Murro em ponta de faca

 

Não é fácil defender o liberalismo na América latina. Os princípios da filosofia liberal nunca foram aplicados por aqui, mas, curiosamente, eles têm sido sistematicamente utilizados por dois tipos de pessoas muito presentes nestas plagas: os políticos matreiros e os ignorantes "bem-intencionados". Ainda que estes dois tipos sejam movidos por diferentes objetivos, o resultado de suas ações é idêntico: a manutenção do subdesenvolvimento.
 
Não é de estranhar, no entanto, que isso ocorra. A compreensão dos princípios liberais exige alguma sofisticação intelectual, além de uma certa dose de auto-estima, produtos raros abaixo do Rio Grande.
 
Uma das bases do liberalismo é a defesa da individualidade em oposição ao coletivismo. O que isso significa? De maneira simplificada, acreditar mais no indivíduo do que no governo. Eis aqui um ponto que causa arrepio nos países latinos. Individualidade por aqui é livremente confundida com individualismo, o que é um grande erro. Enquanto o primeiro conceito tem a ver com o respeito à singularidade de cada indivíduo, o segundo está relacionado com o egoísmo.
 
Essa confusão faz com que a filosofia liberal seja identificada como defensora de práticas egoístas, o que não corresponde à verdade. O que o liberalismo não aceita é que o governo se julgue no direito de esmagar os indivíduos em nome de conceitos abstratos e confusos, como o bem comum.
 
Na Alemanha nazista, o governo exterminava seus opositores em nome da segurança do Estado. O mesmo ocorria na União Soviética. Ambas eram sociedades coletivistas, pois colocavam o Estado acima do indivíduo. Vejam, portanto, que o coletivismo é um conceito que se aplica tanto a regimes identificados como de extrema direita quanto de extrema esquerda. Em ambos os casos, matar pessoas se justificava pela busca dessa estranha figura chamada bem comum. O que era o bem comum? Nada mais do que a manutenção do poder a qualquer preço.
 
No Brasil, a presença do Estado manifesta-se pela enorme porção do Produto Interno Bruto que fica nas mãos do governo. Pelas últimas informações, mais de 40% de toda atividade desenvolvida anualmente no País vai para as mãos do governo em forma de impostos. O que os brasileiros recebem de volta? Como vai a área de saúde? Que tal a educação? E os transportes, vão bem? O que o leitor acha da segurança que nos é oferecida?
 
Isto nos leva a um segundo ponto que é básico na filosofia liberal, mas igualmente incompreendido: o papel do Estado.
 
Quem nada lê sobre liberalismo, mas se considera apto a discuti-lo, afirma que o liberalismo prega a inexistência do governo. Não há um só texto liberal que defenda uma maluquice dessas. Confunde-se aqui liberalismo com anarquismo.
 
O que o liberalismo defende é um governo forte, mas basicamente voltado para a manutenção da ordem e a garantia do cumprimento das leis. Governo forte neste caso não significa autoritário. O liberalismo, aliás, considera que a única forma de governo aceitável é a democracia, pois todo governo autoritário e fechado é coletivista. Ser forte, portanto, significa ter poderes e instrumentos legais para garantir que as regras democraticamente estabelecidas sejam cumpridas.
 
Outro conceito precioso para o liberalismo é o direito à propriedade. Esse ponto também causa frisson na América Latina. Por aqui, o direito à propriedade geralmente é visto como garantia de privilégios ilegalmente adquiridos. Vejam o caso do Brasil. Em um país onde a casa do próprio presidente da República é invadida e os invasores são libertados sem maiores conseqüências o respeito à propriedade não deve ser um conceito de fácil entendimento para a população.
 
É pouco provável que o liberalismo algum dia prevaleça na América Latina, uma vez que a auto-estima dos latinos é muito baixa, o que dificulta a valorização da individualidade.
 
Além disso, o alto nível de despreparo acadêmico e intelectual da população privilegia a existência de classes políticas cuja finalidade é manter um Estado grande para que os esquemas aos quais estamos familiarizados por aqui continuem existindo e haja postos suficientes para empregar seus familiares e apaniguados.
 
Para completar este triste quadro, a falta de uma estrutura regulatória bem definida e estável mantém os países desta área sempre às voltas com alterações bruscas que causam estresse generalizado e invariavelmente acabam em desastre social e econômico.
 
Vejam, portanto, que a América Latina está muito distante do liberalismo, apesar de o discurso contra essa filosofia continuar prosperando na região.
 
Felizmente alguns continuam defendendo seus princípios, mesmo que isto seja equivalente a dar murros em ponta de faca. Afinal, a esperança é sempre a última que morre.

 


Emílio Carlos Dantas Costa
Emílio Carlos Dantas Costa é mestre em Finanças pela FGV-SP (com Program for International Management na Universidade de Michigan), ex-participante do Programa Minerva, em Washington, D.C. e professor do Ibmec e-mail: [email protected]

Jornal da Tarde, 17 de julho de 2003



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