam a atrasar-se por serem sobretudo rendeiros de grandes imp�rios...

N�o digo que a sua interpreta��o seja falsa. Ela incluir� mesmo provavelmente elementos judiciosos e �teis. Mas considero-a ainda tacteante e n�o provada. Para mim, as guerras mundiais foram sobretudo guerras inter-imperialistas. E isso n�o me impede em nada de diferenciar entre o fascismo e a democracia burguesa na guerra dos anos 30-40 (dita segunda). Quanto � sua interpreta��o, dessa � que me parece estar ainda por retirar a sua consequ�ncia l�gica: a de que Lenine, Rosa e toda a esquerda de Zimmerwald se equivocaram. A posi��o correcta dos socialistas face � guerra de 14-18 teria sido... o apoio � entente franco-brit�nica. Estar� voc� preparado para sustentar isso?

Voc� escusa-se a debater se o capitalismo est� ou n�o ainda vocacionado para a guerra, sob pretexto de que... em breve j� (vinte, trinta anos no m�ximo) teremos a revolu��o. Mas, caro camarada, n�o se trata da minha parte de fazer futurologia ociosa. N�o tenho qualquer prazer em fazer de Cassandra. Trata-se de bem conhecer o sistema como ele �, a fim de melhor o combater. Os centros capitalistas est�o em equil�brio cooperativo permanente (como penso deduzir das suas ideias)? Ou, pelo contr�rio, as suas rivalidades agudizam-se e desembocar�o naturalmente na guerra, como j� o vimos no passado. E aqui voltamos � quest�o da interpreta��o das guerras do s�culo XX. Desde que o capitalismo a� est�, tivemos, ou uma pot�ncia hegem�nica indisputada (a Gr�-Bretanha e, depois, os Estados Unidos) ou guerras. A partir do momento em que a hegemonia yankee comece a ser disputada, creio que regressaremos � instabilidade pol�tica e ao afrontamento mundial. N�o me vai certamente dizer que isso � indiferente para a revolu��o socialista?

Eu n�o sou �c�ptico�. � voc� que confunde a esperan�a com uma certeza ontol�gica, ou mesmo uma renovada f� cientista nos amanh�s que cantam. N�s, os comunistas, lutamos e esperamos, mas na verdade n�o sabemos. E � porque n�o sabemos que nos batemos com um arreganho redobrado. � isso que faz a nossa grandeza. Para que teria voc� escrito o seu livro, se a revolu��o � j� um facto adquirido para daqui a 20-30 anos? Pela v� gl�ria pessoal de ter sido o primeiro a o ter visto? N�o, digo-lho eu. Voc� escreveu-o como um instrumento da luta de classes, como uma ferramenta ao disp�r da revolu��o. E uma luta, por defini��o, tem um resultado incerto.

Voc� faz mal em confundir uma posi��o filos�fica n�o-determinista (que o marxismo suporta bem, a meu ver) com �desencorajamento� an�mico, ou mesmo descren�a. Ser� que voc� tamb�m acha (como os estalinistas) que as massas s�o incapazes de se bater sem uma f� inculcada pelos ide�logos de servi�o. Na verdade, estou um pouco confundido com o seu �conservadorismo� nesta mat�ria. Voc� n�o pode ignorar que um dos mais pesados legados do estalinismo � justamente esta f� irracional que abusou da incultura e imprepara��o das massas para lhes imp�r regimes oportunistas, sobreexplora��o, o �culto da personalidade�, etc., etc..

(...) Com as minhas calorosas sauda��es,

�ngelo Novo

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Troca de cartas publicada na revista 'Pol�tica Oper�ria' n� 56, Setembro-Outubro de 1996, em tradu��o de �ngelo Novo sobre o original em franc�s.

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