Textos Selecionados

VERSOS INFAMES: A FRAGILIDADE DA FALSIFICAÇÃO

por Moacyr Scliar (trecho) .

A NECESSIDADE ATUAL DA INÚTIL POESIA

por Régis Bonvicino (trecho).

MEIO POETA

por Luís Fernando Veríssimo.

A ROTINA E A QUIMERA

por Carlos Drummond de Andrade.


VERSOS INFAMES: A FRAGILIDADE DA FALSIFICAÇÃO (trecho)

Viúva de Jorge Luís Borges processa revista que popularizou poema falso do escritor argentino.

Moacyr Scliar, Especial para a Folha de São Paulo, 17/12/95.
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Para mim, a intrigante história começa em 1987. Naquele ano fui � cidade de Rosário, Argentina, para participar de um encontro em saúde pública. Lá pelas tantas alguém distribuiu aos participantes cópias de um texto que eu aliás já tinha visto também em vitrines da cidade. Tratava-se de um poema, ou pelo menos estava escrito como se fosse um poema. O título era INSTANTES. O autor era Jorge Luís Borges (1899-1986). Pelo menos era este o nome que estava ali. Não parecia muito Borges, pelo menos não o Borges dos tigres e dos labirintos. Mas todo escritor tem o direito ao inusitado, além do que tratava-se de um impresso, e a palavra impressa se imp�e como verdadeira.
Voltando a Porto Alegre comentei o assunto no jornal ZERO HORA, transcrevendo o texto. A repercussão foi extraordinária. Como acontecera em Rosário, imediatamente surgiram cópias que eu encontrava afixadas em lugares os mais variados: casas de amigos, restaurantes, repartiç�es públicas. Ao mesmo tempo, pessoas me escreveram de Buenos Aires, contestando a autoria de INSTANTES. E o mais interessante: uma conhecida mostrou-me uma toalha de papel que havia comprado numa loja de artigos turísticos no Caribe. Ali estava o texto, desta vez sem assinatura alguma. A esta altura estava claro para mim que o nome de Borges estava sendo usado. Mas o que tinha realmente acontecido? A história só se esclareceu quando por ocasião da entrega do prêmio Juan Rulfo a Nélida Pi�on, em Guadalajara, conheci Maria Kodama. Estávamos no mesmo hotel e uma manhã, na mesa do café, ela me contou - numa espécie de desabafo - a odisséia pela qual passara.
INSTANTES não foi escrito por Borges e sim por uma norte-americana chamada Nadine Stair, foi publicado numa antologia da Bantam, e divulgado por Leo Buscaglia, autor de muitos livros de auto-ajuda. Em 1986 o texto apareceu em Buenos Aires numa revista tipo New Age, intitulada �Uno Mismo�. Daí chegou aos rádios, aos jornais e ao xerox...


A NECESSIDADE ATUAL DA INÚTIL POESIA (trecho)

Régis Bonvicino, especial para a Folha de São Paulo, 26/1/97.
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A proximidade do fim do século e também do fim do milênio não afetam, aparentemente em nada a função da poesia no quadro geral das literaturas e das culturas. A poesia não tem propriamente uma função. Ela é inútil, não se constituindo em encargo ou serviço. Sua inutilidade atravessa regimes políticos diversos, bem como diferentes economias. Regimes políticos totalitários tem, muitas vezes, o poder de explicitar a capacidade de resistência da poesia e dos poetas, mas não chegam efetivamente a alterar a função da poesia. Talvez a poesia tenha uma função no quadro das artes e da cultura: a de ser manifestação inútil (�teoria do inutensílio, de Paulo Leminski), sem presença nos dia-a-dia das pessoas, o que lhe confere liberdade e arbitrariedade. Poesia não tem valor de troca...


MEIO POETA

Luís Fernando Veríssimo, Revista de Domingo, Jornal do Brasil, 25/4/93
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No dia em que Mônica e Otávio voltaram da lua-de-mel, Mônica chegou na casa dos pais e se trancou no quarto com a mãe. Precisava contar uma coisa e não queria que o pai ouvisse.
- O Otávio é poeta, mamãe.
A mãe levou as mãos � boca.
- Minha Virgem Santíssima!
Depois perguntou:
- Como você descobriu?
- Na primeira noite. A lua estava cheia. Ele fez umas frases sobre a luz da lua no meu corpo.
- Mas você tem certeza que era poesia? Rimava?
- Não rimava, mas era poesia. Ele mesmo disse, mamãe! Eu perguntei �O que é isso?� e ele respondeu �Eu sou meio poeta�.
- Bem que seu pai desconfiou...
- Você acha que devemos contar ao papai?
- É claro. E agora.
O pai disse �Eu sabia� e determinou que chamassem Otávio para se explicar. Mônica disse que Otávio ficara de buscá-la ali depois do trabalho. Os três esperaram a chegada de Otávio. A mãe, temendo algum excesso do pai, tentou amenizar a situação:
- Ele disse que é só �meio� poeta...
O pai não disse nada. Quando soou a campainha da porta, mandou que a filha fosse para o quarto. Otávio cumprimentou os sogros efusivamente - era a primeira vez que os via depois da festa do casamento - , mas logo percebeu a frieza deles.
- O que foi? - perguntou.
- Você não nos contou que era poeta - disse o pai.
- Mas eu não...
- Não adianta negar. A Mônica nos contou. Você pensou que ela não nos contaria?
- Mas foi só um...
- Sei. Um poeminha. É assim que começa. Um versinho hoje, um versinho amanhã. Não demora você estará fazendo poemas épicos, odes a qualquer coisa, diariamente. Já vi acontecer. Acabará abandonando o emprego, roubando a mesada da minha filha, para sustentar o hábito.
- Mas eu...
- Você vai dizer que pode parar quando quiser. É o que todos dizem.
- Meu filho - interveio a mãe, aflita -, você não se dá conta do mal que a poesia pode fazer? Há quanto tempo você...
- Não interessa - interrompeu o pai - O que ele fez antes não nos interessa. Mas agora está casado. Tem responsabilidades, tem que trabalhar para manter a família. Está num ramo competitivo, não pode facilitar. Eu sei, eu sei. A poesia é tentadora. Eu mesmo, na mocidade, fiz meus sonetos...
- Eurico!
- Nunca lhe contei isto, Marta, mas fiz. Felizmente tive um pai que me orientou e parei a tempo. A Mônica foi criada sem qualquer poesia. Qualquer sugestão de métrica, nós reprimíamos. E sempre a alertamos contra os poetas.
- Será - sugeriu a mãe - que não existe um programa de reabilitação? Alguém com quem você possa se aconselhar... Mais uma vez o pai a interrompeu.
- A decisão tem que ser sua, Otávio. E tem que ser agora. Você compreende que não podemos deixar a Mônica sair desta casa, onde sempre teve toda a segurança, para viver com um poeta. Não nos dias de hoje. Faça a sua escolha. A Mônica, uma família, uma vida normal... ou a poesia.
Otávio jurou que abandonaria a poesia para sempre, a Mônica foi chamada, os dois foram para o apartamento novo, Mônica um pouco desconfiada. Otávio ouvindo a advertência, na saída: �Olhe lá, hein?�
Hoje, sempre que fala com Mônica pelo telefone, a mãe pergunta:
- E o Otávio?
- Está bem, mamãe.
- Nunca mais...
- Nunca.
�s vezes, quando a família está toda reunida, Otávio diz umas coisas que provocam troca de olhares entre os outros e a suspeita de uma recaída. Depois a Mônica assegura que aquilo não é poesia, é só o jeito dele. Mas seu Eurico e dona Marta vivem preocupados com a filha. Nas noites de lua cheia, então, dona Marta nem consegue dormir direito.


A ROTINA E A QUIMERA

Carlos Drummond de Andrade, in Passeios na Ilha, 1973.

Sempre se falou mal de funcionários, inclusive dos que passam a hora do expediente escrevinhando literatura. Não sei se esse tipo de burocrata escritor existe ainda. A racionalização do serviço público, ou o esforço por essa racionalização, trouxe modificaç�es sensíveis ao ambiente de nossas repartiç�es, e é de crer que as vocaç�es literárias manifestadas � sombra de processos se hajam ressentido desses novos métodos de trabalho. Sem embargo, não se terão estiolado de todo, tão forte é, no escritor, a necessidade de exprimir-se, dentro ou fora da rotina que lhe é importa. Se não escrever no espaço de tempo destinado � produção de ofícios, escreverá na hora do sono ou da comida, escreverá debaixo do chuveiro, na fila, ao sol, escreverá até sem papel - no interior do próprio cérebro, como os poetas prisioneiros da última guerra, que voltaram ao soneto como a uma forma que por si mesma se grava na memória.
E por que se maldizia tanto o literato-funcionário? Porque desperdiçava os minutos do seu dia, reservado aos interesses da Nação, no trato de quimeras pessoais. A Nação pagava-lhe para estudar papéis obscuros e emaranhados, ordenar casos difíceis, promover medidas úteis, ouvir com benignidade as �partes�. Em vez disso, nosso poeta afinava a lira, nosso romancista convocava suas personagens, e toca a povos o papel da repartição com palavras, fugiras e abstraç�es que em nada adiantam � sorte do público.
É bem verdade que esse público, logo em seguida, ia consolar-se das suas penas na trova do poeta ou no mundo imaginado pelo ficcionista. Mas, sem gratidão especial ao autor, ou talvez separando neste o artista do �rond-de-cuir�, para estimar o primeiro sem reabilitar o segundo.
O certo é que um e outro são inseparáveis, ou antes, este determina aquele. O emprego do Estado concede com que viver, de ordinário sem folga, e essa é condição ideal para bom número de espíritos: certa mediana que elimina os cuidados imediatos, porém não abre perspectiva de ócio absoluto. O indivíduo tem apenas a calma necessária para refletir na mediocridade de uma vida que não conhece a fome nem o fausto; sente o peso dos regulamentos, que lhe compete observar ou fazer observar; o papel barra-lhe a vista dos objetos naturais, como uma cortina parda. É então que intervém a imaginação criadora, para fazer desse papel precisamente o veículo de fuga, sorte de tapete mágico, em que o funcionário embarca, arrebatando consigo a doce ou amarga invenção, que irá maravilhar outros indivíduos, igualmente prisioneiros de outras rotinas, por este vasto mundo de obrigaç�es não escolhidas. (...)

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