Desafio a historiadores

 

JARBAS PASSARINHO



O historiador Nilton Freixinho, premiado na Academia Brasileira de Letras, nela acaba de lançar seu mais novo livro, O Sertão Arcaico do Nordeste do Brasil, uma releitura do dramático problema nacional que tem vencido sucessivas gerações sem solução senão paliativa, à espera da concretização da transferência de parte das águas do Tocantins para o São Francisco. No estudo extensivo do passado, preferiu o historiador criterioso usar o método regressivo, ou seja, reler a História ao inverso. Cita o historiador francês Marc Bloch: "O conhecimento do passado só tem importância quando nos diz alguma coisa para o presente."

Aceitando isso por princípio, é de propor-se um desafio ao historiador brasileiro que estude e interprete nossa história no decorrer das décadas de 1960 e 1970, quando a expansão tentativa do Movimento Comunista Internacional fizera desencadear nesta parte do continente, da Venezuela ao Cone Sul, as diversas lutas armadas comunistas, sem êxito exceto em Cuba, depois que Fidel, no discurso de 2 de dezembro de 1961, optou pelo comunismo. Embora nada mais modifique o passado, sustenta o historiador que o conhecimento dele é parte de um processo dinâmico "que se transforma e aperfeiçoa incessantemente". Preliminarmente, é de considerar que o Chile era um dos modelos de estabilidade política, no qual as intervenções extraconstitucionais das Forças Armadas não mais ocorriam havia muito. No Brasil, em 1945, deposto o ditador Getúlio Vargas, a Constituição de 1946 durou até 1964. Aos três países, usando Cuba como ponta de lança da União Soviética, haviam chegado as guerrilhas, visceralmente estimuladas pela guerra fria, que opunha Estados Unidos e União Soviética como as duas únicas superpotências. De um modo geral, os que foram vencidos pelas armas, especialmente no Brasil, negam a História e dizem que não houve ameaça comunista, uma forma maledicente de atribuir aos militares a disposição exclusiva de usurpar o poder civil. É um desafio fácil, porque o passado é categórico.

Outro ponto crucial está na acusação sistemática de que os comunistas só perderam a luta armada devido à tortura a que foram submetidos. Escondem que as guerrilhas fracassaram porque lhes faltou apoio popular, imprescindível no caso. Há, ademais, duas incongruências. A primeira é que os comunistas sempre torturaram. Não só Stalin. Quando os tanques soviéticos esmagaram a veleidade reformista de Nagy, na Hungria, os húngaros, ainda que comunistas, foram torturados. Joseph Kovago, no livro You Are Alone, descreve a perversidade nos cárceres e as confissões forjadas, em tudo iguais às que se deram nos expurgos de Moscou, nos anos 1935-36. Sob Kruchev - que denunciara os crimes de Stalin no famoso discurso no 20.º Congresso do PCUS, em 1956 -, os checoslovacos foram torturados no aniquilamento da Primavera de Praga.

Ninguém é santo nessa política de obter confissão sob violência. Fidel Castro acaba de dar um exemplo ilustrativo, mas é ovacionado no Brasil pelos que se dizem defensores dos direitos humanos.

A outra incongruência está na resistência das esquerdas a tratar igualmente como crimes hediondos o terrorismo e a tortura. Assim foi na Constituinte de 1987. Assim permanece sendo, a ponto de terroristas comunistas que atuaram nas guerrilhas do período da luta armada - ou seus familiares - receberem benefícios da União, como se heróis tivessem sido e, por isso, objetos de culto. Veja-se como procede a esquerda no poder, desde os mandatos de FHC, em contraste com os sacrificados na defesa do Estado, integrantes das forças de contra-insurreição ou no simples cumprimento de seus deveres profissionais, sem ligação com atividades políticas. Muitos da contra-insurreição foram mortos em combate ou em conseqüência de atos terroristas. Outros nem delas faziam parte. Eram vigilantes de bancos, seguranças de embaixadores, guarnição de carros pagadores, civis que esperavam no aeroporto do Recife o marechal Costa e Silva em visita a Pernambuco e oficiais estrangeiros cursando escolas brasileiras. Pagaram com a vida. Seus dependentes não mereceram as polpudas indenizações dadas aos descendentes dos que os mataram. A aventura militar dos comunistas inverteu as conseqüências. Os vencidos são recompensados como se vitoriosos fossem.

Se ainda militares vivos, promovidos a postos que possivelmente não atingiriam regularmente, recebendo vencimentos atrasados. Para muitos, a recompensa não à simples insubordinação, mas ao motim.

Em contraposição, como se tratam os que perderam a vida no cumprimento do dever? No máximo, uma promoção post-mortem. O Estado de S. Paulo de 22/8 traz um caso ilustrativo, referente ao soldado Kozel Filho. Sentinela do quartel do então II Exército, em São Paulo, matou-o a explosão de um carro-bomba - diz a reportagem - "num suposto ataque de guerrilheiros de esquerda jogado contra o quartel em julho de 1968". Há um estranho pudor de chamar comunistas os terroristas. O que se diz cautelosamente "suposto" é confessado. Por quem? Por exilados em Havana, vangloriando-se do ato terrorista para o livro A Esquerda Armada no Brasil, premiado em Cuba. Que oferece o Estado aos pais do soldado trucidado pelo explosivo? A pensão de R$ 330 mensais, soldo de um soldado. Compare-se com as indenizações, em regra de R$ 150 mil, que receberam os tidos como vítimas dos vencedores.

Ouvidos pelos repórteres, os pais da vítima mantiveram dignidade e respeito pelo filho. Apenas se permitiram dizer: "Veio um pouco tarde. Parece brincadeira."

Pode haver maior demonstração de que o terrorismo é premiado como bravura e só a tortura é hedionda? Eis um desafio para historiadores não facciosos.

 

Jarbas Passarinho, ex-presidente da Fundação Milton Campos, foi senador (PPB-PA) e ministro de Estado


O Estado de São Paulo - 26/08/2003

     

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