TURMA DE 72 - Espaço Literário


O Berne Nosso de Cada Dia

Faz bem uns 12 anos, quase nem lembrava mais deste caso.
Uma amiga da família telefona uma noite, para discutir
assunto da filhinha, então com uns 5 anos de idade. Afinal,
sou médico e amigo. E amigo é pra essas coisas. Não importa
que seja ginecologista, ou que a consulta corra pela linha
telefônica. - Mas, diga lá, qual é o problema da menina? -
(mãe desesperada) Apareceu uma ferida na cabeça. Parece
furúnculo, mas tem um ponto preto... Já levei à pediatra,
que receitou antibiótico há 3 dias, mas a coisa só faz
aumentar. Tá doendo... É] na cabeça... Agora a pediatra
quer pedir exames complementares...
Após recolher dados preliminares, sobre o tamanho e o
aspecto do calombo, há quantos dias surgiu, se cresceu de
repente ou gradualmente, concluo que a coisa se parece com
um pequeno vulcão, do qual não sai pús, no máximo uma
gotinha de líquido hialino, às vezes. Mas dói, dá umas
fisgadas na cabeça da menina e ela, claro, aporrinha a mãe,
que como toda mãe amorosa já pensa no pior... Finalmente,
parto para o interrogatório: - Fez febre? Tá nascendo mais
algum? Dói a nuca? Tem gânglio no pescoço? Tem... ? - (mãe
preocupada) Não... nada disso... - Alguma viagem recente? -
(mãe viajante) Só visitamos o sítio dos avós, há uns 10
dias, lugar chique, com piscina, cavalos, cães de raça...
Pertinho de São Paulo... Tudo muito limpo... Passamos um
fim de semana muito agradável... - Fechei o diagnóstico: é
berne! - (mãe indignada) Impossível! Lá não tem dessas
coisas... Ninguém até hoje referiu... Por quê só na
pequena... Ela não é vaca!...
Eu, teimoso e obstinado na hipótese primeira e única,
explico que berne é assunto comum pelo interior, uma praga
mesmo, que dá na cabeça e em outras partes do corpo, não
apenas um, mas até uma plantação deles... Conto a história
da mulher da roça, que não usa calcinha e deita na cama
para o merecido repouso da sesta, entremostrando as
partes... Vem a mosca e ... Lá aparece o berne nas
partes!... Dói, incha, infecta, difícil de tirar o raio da
larva daquele lugar... Enfim, concluo que se berne também
dá ali, é porque é assunto ginecológico. Como sou
ginecologista, de berne eu entendo, é a minha
especialidade... não é qualquer pediatra de metrópole que
me vence nessa contenda... - (mãe vencida e nitidamente
horrorizada) Nossa, na cabeça da minha filha! E o que eu
faço? ... Vixe, mas tem que apertar pra ele sair?... Não
tem remédio que dá pela boca?... Será que é grande?...
Filosofei um pouco em cima do tema, expliquei a propriedade
de se manter o antibiótico já iniciado pela colega
urbanóide, pois havia risco de infectar e, na cabeça, podia
virar coisa séria, até meningite bacteriana... [Por quê não
fiquei com a minha grande boca fechada!.. Era consultinha
rápida, de poucos impulsos... o jantar foi esfriando,
enquanto eu apaziguava o coração materno, excluindo as
perigosas ites que podiam dizimar a criançada de toda a
vizinhança...]
Passaram-se uns dias e, mais ou menos uma semana depois, me
liga a mãe amiga. - Tudo bem com a menina? Foi fácil tirar
o berne? - (mãe resignada) Que nada. Tive medo, não consegui
nem mexer na coisa. Quando finalmente eu tava quase com
toda a coragem, vi que hoje saiu uma coisa branca cheia de
pontinhos pretos, gorda, um horror de nojenta...! - Mas e o
seu marido, por quê não fez como eu orientei? - (mãe
valente) Esse é um banana, nem chegar perto ele quis... Não
havia nada na cabeça dele, acho que berne escorrega naquela
careca brilhante e lisa.
Refleti no tema da calvície, que nem boné fixava... Por quê
só a menina fora vítima?... Era um sítio tão arejado... -
Bem, se você enterrar a larva gorducha no jardim, ou mesmo
num vaso de planta, pode ser que nasça uma mosca do
berne... Ai, completa o ciclo biológico... Mosca também tem
seus direitos à vida, né...

O outro caso é bem recente, ocorreu logo ao primeiro dia da
primavera deste ano que parece voar, de tão rápido escoam
os meses.
Outra amiga minha de longo tempo, artista plástica e
fotógrafa, me surpreende por telefone, num dos pontos de
parada da minha maratona diária pela pequena capital
paulista. - Oi, como vai R... - (amiga querida) Tenho um
problema, não sei o que acontece... - E seu marido A..., ele
continua... - (amiga desesperada) Já colhi exame de sangue e
me mandaram ao infectologista. Acho que tem um tumor no
pescoço ou infecção grave...
Desisti das preliminares e ataquei o problema. Não é todo
dia que a gente precisa de preliminares. Além disso,
problema grave tem prioridade a essas futilidades. Dói, tem
febre, rigidez de nuca?... dor no ouvido, nos dentes, na
garganta?... - (amiga preocupada) Tudo começou ontem, quando
fiz um esforço e senti dor no pescoço... Pus a mão e senti
uns caroços... Agora dói toda hora ... O médico clínico
pediu hemograma e já disse que é caso de infectologista,
pode até ser necessário encaminhar a outro especialista,
talvez precise cirurgia... Mas tenho o laudo do exame de
sangue...
Colhi todos os dados possíveis sobre os tais tumores, por
telefone. O quadro era de adenomegalia cervical direita, de
início agudo. Sem outros concomitantes, nada mais de
importante. Respirei fundo, refletindo por um segundo e
parti decidido para o interrogatório geral. Febre?...
Caroço na axila, na virilha?... Dor na nuca... nas
costas?... Alteração visual?... - (amiga desconsolada) Nada
disso... Tem o exame de sangue... - Então leia para mim os
resultados do exame de sangue, devagarinho... [hemograma
normalíssimo, resultados seguramente bem melhores do que um
exame meu]. - Você viajou recentemente? - (amiga
desconfiada) Só fomos a um sítio, em Ouro Fino... Isso foi
há 2 semanas... - Não surgiu nenhuma ferida, caroço,
espinha?... - (amiga turista) Bem, tem também uma espinha na
cabeça. - Essa espinha tá doendo? - (amiga mais animada) É],
hoje deu umas fisgadas... - É] do lado direito da cabeça?...
No sítio havia gado, cachorro, cavalo?... - (amiga artista)
Isso... As vacas estavam soltas ao lado da casa... eu
deitei no chão para tomar sol... Não, não usei boné nem
chapéu!... - O seu problema do pescoço e da cabeça é um só,
e é ginecológico! - (amiga estupefacta) Hum...?! - É], sou
ginecologista e desses assuntos eu entendo... Não, não
quero saber quando foi a sua última menstruação... Escute,
esse calombo na sua cabeça é ... berne!! - (amiga
apavorada) Berne?! Que horror!... Mas dá na cabeça?... É]
vivo?... E essas fisgadas, pensei que fossem de causa
psicológica?... Larva de mosca?!?!
Orientei conforme a rotina de meu conhecimento ginecológico
do caso. Desfiei a história da mulher da roça que deitou
desabrigada e foi assediada por uma mosca ... - (amiga
ceramista) Acho que vou vomitar...Que nojo!
À noite, nem banho eu tinha tomado, quando às 20:30 horas
toca o telefone. - (marido de saco cheio) Luiz, tô indo
ai... - Aonde? - (marido cansado) Na sua casa... O berne não
pára de dar fisgadas e eu é que não vou passar a noite com
mulher enojada, com verme na cabeça... - (médico mudo) ...
- Será que vamos atrapalhar ...? - (ginecologista resignado)
Não, tomamos um café e conversamos sobre cerâmicas. Mas
tudo aqui tá uma bagunça... melhor não reparar...
Em meia hora eles chegavam. Extraído o incômodo verme
(mediu uns 8 mm), verifiquei que a linfadenopatia devia
mesmo ser reativa. Ofereci uns comprimidos aperitivos de
antibiótico, a título de prevenção de infecção, um café,
assistimos um vídeo de um artista entrevistado por mim (é,
também faço essas coisas, quando sobra tempo) e passamos a
discutir questões indígenas, pois todos somos apaixonados
por esse tema, que é de longe o mais interessante da nossa
terra, depois, é claro, do repertório musical caipira (ainda
estou triste pelo passamento do Tonico, do Zé Coco do
Riachão, e sei que vou ficar arrasado se a Inezita Barroso
partir antes de mim...). - (amiga artista plástica, de
cabeça dolorida e mais leve) 'Brigado, era mesmo assunto
ginecológico...
Antes de partirem, emprestei três livros de índio, um era o
livro do Curt Nimuendajú e, como eles desconhecessem o
famoso autor, expliquei o significado do nome indígena do
alemão/índio/brasileiro naturalizado (aquele que construiu
sua própria morada). Como meu amigo/marido da amiga também é
artesão e está construindo seu próprio barco, um iate,
decidi batizar o amigo Nimoigarajú (aquele que construiu sua
própria embarcação).
Meu casal amigo foi embora mais de meia noite, deixando o
rastro da boa prosa, um bule com fundo de café morno, uma
ponta de saudade precoce, e a bolsa com todos os documentos
e o talão de cheque ao lado do sofá.

Relato essas duas histórias, na minha modesta e imperfeita
redação, só para lembrar que a formação médica anda
deficiente. É] verdade que ginecologista é o médico de
formação mais completa na profissão... Mas é bom lembrar que
berne é coisa comum, como também o são as lombrigas, as
solitárias, os piolhos, as mordidas de cobra e muitas outras
coisas e bichos comuns, que andam desprezados no ensino
médico. Acho que especialização é muito necessária,
fundamental até, para animar o intelecto da gente no
exercício da hoje menos grata profissão. Porém, formação é
formação, e não adianta investigar linfoma, mononucleose ou
metástase tumoral se o berne estiver comendo o couro
cabeludo...

Luiz Roberto Fontes Médico Ginecologista e Biólogo
Especialista em cupim (inseto, não o do boi) e curioso
acerca das coisas de índio e da roça

EPCAR 72-071 Fontes


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