A Crise





Prevista e anunciada por uns como inevitável, desde há muito, negada e escarnecida por outros, a crise geral do capitalismo está aí. Embora os nossos comentadores encartados ainda especulem sobre a previsível amplitude da “recessão” que aí vem, o facto é que estamos perante um evento mundial de uma dimensão histórica completamente diversa.

Ouvimos falar muito, nestes dias, sobre a importância da confiança, de divisar as medidas mais eficazes para restabelecer a confiança e assim estabilizar os mercados. Curiosamente, o autor da tese do fim da História, Francis Fukuyama, segundo o qual a humanidade teria achado o seu modelo defininivo de organização social nas democarcias liberais do Ocidente, publicou também logo de seguida um grosso volume filosófico intitulado “Trust”. É por demais curioso que os mesmos ideólogos que nos ensinam que o óptimo de desenvolvimento social resulta da guerra de todos contra todos, da prossecução absolutamente desapiedada do interesse individual egoísta por parte de cada um, venham agora acrescentar, em adenda, que tudo isso só faz sentido com base numa cultura e numa socialidade espontânea de confiança.

Mas o capitalista é isso mesmo: a contradição em acto, desenvolvendo-se continuamente. Serra o galho da árvore em que está sentado. Vende a corda com que será enforcado. E não porque não possa prever as consequências dos seus actos, mas porque, simplesmente, não pode fazer de outro modo. Como dizia, com ironia mordaz, o agora ressuscitado salvador John Maynard Keynes, este é o sistema em que “foul is fair and fair is foul”. O sistema em que, actuar de forma iníqua é normal e expedito, enquanto ser justo e solidário é atrapalhar o tráfego.

Chegamos, portanto, a um estádio em que é fulcral a confiança que os lacraus possam ter e gerar entre si. Estamos todos dependentes disso. Um dos patriarcas do sistema, Alan Greespan, declarou-se em “estado de choque” com o estrepitoso colapso de Wall Street. Em década sobre década de estudo e reflexão aturada sobre a economia, nunca lhe passou pela cabeça que os capitalistas, desenbaraçados de todos os entraves e regulações, não actuassem racionalmente em defesa dos seus interesses, bem entendidos, daí resultando naturalmente o maior bem comum possível.

É difícil restabelecer a confiança quando a criação de valor novo está estagnada, praticamente há quarenta anos, devido à sobreprodução crónica (excesso de capacidade produtiva em relação à procura solvente), a patologia paradoxal, típica do capitalismo, que consiste no facto de, precisamente por as necessidades insatisfeitas da humanidade serem tão grandes, se tornar impossível usar os recursos já disponíveis para lhes dar satisfação.

Desde os inícios da década de 1980, os proprietários (aí incluídos os proprietários apenas da sua própria força de trabalho) vivem essencialmente de comprar e vender, uns aos outros, promessas e promessas sobre promessas, cada vez mais extravagantes e intricadas, tudo com base em rendimentos futuros cujo surto continua sem se vislumbrar na economia “real”. O que estamos a assitir é ao colapso de um gigantesco esquema piramidal de escroqueria financeira global. E ainda só vimos o primeiro capítulo, pois que à crise das hipotecas “subprime” se seguirá, provavelmente, a dos cartões de crédito e a dos seguros de risco, daí resultando uma paralisia generalizada do sistema bancário e uma profunda depressão.

Nem esta é apenas uma crise financeira, induzida pelos efeitos retardados e cumulativos da crise de lucratividade na produção capitalista. A estas se junta a crise energética, a crise alimentar, a crise ambiental, a crise do militarismo imperialista, a crise urbana, a crise cultural, entre outras.

As épocas de crise são tempos de risco, de bifurcações sucessivas, de decisões críticas, de oportunidades que se oferecem uma só vez, em exíguas e fugazes janelas. Esta aguda crise em que estamos agora a entrar vai prolongar-se, provavelmente por umas duas a três décadas, no mínimo. O desfecho e sequência histórica desta crise são absolutamente imprevisíveis, tanto podendo ser o pesadelo de uma pós-humanidade segmentada e distópica, como uma sociedade globalmente mais igualitária e participativa, em rumo para a abolição das classes sociais e da propriedade privada.

Por todo o tempo de uma geração, provavelmente, assistiremos a nível mundial a uma intensa agudização das lutas de classes, com numerosos episódios de ruptura de equilíbrio, tomada do poder, reordenamento socio-económico, com reversões pontuais e reconquista de posições. Pelo mesmo tempo, teremos agudos conflitos inter-imperialistas, guerras e insurreições, instáveis alianças entre alguns blocos nacionais e/ou regionais burgueses com forças revolucionárias em ascenção, de diversos matizes e configurações.

É bem real, no nosso campo, aquilo que na linguagem “diamática” doutros tempos, se dizia o “atraso no factor subjectivo” e que hoje se dirá, simplesmente, défice de projecto e de definição estratégica. Só na América Latina é que podemos ver levantar-se já um primeiro esboço coerente e estruturado de desafio anti-sistémico, que por vezes se designa a si próprio de “socialismo do século XXI”. Em outros azimutes é ainda grande a indefinição reinante. O movimento intelectual de renovação do marxismo ainda não se entrelaçou duravelmente com a ascenção dos novos movimentos sociais contestatários. Nos primeiros embates, isso pode ser perigoso, porque, em tempos de anomia social, a direita populista e autoritária está sempre pronta para ocupar todo o terreno que encontrar livre. Essa não precisa de projecto algum: basta-lhe a brutalidade, a demagogia e a falta de escrúpulos, no serviço da classe dominante.

É também verdade, porém, que nunca poderíamos estar em posição de prever todos os desafios que teremos pela frente, dando-lhes respostas já estudadas e provadas. No calor da luta, ao sabor dos seus sucessos e revezes, a consciência transformadora irá, sem dúvida, ser moldada e temperada a um ritmo muito acelerado, derrubando pelo caminho muitas e bem espessas lombadas de dogmas “r-r-revolucionários”. É importante sabermos de onde vimos, que temos atrás de nós uma história, uma tradição de lutas e de esperanças. Que temos até, vá lá, alguma sabedoria e malícia histórica acumulada. Mas também é importante a disponibilidade de um novo olhar sobre o mundo. Mais vale errar por ousadia inexperiente do que por tacanhez escolástica.

Será no calor da luta que veremos formar-se articuladamente, no plano mundial, a nossa causa, o nosso “partido”. Para já, e como primeiro esboço mobilizador podemos apenas consignar-lhe algumas palavras de ordem imediatas: liberdade de movimento transfronteiriço para trabalhadores; abolição das barreiras comerciais proteccionistas nos países imperialistas; condicionamento dos movimentos internacionais de capital e subordinação dos investimentos externos a planos de desenvolvimento auto-centrados; cancelamento de toda dívida pública dos países periféricos; calcelamento da dívida privada das famílias; nacionalização e controlo público do sector financeiro; fim do segredo bancário e dos paraísos fiscais; salvaguarda e extensão dos serviços públicos; contratação colectiva e segurança social mínima para todos os trabalhadores; redução do horário de trabalho e partilha de empregos; controlo de gestão nas grandes empresas capitalistas; abolição das patentes e da propriedade industrial; restrições à publicidade; radical democratização dos meios de comunicação social; desactivação de todos os mísseis e as armas de destruição maciça, com desmantelamento de todas as bases militares externas e agências de espionagem; gigantesco esforço público internacional de investigação de alternativas energéticas; reforma agrária democrática, com promoção da soberania alimentar e defesa da biodiversidade; um sistema mundial de garantia de preços para o comércio internacional de matérias-primas e produtos agrícolas; financiamento a fundo perdido de projectos de desenvolvimento nos países e regiões periféricos.

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