Para sair da selva

Sociólogo diz que o Brasil só tem futuro se fizer uma reforma
profunda na Previdência e promover uma faxina na legislação trabalhista

Monica Weinberg

 

Está em mãos petistas uma proposta de reforma na Previdência Social de autoria do sociólogo José Pastore. Há três semanas, atendendo a um pedido do deputado federal Jair Meneguelli, Pastore enviou o estudo em que prevê a criação de um cartão magnético que reuniria todas as informações sobre o cidadão, de RG e carteira de motorista a qualquer benefício social a que tenha direito. A idéia é fazer todo mundo contribuir, mesmo que seja com uma quantia pequena, e ter um meio eficaz de fiscalizar isso. Professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e autor da mais importante pesquisa sobre mobilidade social no Brasil, Pastore é referência na área trabalhista e por isso é freqüentemente convidado a opinar sobre políticas adotadas nesse campo. Aos 67 anos, 44 deles dedicados ao estudo das questões do trabalho, é um crítico da legislação trabalhista por considerá-la rígida demais e assim funcionar como um estímulo à informalidade. "Fico com medo quando escuto o PT falar em ampliação dos direitos trabalhistas", diz. Pastore deu a seguinte entrevista a VEJA.  

Veja – O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e o deputado José Dirceu têm reafirmado que o governo petista fará a reforma da Previdência. Desta vez vai?
Pastore –
Espero que sim. O modelo previdenciário brasileiro faliu. Basta ver os números referentes ao ano de 2002. Recolhidas as contribuições, o governo só conseguirá honrar os benefícios dos aposentados se arrumar mais 70 bilhões de reais. O volume astronômico de recursos precisa ser levantado no mercado, o que pressiona para cima a taxa de juros. Dá-se o processo perverso. A elevação de juros afugenta o investidor, que adia projetos empresariais ou fecha alguns já existentes. A redução no ritmo de investimentos limita a geração de empregos. Como as contribuições previdenciárias são cobradas de quem trabalha, quando cai o emprego cai também a arrecadação da Previdência, o que aumenta o rombo do sistema. É um processo circular. Se não virar o jogo, o Brasil continuará fragilizado. Acho que essa lição o PT já aprendeu. Minha dúvida diz respeito à eficácia das soluções que eliminem o problema.

Veja – Qual é seu temor, exatamente?
Pastore –
O PT acreditava e propagava a idéia de que o Estado detinha recursos abundantes, bem como o poder de financiar os projetos sociais de seu interesse. Quem não se lembra de ter escutado lideranças bem-intencionadas do partido defendendo a adoção de uma reforma agrária que distribua terra para todos que estejam na fila? Era esse Estado poderoso que o partido ambicionava comandar. Com a vitória eleitoral, o petista descobriu que o Estado não pode dispor livremente dos recursos que administra porque o orçamento público é praticamente todo carimbado. Resultado: o PT tomou um banho de realidade. E isso, na minha opinião, é uma grande lição. Mas será que o novo governo não vai cair na tentação de financiar seus sonhos extraindo mais dinheiro da iniciativa privada? Será que o PT acredita na sinceridade dos empresários quando dizem ser incapazes de pagar impostos ou aumentar os direitos trabalhistas?

Veja – Qual é sua opinião?
Pastore –
As indicações que recebi até agora sugerem que não se pode ter essa lição como assimilada, pelo menos não definitivamente. Vozes petistas ainda falam com entusiasmo na idéia de reduzir a jornada de trabalho sem rebaixar salários, como se o empresariado tivesse folga de caixa e pudesse ser mais generoso na hora de pagar os contracheques. Ora, quando escuto que os direitos trabalhistas vão ser ampliados, passo até mal. Será que os defensores dessa tese não percebem que o trabalhador perde quando discussões desse tipo começam? Outro dia estava discutindo com um petista amigo meu que sustentava a ampliação dos direitos trabalhistas. Comentei com ele que os petistas não gostam da idéia de reduzir direitos, mas não se importam em provocar demissão.

Veja – Como assim?
Pastore – Toda vez que o custo de manter um emprego aumenta, as contratações arrefecem e o desemprego cresce. O inverso é também verdadeiro. Derrubando o custo do empregado, acelera-se o ritmo das contratações. Os petistas não querem flexibilizar direitos sob o argumento de que a iniciativa cria a figura do trabalhador de segunda classe. Mas e hoje, o que temos? Temos um modelo com trabalhadores de primeira classe, aqueles com direito aos benefícios da lei trabalhista, e os de quinta classe, que vivem na informalidade. É razoável ser contra a segunda classe, idéia que repilo, mas tolerar a quinta classe, a dos excluídos?

Veja – Esse raciocínio sugere que os direitos trabalhistas são um malefício para a sociedade.
Pastore –
Não se trata disso. Os direitos trabalhistas assegurados por lei de forma generalizada para todas as categorias profissionais são, sim, um malefício. Prova é que as grandes empresas, as mais rentáveis, ajustam com os sindicatos dos trabalhadores cláusulas muito mais generosas do que as que prega a Consolidação das Leis do Trabalho, a famosa CLT. E o que fazem os demais, que não possuem recursos para dar o que é "legal"? Contratam na informalidade. O Brasil possui mais de 1.000 dispositivos trabalhistas impressos na Constituição e na CLT, o que coloca nossa legislação entre as mais rigorosas do mundo. Era esperado que ela desse ampla proteção ao trabalhador, só que isso está longe de acontecer. Apenas 40% dos brasileiros trabalham no mercado formal, com carteira assinada e acesso aos benefícios. Os outros 60%, 42 milhões de pessoas, estão desprotegidos porque são informais. A legislação trabalhista brasileira não garante para a maioria proteção mínima nos quatro eventos mais críticos da vida: a falta de trabalho, a perda da saúde, a velhice e a morte. Isso porque temos leis de má qualidade e injustas.

Veja – Qual é o ponto fraco da lei?
Pastore – Ela é tão inflexível que cria uma situação de tudo ou nada no mercado do trabalho. Ou o empregador contrata uma pessoa e dá a ela todo o pacote de benefícios exigido por lei ou não pode contratar na legalidade. O problema é que o pacote é caro demais. Por mês, um funcionário custa para uma empresa brasileira o seu salário e mais um valor equivalente que o patrão paga pelos benefícios. O efeito disso é perverso porque desestimula o emprego de carteira assinada e o trabalhador é jogado no mercado informal sem direito nenhum. O que defendo é uma solução em que caiba a negociação entre o empregado e o empregador, como ocorre nos Estados Unidos. Praticamente todos os americanos trabalham com carteira assinada porque o preço disso para o patrão é baixíssimo. Com exceção da previdência e do seguro-desemprego, ali as partes negociam quase tudo, até duração de férias e licença-maternidade.

Veja – Com uma taxa alta de desemprego no Brasil, uma livre negociação não faria despencar o nível das condições de trabalho?
Pastore – Quando há excesso de mão-de-obra no mercado, é claro que o empregador fica senhor da situação e os salários caem. É um cenário muito ruim para o lado do empregado, mas o equívoco é achar que com uma legislação trabalhista rígida isso vai ser diferente. Essa é uma crença que faz parte da cultura brasileira do garantismo legal. Só vale o que está escrito. Aí você pega a lei e vai enchendo de dispositivos, no pressuposto de que a realidade acompanhará essa bela idéia. Em 1988, a Constituição acolheu um monte de direitos trabalhistas na intenção de ampliar a proteção aos empregados, e o resultado foi desastroso. Naquela época, 55% dos brasileiros tinham carteira assinada. Hoje são apenas um terço, ou pouco mais do que isso. O texto constitucional engessa tanto o patrão que ele vê cada vez mais vantagens em contratar à margem da lei. Conclusão: a legislação não só não garante nada como sua inflexibilidade acaba estimulando a informalidade.  

Veja – Como uma legislação feita para proteger piora as condições de trabalho?
Pastore – Um exemplo é o preço altíssimo de uma demissão no Brasil. Quanto mais tempo de casa um funcionário tem, maior é o valor da indenização que lhe é devida. Quer dizer que as empresas que têm como política investir em seu quadro de funcionários vão ser as grandes penalizadas. As maiores beneficiadas serão as empresas que rodam seu pessoal de três em três meses e que por isso pagam muito pouco. Contratar e demitir na formalidade é tão oneroso que os empresários optam muitas vezes por colocar uma máquina de cortar cana-de-açúcar no lugar de um monte de funcionários para livrar-se da dor de cabeça e dos gastos. Nas contas do patrão é um investimento de longo prazo mais seguro. Então, a rigidez da lei não só alimenta a informalidade como até leva ao desemprego.

Veja – A informalidade é sempre ruim?
Pastore –
Um monte de gente por aí acha que emprego informal é coisa de brasileiro criativo que realiza grandes projetos pessoais sem precisar de patrão. Há quem diga que somos o que a Itália era na década de 60, quando o trabalho informal dominava e o país crescia a olhos vistos. Só que naquela época os italianos já tinham uma renda alta e podiam pagar um convênio de saúde e uma previdência privada do próprio bolso, o que no Brasil está longe de acontecer. O mercado informal brasileiro é uma selva onde predomina a pobreza e as pessoas não têm nem o mínimo, que é a cobertura da Previdência Social, porque não pagam o imposto. Isso resulta, de um lado, em precárias condições de vida para o trabalhador e, do outro, num ônus seriíssimo para o país. O rombo na Previdência só aumenta e a informalidade é seu principal alimento. São 42 milhões de pessoas que, se forem atropeladas ou contraírem tuberculose, podem usar a rede pública de saúde sem contribuir com 1 centavo.

Veja – Não dá para aumentar a contribuição com uma fiscalização mais rígida?
Pastore –
É muito difícil. Na informalidade estão o biscateiro e o vendedor de garapa que não têm um tostão no bolso. Depois há os jovens menores de 16 anos que também não podem pagar porque estão desobedecendo à lei que os proíbe de trabalhar. Os que têm mais de 60 anos passaram do tempo legal para contribuir. Uma parcela de cerca de 10 milhões de brasileiros, empregada por empresas sem contrato legal, poderia até pagar o imposto. O problema é que é praticamente impossível flagrar a situação porque as próprias empresas não são legalizadas. Estamos falando de informalidades à brasileira, como a atividade da senhora que prepara e serve quentinhas para os operários numa obra e contrata outros funcionários. Sua empresa é invisível aos olhos da lei. Esse quadro é crônico e difícil de arrumar porque temos uma legislação trabalhista que empurra cada vez mais brasileiros para esse tipo de trabalho informal.

Veja – E os autônomos, não é mais fácil atraí-los para a formalidade?
Pastore –
São cerca de 10 milhões de autônomos informais no Brasil e eles preferem manter-se assim porque é caro e burocrático regularizar sua situação. Só para a Previdência, precisam pagar 20% do que recebem. É de esperar que fujam da lei como o diabo da cruz. O Ministério da Previdência tem feito campanhas importantes para fisgar esses autônomos. Em 2000, trouxe 1,5 milhão de novos contribuintes, um número bastante significativo. Aí os técnicos resolveram analisar quem eram os novatos e descobriram que haviam atraído basicamente dois grupos: um de empregadas domésticas, que pretendiam engravidar e queriam ter direito à licença-maternidade para depois parar de contribuir, e outro de pessoas perto dos 60 anos mirando a aposentadoria. Os autônomos que poderiam contribuir a longo prazo continuaram sem pagar. O esforço resultou em despesa certa com receita incerta.

Veja – Por que tantos conflitos entre patrão e empregado param na Justiça do Trabalho?
Pastore – A nossa legislação é a grande instigadora de conflitos porque é detalhista demais. Qualquer deslize vai parar no tribunal. O resultado são 2 milhões de processos rolando na Justiça trabalhista. No Japão, onde a força de trabalho tem tamanho semelhante à brasileira, são apenas 1.500 processos. Nos Estados Unidos, o número de conflitos que chegam aos tribunais é tão irrisório que os americanos nem têm uma justiça especializada.

Veja – Como é possível melhorar a qualidade e o número de postos de trabalho no Brasil?
Pastore – Bom emprego é gerado a partir de três bases fundamentais: crescimento econômico, educação e legislação trabalhista. Se faltar um ingrediente no coquetel, ele não funciona. Olhe a comparação entre americanos e europeus. Sempre que o PIB dos Estados Unidos cresce 1%, o número de postos de trabalho aumenta 0,5%. Na Europa, o mesmo PIB de 1% tem um impacto mínimo, de 0,16% no mercado. E estamos falando de dois oásis de excelente nível educacional. Então, o que difere a Europa dos Estados Unidos? O terceiro elemento do coquetel – a legislação trabalhista. Um bom exemplo é o trabalho noturno. Qualquer cidade americana tem um elétrico comércio 24 horas. Os europeus preferem fechar as portas cedo e garantir uma jornada mais curta. O resultado é que a inflexibilidade européia acaba sendo desfavorável para o próprio trabalhador. Basta ver a enxurrada de novos empregos criados pelo simples fato de os americanos não terem nenhuma restrição a trabalhar à noite.

Veja – O Brasil está acompanhando as modernas transformações do mundo do trabalho?
Pastore –
Está. Em todos os países, inclusive no Brasil, o mundo do emprego está diminuindo, mas o do trabalho está aumentando. Encolhe o número de pessoas que saem de casa com uma pastinha, batem cartão de ponto e ficam num escritório até o fim do expediente. Hoje, há um monte de gente que realiza projetos para várias empresas ao mesmo tempo sem sair de casa. O trabalho é intermitente e por tarefa. Esse formato tende a prevalecer porque retira a importância de uma superestrutura física, o que implica altos custos fixos. Pegue um banco como exemplo. Está alojado em um prédio que só é usado oito horas por dia e nas outras dezesseis esse capital fantástico fica ocioso. O mundo moderno vai reduzir ao máximo as grandes estruturas. O Brasil segue esse fluxo.


VEJA - 11 de dezembro de 2002


 

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