IV-7 * Janeiro-Dezembro de 2001

Mural


A morte de um seringueiro

(Quadro Amazônico)

Humberto de Campos

É nas ilhas, no centro, alta noite. Deitado
Em palhas de boçu, num mísero casebre,
Sem conforto, sem luz, sem uma alma a seu lado,
Soluçando de sede e tremendo de febr,
De um longe seringal da selva americana,
Que nem mesmo, sequer, um córrego percorre,
E onde a voz que se erguer não tem resposta humana,
- Um jovem seringueiro, empaludado, morre...

Tudo é triste em redor da barraca pequena.
Apenas o trilar dos insetos na mata;
A brisa; e um sapo-boi, que, na noite serena,
Berra a angústia que o aflige, a paixão que o arrebata,
Ao fitar uma estrela - uma quieta falena
De ouro, que, do alto céu, no paul se retrata.

O jovem seringueiro, a arder de febre, escuta
O barulho que, em roda, a Natureza espalha:
Farfalham buritis; como em tímida luta,
Doce, aflita, a bolir, a meter-se entre a palha
Do teto da barraca, e entre os ramos, a brisa
Em segredo murmura, e estremece, e farfalha,
E soluça, e se escapa; e entre as folhas desliza...

E ele, ardendo de febre, e em delírio, ouve tudo...
Sente sede. Em redor, debalde a mão tremente
Busca, inquieta, a apalpar, o pote antigo e rudo,
Onde pensa encontrar a água que o dessedente.

E, apalpando, deitado, o canto da barraca,
Com a mão grossa a tatear pelo soalho vazio,
A um canto, junto à palha, a mão tremente estaca,
E apalpa um pétreo objeto impassível e frio.

Aos seus olhos, em luz, a alegria se eleva,
E trazendo, a tremer,o pétreo corpo à vista
- Que ardente se derrama e se apaga na treva -
Põe-no junto do olhar... Na ilusão da conquista.
Busca levá-lo ao lábio; e sorrindo de gozo,
Na ânsia louca da febre ao lábio descerrado
Leva-o, morde-o chorando, e, convulso, sequioso,
Com mais febre a tremer, deixa-o cair ao lado.

É um búzio... E o frio búzio, ao tombar, fica unido
À cabeça febril do cabloco, ficando
Toda a concha sonora em frente ao seu ouvido.
E o jovem segingueiro, em delírio, escutando
O secreto rumor do búzio, se debruça
Mais sobre ele; e estremece, e abre os olhos, notando
Que, alí dentro, alguma alma, em silêncio, soluça.

E une-o mais, junto ao ouvido. A secreta harmonia
Que ouve fá-lo surpreso. Um clarão vago e leve
Aclara-lhe a memória. E ele vê, na sombria
Noite do seu delírio,o delírio que teve.

E recorda-se- É o búzio... E ainda tremendo,tonto
Pela febre, da palha ao medroso farfalho,
Recorda que com ele, às tres horas em ponto,
Chamava o companheiro ao insano trabalho.

Recorda, reconhece... A mente se lhe aclara:
É a concha que lhe lembra os dias em que, incerto,
Viera do alto sertão - o búzio que encontrara
Quando a primeira vez vira as ondas de perto.

Põe-no, então, junto ao lábio; e, soprando, sonora,
A alma, no último esforço, a voar de fronde em fronde,
Manda, no som do búzio, a vibrar mata em fora...
E, apenas, muito longe, o eco, triste, responde...

Leva-o de novo ao ouvido, e, de novo, delira...
Delira e sonha. E ao som,aos rumores que sente,
Aos rumores do búzio e ao som daquela lira
Que anda a rir e a chorar pela noite dormente,
Voa, na asa do sonho, através da distância,
A uma terra longínqua onde o céu é inclemente
E onde alegre viveu sua primeira infância.

E ei-la à vista:É o sertão amplo e ondulado, cheio
De serrotes azuis e ampla várzea cinzenta:
É um fantástico mar petrificado emmeio
De uma hora de cruel e indizível tormenta.
E, ao longe, um pouco além de uma doce e pequena
Povoação sertaneja, onde o campo se acaba,
Estendida, azulada, entre a névoa serena,
A fechar o horizonte, ergue-se a Ibiapaba.

É nos fins do verão: tudo é plácido e feio.
Inundado de luz, tudo é quieto e tristonho...
Não se vê cintilar um só açude cheio:
Tudo o sol reduziu a este quadro de sonho...

E eis o inverno, afinal!... Pelos campos macios,
Tudo mostra o esplendor das eternas farturas:
A cantar no correr dos riachos vadios,
A sorrir no verdor das espigas maduras.

Pelo campo sem fim a vista erra e se perde.
É quando o Ceará pelo céu se não troca:
O sertão ondulado é um largo oceano verde
Do pé da Serra grande ao pé da Meruoca.

E vê tudo... A tremer, entre o verde infinito,
E entre a névoa que ao sol se dissipa e esvoaça,
Revê tudo o que viu: a Sant'Ana, o Mosquito,
A Lapa, o Pacujá e a igrejinha do Graça...

E, entre o mato, a correr, bulhentos e sombrios,
Sobre o dorso a levar largos flóculos brancos,
Descem, turvos, roncando, os riachos e os rios,
Com línguas de água escura a lamber os barrancos.

Olha: conhece-os bem: é o Jaibara que ronca,
E, no inverno, a espumar,desce a Ibiapaba.
É o outro o Acaraú, que com ele se encontra...
Brame aqui o Jatobá; canta adiante o Ipuçaba...

O verde carnaubal bate os leques à brisa...
Tudo vibra em redor pelo campo empastado:
Ao sereno rumor dum riacho que desliza
Há balidos de ovelha e mugidos de gado...

E, ao barulho da conhca, o farfalho das matas
Ouve em festas; e o olhar toda a distância vence;
E no ouvido, e no olhar,sente em carícias gratas
Todo o imenso esplendor da terra cearense...

De repente,porém, tudo fugir parece.
Fria, a noite em redor, entre as palhas, suspira.
E o jovem seringueiro, em delírio, estremece...
Deixa o búzio cair... treme de novo... e expira...

Depois... volta a quietude à barraca pequena.
Apenas o trilar dos insetos na mata;
A brisa; e o sapo-boi, que, na noite serena,
Berra a angústia que o aflige, a paixão que o arrebata,
Ao fitar uma estrela - uma quieta falena
De ouro, que, do alto céu, no paul se retrata...

Poesias Completas de Humberto de Campos, Opus Editora Ltda


Acampamento indígena (FSM)

Jornal de Poesia
Poesia portuguesa e brasileira

UFSC
NUPILL - Links

Fernando Pessoa
Neste site todas as pessoas do Pessoa.

Camões
Poesia portuguesa

Anel de Poesia
Poesias em língua portuguesa

Caixa de Hai Kai
Navegação aleatória

C.E.F.P..
Centro de Estudos Fernando Pessoa

Memória
Cidadania
CESEP
http://faq.at/direitoshumanos

voltar

webmaster
última atualização * 27/2/2001

Personnas -Poesia & Cidadania - Editora: Marcia E.Aquino

Hosted by www.Geocities.ws

1