O desafio do PT

O pensador gaúcho, que já votou no PT,
diz que o partido só escapa da demagogia
se confrontar seu passado


Alexandre Oltramari

 

Nos últimos meses, o filósofo Denis Rosenfield tornou-se uma espécie de algoz intelectual do Partido dos Trabalhadores. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com doutorado pela Universidade de Paris, ele costuma distribuir críticas ácidas ao PT em artigos e livros. Autor de sete livros sobre filosofia política, quatro deles traduzidos no exterior, Rosenfield dedicou uma de suas obras, PT na Encruzilhada, à dissecação das contradições entre teoria e prática do partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – o que, na sua opinião, leva a legenda a viver da demagogia. Aos 52 anos, dez vividos entre França e México, casado, três filhos, Rosenfield mora há duas décadas em Porto Alegre, a única capital que o PT administra há catorze anos. Ali, montou seu laboratório de análise do PT nacional. "Chegamos a um momento delicado", diz. "O jogo eleitoral levou o PT a escamotear suas divergências. Agora o barril de pólvora pode explodir." A entrevista:

Veja – Como o senhor avalia o governo Lula?

Rosenfield – Tenho a impressão de que chegamos a um momento delicado. Os mercados estão calmos, mas não sei até quando ficarão assim. Hoje, as exigências do mercado estão sendo atendidas além da expectativa. O superávit primário é maior do que o registrado no governo anterior, e nem o FMI esperava tanto. A chegada do PT ao governo trouxe conseqüências para todo o entorno petista – o próprio partido e os movimentos historicamente ligados a ele, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Mas meu receio é mais agudo no caso do Movimento dos Sem-Terra (MST). Temo que, se os sem-terra mantiverem sua postura revolucionária, e tudo indica que a manterão, entremos em convulsão no campo. Entre outras coisas, isso leva à desorganização potencial do agronegócio, a grande pauta exportadora brasileira.

Veja – O momento delicado a que o senhor se refere deve-se então ao MST?

Rosenfield – O MST tem estrutura paramilitar, tem militantes organizados, que ocupam pedágios, prédios públicos. O discurso do latifúndio é só uma palavra de ordem para galvanizar setores da opinião pública que ainda têm simpatia pela causa do MST. Mas o MST não visa nem à reforma agrária nem à justiça social, que são ambas importantes e necessárias. Visa à conquista do poder. Quer uma sociedade socialista, assemelha-se a um partido, com escola de quadros, que formam lideranças voltadas aos velhos refrões comunistas. O Muro de Berlim caiu em quase todo o mundo, mas tem dificuldade de cair no Brasil. Este é o país em que ainda se faz elogio a Fidel Castro. Mas o MST, no fundo, é produto de um jogo complexo, que emana do próprio PT.

Veja – Qual é o jogo?

Rosenfield – O jogo eleitoral que levou o PT a escamotear suas divergências, produzindo agora reflexos nos movimentos ligados ao partido. Para ganhar as eleições, por razões pragmáticas, o PT percebeu que deveria fazer um movimento em direção ao centro do espectro ideológico. Fez isso para ganhar a eleição e mantém o movimento agora para conseguir governar. Foi uma virada abrupta. Num encontro nacional em 2001, em Olinda, o PT reafirmou toda a sua história programática. A crença no socialismo, o combate ao FMI e à Alca, enfim, todos os lugares-comuns que permearam a história do partido. De repente, sem aviso prévio, meses antes da eleição, o PT produziu a Carta ao Povo Brasileiro, deixando órfãos os militantes mais radicais e os movimentos sociais a ele ligados. Ora, era um documento feito por publicitários, de caráter eleitoral, ainda que esteja sendo cumprido em linhas centrais. A Carta ao Povo Brasileiro não tem relação com os princípios programáticos do partido nos últimos vinte anos. Mas todos ficaram em silêncio. Nem os radicais chiaram naquele momento. Calaram-se em nome da unidade partidária para conquistar o poder, escamoteando as divergências. A CUT entrou no jogo e mantém-se nele, correndo o risco de rachar, tal como acontece com o próprio PT. O MST, no entanto, entrou no jogo, mas está saindo. Agora, o barril de pólvora pode explodir.

Veja – O senhor quer dizer que a contradição entre passado e presente não pode mais ser ignorada pelo PT nem pelos movimentos caudatários?

Rosenfield – É preciso deixar claro que o PT vive um momento de esquizofrenia. De um lado, converteu-se à política econômica de Pedro Malan, que se traduz no superávit fiscal, na alta taxa de juros. É um prosseguimento da política de Fernando Henrique, que o PT chamava de "neoliberal". De outro, o PT, dada sua história, tem de dar satisfação às alas radicais. A esquizofrenia fica evidente na importância da visita de líderes do MST ao presidente Lula. O sem-terra que fez as embaixadinhas com uma bola na frente do presidente, no Palácio do Planalto, está indiciado criminalmente no Rio Grande do Sul. Ou seja, ora o PT afaga o grande capital, ora afaga um grupo revolucionário. Essa esquizofrenia é que faz tanto barulho, que rende editoriais, manchetes, discursos, mas, no fundo, era previsível.

Veja – Por que era previsível?

Rosenfield – Porque o PT fez uma conversão sem confissão. Converteu-se às vésperas da eleição, mas não foi ao confessionário. A confissão, no caso, é o debate de idéias. Sem o debate, o partido navega sem bússola. Isso significa que o PT está executando uma prática governamental herdada do governo anterior, mas sem pontos de referência ideológica. Por isso, tem problemas para justificar ações passadas e ações presentes. Por isso, o partido entra num processo de expulsão de parlamentares radicais. Mas observe que o PT não diz por que está agindo assim, limitando-se a falar que quer fidelidade de voto. Analisando-se a história do partido, os radicais como a senadora Heloísa Helena e o deputado Babá são coerentes com o programa do PT. Quem não é coerente é o presidente Lula. O paradoxo é que, se o governo fosse coerente, o país estaria em crise institucional.

Veja – Evitar uma crise institucional não é bom?

Rosenfield – Entre a incoerência do governo e uma situação ordeira, com transição democrática e pacífica, eu fico com a segunda opção. Mas cabe ao PT esclarecer, à sociedade e a seu público interno, a razão de sua incoerência.

Veja – Por que o PT não faz isso?

Rosenfield – Antes da eleição, o PT não fez autocrítica porque temia perder o apoio da militância aguerrida e ficar sem o discurso de que, eleito, operaria grandes mudanças. Agora, não faz a autocrítica porque colocaria em xeque toda a sua linha programática das últimas duas décadas e teria de admitir que é um partido social-democrata, como o trabalhismo inglês e a social-democracia alemã. Além disso, com a autocrítica, o PT precipitaria a cisão interna e, inevitavelmente, seria obrigado a abandonar a demagogia.

Veja – O senhor acha o PT um partido demagógico?

Rosenfield – O PT vive da demagogia. Na medida em que não implementa o projeto socialista nem revisa sua doutrina, o PT sempre poderá dizer que está no primeiro momento desse processo, seja ele qual for. Poderá sempre postergar o debate. Mas é uma estrada sem volta. Na prática, o PT é reformista. Será cada vez mais reformista.

Veja – Por que o PT derrapa tanto na área social?

Rosenfield – Além da incompetência administrativa, que leva ministros a acumular funções parecidas e ficar batendo cabeça, há uma razão ideológica. Apesar do discurso histórico, acredito que o PT não tinha uma posição clara sobre o combate aos problemas sociais, simplesmente porque sempre apostou na transformação radical da sociedade. Assim, para os petistas, os problemas seriam resolvidos pela revolução. Portanto, não havia política social. Veja o caso da prefeitura de Porto Alegre, onde o PT governa há catorze anos. Você sabia que eles não resolveram o problema dos meninos de rua?

Veja – Mas não é exagero cobrar tamanha intervenção social de uma prefeitura?

Rosenfield – Trezentos meninos de rua? Porto Alegre tem 300 meninos de rua. Não é possível resolver o problema de 300 meninos de rua em catorze anos? Isso ocorreu porque não havia política social. O PT, e Lula em particular, fez da demagogia um pretenso instrumento de transformação social. O que funcionou na campanha presidencial foi o discurso da mudança social. Até agora, não houve nenhuma mudança.

Veja – Não é cedo para fazer essa cobrança?

Rosenfield – Acho que não. Na campanha, o PT não explicou que era social-democrata. Não disse que iria reformar, em vez de revolucionar. Deveria ter feito uma proposta de mudança viável, de ações concretas. Lula, ao contrário, prometeu mundos e fundos, e esses primeiros seis meses mostram que dificilmente conseguirá cumprir as promessas. O Fome Zero, para ficar na área social, é assistencialista e muito inferior ao que existia no governo anterior. Antes, os programas, pelo menos, estabeleciam contrapartida de quem recebia os benefícios, como mandar os filhos à escola. Em vez de melhorar o que existia, o PT resolveu reinventar a roda. Deu nisso.

Veja – Existe algo de bom no governo ou no PT?

Rosenfield – Acho que a prática governamental está na linha correta, embora, nisso, o PT esteja repetindo a política de FHC. A diferença é que, antes, havia riqueza na discussão de idéias. Hoje, não existe mais. O governo atual discute com os jurássicos, com concepções atrasadas, está falando para dentro. Em vez disso, teria de discutir com a opinião pública. Mostrar que sua prática é social-democrata. Mostrar que tem limitações e precisa pensar essa política no contexto brasileiro. Mas o PT não faz isso. Faz demagogia. Isso acirra os conflitos.

Veja – O senhor parece analisar o partido de Lula com uma carga de amargura.

Rosenfield – Não é amargura. Nunca fui filiado a nenhum partido, mas fui eleitor do PT e o ajudei na prefeitura de Porto Alegre. Trabalhei com o atual ministro Tarso Genro e o apoiei nas candidaturas a prefeito e a governador. Mas, com a eleição do atual ministro Olívio Dutra para o governo em 1998, o PT gaúcho radicalizou. Recebeu guerrilheiros da Colômbia no palácio, cruzou os braços para as invasões de terra e até festejou a destruição de uma unidade de pesquisa da Monsanto pelo ativista francês José Bové. No governo de Olívio Dutra, Bové foi tratado como herói. Na França, Bové foi condenado e preso. Isso foi demais para mim.

Veja – O senhor diz que o PT é reformista e social-democrata. Quais as semelhanças entre o PSDB de Fernando Henrique e o PT de Lula?

Rosenfield – São partidos irmãos. O PSDB não foi suficientemente social-democrata no governo. De seus oito anos no poder, o PSDB só imprimiu tons social-democratas nos dois últimos anos de gestão. Já o PT venceu a eleição opondo-se à social-democracia e, agora, repete a política que antes renegara e, por incrível que pareça, segue renegando no plano retórico, dizendo que é diferente. O problema é que, no momento em que reconhecer que é uma legenda social-democrata, o PT terá de revisar sua doutrina, convocar um congresso e enfrentar discussões entre demagogos, revolucionários e reformistas. Terá de discutir com o partido irmão, o PSDB. Evidentemente, o PT não quer isso. Logo, vai manter a demagogia, alternando afagos ao MST e ao FMI, ao Hugo Chávez e ao encontro de Davos, ao Fidel Castro e à Casa Branca.

Veja – A eleição do PT, em vez de clarear o quadro partidário, confundiu-o ainda mais?

Rosenfield – O Brasil vive uma situação única em termos internacionais. Na Inglaterra, os trabalhistas se opõem aos conservadores. Na França, a briga é entre socialistas e gaullistas. Na Alemanha, entre social-democratas e democrata-cristãos. Na Itália, o processo é idêntico. Ou seja, há uma divisão entre dois partidos que não reivindicam o mesmo ideário e que, em termos tradicionais, retomam as categorias de direita e esquerda. No Brasil, temos dois partidos social-democratas, PT e PSDB, que disputam o poder na centro-esquerda. A diferença é que um diz seu nome e o outro não. Direita, por sua vez, é nome feio. Sobrou só o PFL, ou nem isso, pois os pefelistas cresceram à sombra do Estado, vivendo de favores fisiológicos, com dificuldades imensas de adotar uma linha liberal. A rigor, no sentido clássico, não há um partido verdadeiramente liberal no Brasil. Então, à direita, não há legenda coerente, doutrinária. À esquerda, há duas. Isso confunde o quadro partidário.

Veja – Há espaço para um novo partido importante?

Rosenfield – Talvez para a reacomodação de forças, à esquerda e à direita. Na esquerda, com o expurgo dos radicais, o PT deve adotar uma linha cada vez mais reformista. Já o PSDB, que representa a social-democracia assumida, terá de abrir espaço na luta pelo poder. Também vai ter de fazer uma revisão conceitual. E, se o governo Lula der certo, como ficarão os tucanos?

Veja – O governo Lula tem chances de dar certo?

Rosenfield – Acho que sim. Assim como os partidos social-democratas europeus, o PT tem boa interlocução com os sindicatos, normalmente muito barulhentos e intransigentes. Isso FHC nunca teve. Uma das dificuldades que ele enfrentou, aliás, foi ser social-democrata sem base sindical social-democrata. Outro fator importante é a ausência de oposição. De um lado, temos o PSDB, que é um partido desorientado. De outro, há o PFL, que, francamente, não tem nenhuma tradição oposicionista. É um partido que se diz liberal, mas não valoriza as formas de organização da sociedade independente do Estado, baseadas no mérito e na responsabilidade individual. Logo, as principais resistências ao governo devem vir dos interesses corporativos, exatamente como já estamos vendo acontecer. Já o cenário internacional é imprevisível. Se houver pouca turbulência lá fora, claro, as chances serão maiores. A vinda de capitais, contudo, vai depender da capacidade de o PT pacificar as relações políticas internas. No fundo, esse é o grande desafio do governo.


Veja, 23 de julho de 2003


 

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