Entrevista com Olavo de Carvalho

por Isaura Pessoa de Moura


   

Minerva: Qual a for�a de um fil�sofo dentro de uma sociedade profundamente massificada?

Olavo: � for�a de um pequeno comprimido de tranq�ilizante no corpo de um neurast�nico: n�o vai cur�-lo, mas vai lhe dar um breve momento de calma e lucidez no qual ele poder� tomar decis�es que mudem sua vida. Se a sociedade souber aproveitar a presen�a do fil�sofo, melhor para ela. Se n�o, o fil�sofo, sem recriminar ningu�m, ir� calmamente para o seu canto ensinar a si mesmo o que os outros n�o quiseram aprender.

Minerva: Qual a import�ncia de Arist�teles para o conhecimento humano?

Olavo: � dupla: a import�ncia do que j� nos deu, a import�ncia do que ainda pode nos dar. A primeira consiste das dezenas de ci�ncias que ele fundou - a anatomia comparada, a embriologia comparada, a l�gica, a hist�ria da filosofia, a teoria liter�ria, a psicologia, etc. - e das concep��es metaf�sicas que inspiraram a Idade M�dia Crist�.

A segunda consiste, sobretudo, da vis�o que ele tem de uma unidade org�nica do conhecimento - um ideal que o sec. XX perseguiu em v�o, mas para cuja realiza��o a filosofia de Arist�teles pode dar ainda uma ajuda substantiva.

Minerva: Seu livro O Imbecil Coletivo, est� indo para a 3� edi��o. Qual o alcance filos�fico de sua cr�tica � intelligentzia dominante?

Olavo: Toda manifesta��o cultural tem por fundo alguma tese filos�fica que pode permanecer impl�cita e inconsciente. A t�cnica que emprego em O Imbecil Coletivo � explicitar as teses subentendidas na produ��o cultural brasileira, e em seguida examin�-las criticamente. Em muitos casos, torna-se claro que a �nica for�a delas residia no fato de permanecerem escondidas: uma vez trazidas � luz, sua absurdidade salta aos olhos. �s vezes, basta revelar a origem hist�rica de uma cren�a dominante para que ela fique instantaneamente desmoralizada. Um exemplo � a cren�a de que tudo na vida � pol�tico, de que a pol�tica � uma dimens�o onipresente, de que todo ato humano encerra uma significa��o pol�tica e de que portanto tudo deve ser julgado politicamente. Essa cren�a, que tanta gente na esquerda brasileira professa de maneira ostensiva ou velada, tem origem nas doutrinas de Carl Schmitt, te�rico do estado Nazista.

Basta revelar isto, e a pessoa que subscreveu a tese de maneira ing�nua vai se sentir tentada, se for honesta, a question�-la criticamente. Meu livro n�o tem s� o prop�sito de denunciar um estado de fato, mas de desentranhar as ra�zes intelectuais de certas cren�as e h�bitos que deprimem e enfraquecem a intelig�ncia humana.

Minerva: A seu ver, qual a ajuda que a religi�o pode dar a uma compreens�o global do mundo?

Olavo: Que � uma religi�o? � a encena��o ritual de um conjunto de mensagens simb�licas de import�ncia medular para a conserva��o do estatuto humano do homem. As regras morais fazem parte desse grande teatro, do qual devemos participar com sinceridade e devo��o, porque ele � a �nica fonte de vida e sa�de para o esp�rito humano. Mesmo quando as normas de uma religi�o parecem estranhas ou absurdas quando vistas desde uma outra cultura ou desde a ingenuidade fingida do c�tico, elas devem ser aceitas de cora��o, porque elas s� entregam seu sentido profundo a quem as ama. Am�-las n�o quer dizer obedec�-las de maneira mec�nica e burra, mas simplesmente n�o ter contra elas uma atitude de suspeita, de mal�cia. A sabedoria que reside no n�cleo das religi�es n�o se entrega ao olhar malicioso. � isto que Cristo quer dizer quando pede que nos tornemos como crian�as. A mal�cia, no entanto, � o mandamento n�mero um da intelectualidade moderna, que nasce com Voltaire.

O intelectual moderno, cheio de suspic�cia e medo, teme ser enganado pelas mensagens de Mois�s, de Cristo, de Maom�, do Buda, e acaba por se deixar ludibriar por mentirosos baratos com Voltaire e Marx, que o arrastam a aventuras pol�ticas sangrentas e sem sentido. Veja voc�, a Revolu��o Francesa matou, em um ano, dez vezes mais gente do que a Inquisi��o tinha matado em seis s�culos. Pergunto eu: quem � o ing�nuo e quem � o esperto? Aquele que cr� em Buda e Cristo ou aquele que cr� em revolu��es? Apesar disso, na imagina��o moderna, � a Inquisi��o que continua a constar como a imagem mesma da viol�ncia. Especialmente no Brasil, e particularmente na USP, tem havido uma epidemia de estudos sobre Inquisi��o, com farta cobertura jornal�stica, dando a impress�o de que o fen�meno inquisitorial est� nas ra�zes mesmas da viol�ncia brasileira, o que � uma besteira descomunal. Em tr�s s�culos , a Inquisi��o, em toda a Am�rica e n�o s� no Brasil, n�o executou mais de trezentas pessoas: uma centena por s�culo, uma v�tima por ano. � uma cifra ridiculamente pequena, se comparada ao n�mero de pessoas que os �ndios matavam na mesma �poca ou � taxa de homic�dios de qualquer munic�pio da Baixada Fluminense hoje em dia.

Minerva: Como o senhor v� o panorama filos�fico brasileiro atual?

Olavo: H� dois panoramas: o vis�vel e o invis�vel. O primeiro � constitu�do de uma grotesca pantomima em que os med�ocres se bajulam uns aos outros para dar ao p�blico a impress�o de que s�o importantes. O invis�vel constitui-se do esfor�o sincero de dezenas de estudiosos, de ontem e de hoje, alguns perfeitamente geniais, dos quais o p�blico nunca ouve falar. Para mim, a not�cia mais importante da d�cada, em mat�ria de estudos filos�ficos no Brasil, foi a edi��o das obras completas de Plat�o traduzidas por Carlos Alberto Nunes e publicadas pela Universidade Federal do Par�. Em qualquer pa�s do mundo, isso seria um acontecimento seminal (para usar uma palavra da moda). No Brasil, foi solenemente ignorado, enquanto um jornal de S�o Paulo gastava doze p�ginas de uma edi��o especial para elogiar um livreco do dr. Jos� Arthur Gianotti, um sujeito cujo �nico talento filos�fico � ser amigo do presidente.

Como se v�, h� dois mundos filos�ficos no Brasil: um vis�vel, outro invis�vel, como as duas faces da Lua, tudo o que � mais interessante est� no lado invis�vel.

Minerva: Num momento como este, como fazer com que o fil�sofo chegue at� uma juventude que n�o tem sequer perspectivas de sobreviv�ncia econ�mica?

Olavo: A mensagem do fil�sofo aos jovens estudantes, no que diz respeito � dificuldade financeira, � simples, quanto pior ficar a sua condi��o econ�mica, mais se apeguem � sua voca��o intelectual. N�o cedam � press�o de um mundo que quer matar em voc�s o esp�rito � for�a de atorment�-los com problemas financeiros. O mundo, no sentido b�blico do termo (isto �, a sociedade mundana), s� respeita quem o despreza. Na Primeira Guerra Mundial, o f�sico Werner Heisenberg, ent�o um adolescente, numa cidade reduzida � mis�ria pelo cerco e pelos bombardeios, se escondia no por�o de uma igreja para ler Plat�o e discutir com seus amigos a metaf�sica de Malebranche.

Foram os anos decisivos de sua forma��o: ele poderia t�-los perdido, aguardando melhores dias para estudar. Mas nada, neste mundo, pode vencer a determina��o do homem que � fiel � voca��o espiritual. N�o se intimidem, n�o desistam. Quanto mais pobres voc�s ficarem, mais se dediquem aos estudos. A porcaria reinante n�o prevalecer� sobre a sinceridade dos seus esfor�os. Digo isto com a experi�ncia de quem, ao longo de mais de duas d�cadas de pobreza, com mulher e filhos para sustentar, jamais deixou de estudar um �nico dia, aproveitando cada momento livre e abdicando de toda sorte de viagens e divertimentos. Nunca esperei que minha situa��o melhorasse para depois estudar, e garanto: seja teimoso, e um dia o mundo desiste de tentar dominar voc� pela fome.

Minerva: Qual a liga��o entre a arte e a filosofia?

Olavo: A arte, � na ordem do tempo, a primeira e mais b�sica das formas de conhecimento. � a s�ntese imaginativa, que precede toda elabora��o conceptual. Logo, a forma��o art�stica � a primeira que se deve dar a crian�a ou a um jovem. Isso inclui o desenho geom�trico, como forma de prepara��o para as matem�ticas (um ponto que aqui em Recife o prof. Jarbas Maciel tem ressaltado com muita pertin�ncia), o desenho de observa��o das formas vivas, como prepara��o para as ci�ncias naturais, a m�sica, o teatro e as artes narrativas, como prepara��o para a ci�ncia hist�rica, as artes orat�rias como prepara��o para a filosofia, etc.

Sem cultura art�stica, nada feito. A imagina��o faz a ponte entre o sens�vel e o intelig�vel, j� dizia Arist�teles. Sem uma imagina��o treinada e apta, o pensamento conceptual fica boiando no vazio como mero formalismo e o sujeito nunca adquire o senso da verdade no pensamento.

As rela��es entre arte e filosofia podem ser abordadas tamb�m de um ponto de vista mais profundo, metaf�sico, como faz Schelling. Mas, no momento, basta falar do aspecto pedag�gico.

Minerva: O que o senhor diz da proposta de Jos� Arthur Gianotti ocupar o lugar de Darcy Ribeiro na Academia Brasileira de Letras?

Olavo: � coerente: p�e o oco no lugar do vazio. Mas o Darcy tinha pelo menos talento verbal, era engra�ado e simp�tico. Era um brilho f�cil e superficial, mas era um brilho. Gianotti � a encarna��o mesma da opacidade. Se eu fosse votar, escolheria Bruno Tolentino, Franklin de Oliveira ou Ant�nio Olinto.

Minerva: O senhor disse que as pessoas j� n�o procuram na filosofia uma sabedoria, uma orienta��o para viver. Ent�o o que procuram nela?

Olavo: Procuram aquilo que o ensino em geral oferece: uma profiss�o e um poder de a��o pol�tica - tudo aquilo que, tomado como ess�ncia em vez de mero acidente, pode levar o homem para longe da concentra��o interior necess�ria � busca da sabedoria. A filosofia torna-se assim uma misosofia - o horror � sabedoria.  


Publicado em Minerva - Informe Filos�fico da UFPE . N� 5, maio de 97.


     

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