BIOGRAFIA REVÊ CONTRADIÇÕES DE JUNG

 

Sai no Brasil, pela Record, o livro do biógrafo Frank McLynn, que pinta com cores fortes um novo retrato do profeta do inconsciente, até então visto como vítima dos dogmas de Freud - tirano, egoísta, interesseiro, racista e brigão são alguns dos adjetivos que a obra lhe atribui

CARLOS HAAG



Freud não explica, mas agradece. Carl Gustav Jung (Record, 641 págs., R$ 50,00), biografia de Frank McLynn, faz um novo retrato - nada agradável - do profeta do inconsciente, por anos visto como pobre vítima do dogmatismo freudiano. "Ele era um homem egoísta que se interessava apenas em sua salvação, atacando Freud porque o via como rival à sua ambição de fundar o próprio movimento psicanalítico", revela o autor. Não é só. O místico e sonhador Jung também era um tirano que se casou por dinheiro, obrigou a mulher a suportar seus inúmeros casos (e envolveu-a num ménage-à-trois), seduziu pacientes, brigou com todos os amigos, glorificou o nazismo e odiava negros, índios e judeus.

Mas será que canalhas não podem ter boas idéias? "Há uma relação estreita entre vida e obra, iniciada já em sua formação familiar - ele era filho de um pastor intelectual e de uma mulher cheia de superstições - e no seu país de origem, a Suíça", responde McLynn. Para o autor, o legado extremado dos pais teria dado ao jovem visões deformadas sobre a religiosidade e as mulheres. "Era uma tensão criativa entre ciência e misticismo que transparece em suas teorias e em alguns de seus conceitos, como, por exemplo, as idéias de anima e animus (o lado masculino da mulher e vice-versa), ou as categorias de extroversão e introversão", explica.

Não sem razão, acredita o pesquisador, no centro de suas teorizações estava o self, ponto central da consciência, cuja busca, por meio da individuação ( amadurecimento que leva à totalidade), postulava Jung, deveria ser a meta da vida. O país do relógio-cuco - xenófobo, conservador e ligado ao dinheiro, lembra o autor - igualmente contribuiu para a construção da persona junguiana. "Não se pode entendê-lo sem se compreender o problema que aflige a Suíça, nação-estado dividida em três línguas, a falta de identidade, igualmente o grande drama de Jung ao longo de sua vida", analisa.

Jekyll e Hyde - O próprio pensador reconhecia que fazia conviver, em si, o ponderado Jekyll e o selvagem Hyde. "Jung admitia uma cesura em sua personalidade , que dividia em nº 1 (científica) e nº 2 (mística e interessada nos fenômenos paranormais), sempre em constante tensão", observa. "Por isso, ele lutou para que o mundo aceitasse suas crenças - uma mistura de racionalidade e ocultismo - como criações de um cientista, que, longe de meras especulações, podiam ser demonstráveis empiricamente", fala.

"Esse, no entanto, não é o caso, pois não há evidências científicas em suas teorizações que devem ser aceitas apenas como sistema metafísico, ainda que ele desejasse o oposto disso, sempre em busca de reconhecimento por parte de instituições que considerava dignas de respeito", avalia McLynn. Sintomaticamente, seus primeiros passos em direção a uma carreira teórica foram dados com uma tese de doutoramento que tinha por título Psicologia e Patologia dos Fenômenos Ditos Ocultos (1902), em que estudava uma médium espírita, vendo nas manifestações sobrenaturais personificações do psiquismo da própria mulher. Infelizmente, o seu objeto de estudo era uma notória farsante.

Foi, aliás, esse estudo exótico que o levou a interessar-se pela incipiente psicanálise. "Quando optei pela psiquiatria, ao fim de meu curso, meu professor não aceitou: ela não era nada no início do século", lembrou Jung numa entrevista, pouco antes de morrer. A fagulha do interesse foi dada pela leitura de um texto de introdução a um livro de Kraft-Ebing, que dizia: "Devido à peculiaridade do assunto e de seu estado incompleto de desenvolvimento, os tratados de psiquiatria são marcados por um caráter subjetivo." Era exatamente o que ele buscava e não tardou a encontrar um professor.

Em 1907, após uma troca anterior de cartas entusiasmadas, Jung conheceu pessoalmente Freud. A primeira conversa entre os dois durou nada menos do que 13 horas e deixou-os em total encantamento um pelo outro. Por razões diversas, é claro. "Jung era uma espécie de lobo solitário, que sempre queria estar à frente de tudo o que participava, enquanto Freud viu no jovem suíço de boa cepa a chance de encontrar o mensageiro de que necessitava para levar suas descobertas aos gentios, em suma, via-o como o apóstolo de sua nova religião", diz McLynn. Nas palavras do pai da psicanálise: "Jung é o Josué destinado a explorar a terra prometida da psicanálise, que eu, como Moisés, só poderei contemplar ao longe."

Príncipe-herdeiro - O entusiasmo freudiano não decresceu e, no ano seguinte ao encontro, passou a chamar o suíço de "o príncipe-herdeiro da psiquiatria", uma união de pai e filho. "Em verdade, a importância de Jung para Freud decorria do fato de ele ser um burguês suíço, como a dizer aos seus detratores que a psicanálise não era uma seita de judeus vienenses, mas que poderia abrigar cidadãos respeitáveis, acima de qualquer suspeita, o que indicaria a aplicação universal de suas idéias", revela o biógrafo.

"Só que Jung nunca pensou em aceitar esse papel inferior e desejava, ao contrário, ser ele o fundador do próprio movimento psicanalítico: essa é a verdadeira base do conflito que afastaria os dois homens", conta McLynn. Mas, antes disso, o jovem suíço criou a Sociedade Freud e organizou, em 1908, o primeiro Congresso Psicanalítico Internacional, quando, por sua sugestão, foi criada a Associação Psicanalítica Internacional, de que foi nomeado presidente, por intercessão do mentor vienense. O pomo da discórdia fora oferecido a Jung.

"Com a convivência, foi ficando claro que a distribuição de papéis entre eles não iria funcionar e, embora a explicação oficial do rompimento entre os dois resuma-se a desavenças entre metodologias teóricas - em especial, na definição de libido - o que houve foi um conflito de personalidades e ambições", diz. "Algo que é observável pela correspondência de Jung, que deixa claro que o mais importante não é entender como eles romperam, mas, ao contrário, perguntar como eles, algum dia, conseguiram ser amigos."


 

"Jung não tinha as respostas certas", diz biógrafo

Apesar de reconhecer a validade das questões junguianas, pesquisador aponta seus equívocos

CARLOS HAAG

Os exércitos já estavam se agrupando, cada um de um lado do campo, e só faltava o motivo para que a guerra irrompesse. Esse veio sob a forma da libido. "Jung, prometa-me não esquecer nunca a teoria sexual, pois é preciso fazer dela um dogma, uma fortaleza inexpugnável contra a maré de lama negra, contra o ocultismo", rogou Freud. Foi como pedir à raposa para tomar conta do galinheiro psicanalítico. Era um duelo entre o casto que colocou o impulso sexual no centro do inconsciente e o libertino que achava isso um exagero. Em 1913, romperam.

O baque foi forte. "Jung estava definitivamente só e o esforço e a energia gastos para essa quebra precipitaram-no numa quase psicose, que chamo de "interlúdio esquizofrênico", em que ele esteve às portas da loucura, conversando com criaturas imaginárias de chifres e garras como se fossem reais", conta McLynn. Nessa temporada no inferno, atacado por todos os lados, foi encontrando os elementos para suas teorias sobre sonhos, símbolos e o inconsciente.

"É digno de nota que tenha conseguido retornar dessa viagem, embora seus críticos gostem de dizer que, em verdade, ele nunca se recuperou e as excentricidades de suas teorizações na velhice revelavam que ainda era meio louco, um absurdo", condena o biógrafo. No caso dos escritos insólitos da maturidade - em geral, incompreensíveis e trazendo conceitos exóticos como a sincronicidade e o uso da astrologia e do ocultismo - McLynn, aliás, não acredita em grandes mudanças de rumo na personalidade de Jung.

"Ainda que essa virada de um período `nova era' seja perceptível, Jung apenas assumiu mais abertamente um papel que sempre quis ter, embora insistisse em seu desejo de ser um cientista: o de profeta místico", afirma. "Por isso, o junguianismo é menos frutífero que o freudismo, não obstante seja comum pensar-se esse último como um sistema fechado, um erro normal se observarmos apenas os dogmas e não a metodologia", avisa.

"As teorias de Jung são circulares como a teologia católica, na medida que se sabe qual vai ser a resposta para qualquer pergunta, já que há um tipo de catecismo modelo", completa. Louvado por encontrar significados para os símbolos, segundo McLynn, o pensador caiu vítima de sua descoberta. "É de desapontar que o sistema junguiano coloque os símbolos em função de um contexto e mesmo um objeto simples como uma árvore acaba por ter tantos significados - isso na leitura de Jung e sem falar na de seus seguidores em que a coisa se multiplica - que acaba por não ter qualquer significado", analisa. "A situação toda é muito confusa e, por esses excessos, todo o sistema simbólico cai por terra e não significa mais nada."

Repressão - O mesmo vale para o seu conceito de cultura que, em tese, deveria opor-se ao pessimismo do seu equivalente freudiano, baseado na idéia de que toda civilização - e as conseqüentes expressões culturais - não passava de uma farsa, uma máscara para esconder o sentido primeiro da cultura, a repressão da sexualidade. "Ao contrário de Freud, cujo conceito de cultura, embora mórbido e negativo, ao menos era expresso com lucidez, em Jung tudo está disperso e não encontramos, mesmo procurando em várias obras e conferências, uma visão una e clara de uma teoria junguiana da cultura", observa.

"O que há é um amálgama de ideologia völkisch (adotada pelos nazistas) e um curioso neomaltusianismo, que via o excesso de população como a raiz dos males da civilização." O tom soou familiar? Pois é, a lama da lagoa junguiana borbulha quando se fala em nazismo e Hitler, que o psicanalista apoiava e admirava (sem contar o elogio ao ducce: "Mussolini é um homem original e de muito bom gosto"), a ponto de Thomas Mann balançar o seu self, acusando-o de ter, com sua pessoa e suas teorias, glorificado o nazismo e suas neuroses. O veredito do autor de A Montanha Mágica: "É um oportunista de direita."

"Para Jung, o nacional-socialismo - que ele chamava de 'fenômeno maravilhoso' - dava à sua teoria do inconsciente coletivo uma base empírica e ele foi irresponsável por deixar-se levar pelos seus interesses pessoais, vendo os nazistas como um mero reforço de suas teorias, sem investigar a fundo quem eles eram", acusa o biógrafo. "Ele viu a ascensão de Hitler como uma manifestação do inconsciente coletivo germânico - Jung postulava que o seu conceito funcionaria na Alemanha -, já que acreditava, como os nazistas, numa teoria de que o ideal de deuses alemães, com pureza racial, não fora destruído pelo cristianismo e permanecia espalhado na mente do povo", continua.

Deve ter soado como música - o Crepúsculo dos Deuses, talvez? - para as orelhas junguianas os discursos em que Hitler afirmava que essas forças ainda estavam vivas no Reich milenar tedesco. Já o seu anti-semitismo teria outras razões, não menos "nobres". "Para Jung, judeu era igual a Freud, ao racionalismo judeu - que ele abominava - e à visão pessimista de cultura que ele combatia; em resumo, sua aversão aos judeus decorria de sua ira contra tudo o que, ele acreditava, esse pensamento semita indicava: uma forma insatisfatória de ver o mundo e a odiada psicanálise freudiana", explica.

Ainda não basta? Mulheres, preparem-se. "Jung era, em geral, misógino e via as mulheres com um misto de encantamento - era um mulherengo terrível - e desprezo, quando se tratava de aceitá-las em funções tidas como masculinas, como a intelectualidade", revela. "Ainda assim, em vez de afastá-las, vivia cercado por um rebanho de admiradoras, que substituíam os amigos, com os quais tinha brigado."

Sexo - Sem mencionar o seu comportamento brutal com algumas pacientes. "Ele, muitas vezes, as manipulou para fazer sexo e há mesmo aqueles que, como Sabine Spielrein, acabaram virando suas amantes." McLynn, no entanto, acha impossível avaliar o quanto mexeu com Jung o fato de ter sofrido um abuso homossexual - por um amigo do pai - na juventude. "Nunca saberemos o que houve ao certo."

O que sobrou de Carl Gustav Jung? "Não era uma pessoa agradável, mas é preciso reconhecer que, como pensador, fez perguntas importantes, embora não desse as respostas certas; mas são questões fundamentais e ainda permanecem relevantes."


 

Personalidade e idéias o separaram de Freud

Divergências quanto às bases sexuais da neurose afastaram os dois pensadores

LUIZ ZANIN ORICCHIO

Em 1909, Jung acompanhou Freud em viagem aos Estados Unidos. Os dois, mas Freud em especial, iam com a missão de difundir aquela doutrina tão européia pelo Novo Mundo. No tombadilho do navio, enquanto saboreava um dos 20 havanas que fumava por dia, Freud disse distraidamente a Jung: "Eles não sabem, mas estamos lhes levando a peste."

A peste, claro, era a psicanálise. Freud alimentava a ilusão de que um conjunto de idéias de fundo trágico, que descrevia o homem como um estranho na própria casa - sem muita noção do que faz ou diz, sem nenhuma vocação para a felicidade, nu e só no mundo -, poderia ter algum futuro na meca do progresso tecnológico e da happiness como objetivo de vida. Não se conhece a resposta de Jung à boutade de Freud. Sabe-se perfeitamente o que ocorreu depois. A psicanálise foi desfigurada nos EUA e acabou virando uma técnica de auto-ajuda para a classe média alta de Nova York.

Alguns anos depois dessa viagem, Jung afastou-se de Freud. Até então, os dois cultivavam um relacionamento muito próximo - uma amizade que se estendeu de 1907 a 1912. Freud tinha interesse em mantê-la. A psicanálise havia sido inventada por um homem só, um desbravador solitário que teve de enfrentar o descrédito da classe médica e, em seguida, os preconceitos de uma Europa vitoriana para afirmar suas idéias. Com essas teses polêmicas sendo aos poucos assimiladas pela cultura da época, um grupo de seguidores formou-se em torno de Freud. Seus participantes, como ele próprio, eram judeus. Quando foi criada a Sociedade Internacional de Psicanálise, Freud lutou para que seu presidente fosse um não-judeu. Ele achava, com razão, que outra frente de luta contra a nova doutrina tenderia a classificá-la como "ciência judaica".

O nome do suíço Carl Gustav Jung caiu do céu. Freud sempre teve necessidade de um interlocutor científico. Nos primeiros anos, quem cumpriu esse papel foi um médico de Berlim, Wilhelm Fliess. Os dois trocaram intensa correspondência científica, que documenta, ainda que só conheçamos as cartas de Freud, a fase heróica do nascimento da psicanálise. Mas os dois terminaram por brigar, seguiram caminhos distintos e nunca mais se falaram.

Jung, de certa forma, foi um substituto ideal para Fliess. Suíço, 20 anos mais moço que Freud, tinha sólido conhecimento em psiquiatria, mas também uma cultura geral daquelas que só se encontravam nos europeus da belle époque. Eram enciclopedistas. Moviam-se de uma área a outra do saber com a maior sem-cerimônia.

Mas a associação entre os dois estava destinada a enfrentar áreas de fricção. O que os separou, ao que se sabe, não foram apenas questões pessoais. Eram ambos de personalidade forte e Freud não primava exatamente pelo espírito democrático, pelo menos no interior da seara psicanalítica. Jung tinha idéias próprias e, a partir de certo ponto, deixou de escondê-las. O ponto de ruptura foi a discordância quanto às bases sexuais da neurose. Para Freud, tratava-se de dogma de fé, que Jung fez questão de colocar em dúvida em seu Wandlungen und Symbole der Libido, questionando não só esse, mas vários postulados da psicanálise. Sua posição na internacional psicanalítica tornou-se insustentável e renunciou em 1914.

Na verdade, Jung já trabalhava havia muito fora dos domínios da psicanálise - e foi com conceitos próprios que fundou a sua disciplina, a psicologia analítica. Criou uma tipologia particular (extrovertidos e introvertidos) e destacou quatro diferentes funções da mente - pensamento, sentimento, sensação e intuição. A prevalência de um deles sobre os outros determinaria o tipo de personalidade do indivíduo. Jung forjou também a idéia de um inconsciente coletivo, que funcionaria segundo os arcanos da humanidade, comunicando às impressões pessoais algo de profundo e primitivo, parte de um patrimônio comum da espécie. Aprofundou-se nas simbologias herdadas dos antigos, como a dos quatro elementos, ar, água, fogo e terra. Explorou o domínio das religiões e descobriu na figura oriental da mandala a aspiração do indivíduo pela integração completa de sua personalidade. Sua evolução por esse caminho místico mostra que a parceria com Freud, materialista empedernido, sempre tivera seus dias contados.

Até hoje há discordância sobre o valor científico ou curativo das teorias de Jung. No entanto, suas aplicações, no campo das artes e não apenas nele, às vezes parecem bastante interessantes. Basta lembrar o trabalho que Nise da Silveira faz com seus internos de Engenho de Dentro. A chamada "arte bruta", de valor terapêutico segundo as idéias de Jung, permitiu o descobrimento de talentos indiscutíveis como Fernando Diniz. Essa aplicação brasileira de Jung está documentada no genial Imagens do Incosciente, de Leon Hirszman.

Outro cineasta, Federico Fellini, dizia que Freud talvez fosse mais dotado que Jung, como escritor e cientista. Mas, continuava Fellini, o rigor de Freud o incomodava e mesmo o esmagava com sua competência e segurança. Jung era como um amigo, um companheiro de viagem. Em suas palavras: "Freud quer explicar quem somos; Jung abre as portas do inconsciente e deixa que descubramos sozinhos." Nem sempre as idéias precisam ser rigorosamente verdadeiras para funcionar; às vezes, é melhor que sejam simplesmente estimulantes.

 


Publicado em O Estado de São Paulo - 27/09/98


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