Seqüestro da infância
Carlos Alberto Di Franco
A sociedade assiste, atônita, a uma surpreendente patologia comportamental: o seqüestro da infância e a supressão forçada da
inocência. O fenômeno, estimulado por certos programas da televisão
aberta, foi desnudado pelo sociólogo norte-americano Neil Postman em seu livro
O Desaparecimento da Infância.
A infância, de fato, está desaparecendo como fase natural da vida humana. Já não vemos crianças entretidas em brincadeiras que
faziam parte da paisagem urbana das nossas cidades. A imagem, tão própria dessa fase da vida, foi sendo substituída pela cena de
meninas de 4 anos dançando com gingados "eróticos" sobre o gargalo de uma garrafa. Desenhos animados, marca de uma
passado não tão distante, foram sendo substituídos pelo requebro da Feiticeira, guindada à condição de ídolo e tiazinha das crianças
e adolescentes. Com o apoio das próprias mães, fascinadas com a perspectiva de um bom cachê, inúmeras crianças estão sendo
"prematuramente condenadas a uma vida `adulta' e sórdida". Privadas da infância, elas estão se comportando, vestindo,
consumindo e falando como adultos. A inocência infantil está sendo impiedosamente banida pela indústria do entretenimento.
Inúmeras causas têm sido levantadas para explicar o preocupante desaparecimento da natural fronteira entre a infância e
a vida adulta. É difícil acreditar que apenas diferenças sociais, níveis
de renda ou quaisquer explicações socioeconômicas sejam suficientes para entender essa deformação social. Na verdade, o
aprendizado por etapas, que só se adquire na família, nos livros e nas escolas, foi substituído pelo "aprendizado" instantâneo e
moralmente insensível da televisão.
Atualmente, não obstante as teóricas angústias do ministro da Justiça, José Gregori, em qualquer horário as crianças têm
acesso aos piores quadros de violência e degradação. Hoje, graças ao impacto da TV, qualquer criança sabe mais sobre sexo, violência
e aberrações do que qualquer adulto de um passado não tão remoto. Não é preciso ser psicólogo para que se possam prever as
distorções afetivas, psíquicas e emocionais dessa perversa iniciação precoce. Por isso, a multiplicação de descobertas de
redes de pedofilia não deve surpreender ninguém. Trata-se, na verdade, das conseqüências criminosas da escalada de erotização
infantil promovida por alguns programas da televisão. O veneno contra a infância vai sendo pouco a pouco instilado
por inúmeros programas de auditório. Assistimos a um verdadeiro aliciamento infantil.
Reproduzo uma carta, permeada de precoce amargura, encaminhada à redação de uma revista semanal por uma menina de
13 anos. Contava ela que aos 11 anos passava dia e noite diante da televisão. "Aprendi, desde então, a ver tudo com malícia e, em
conseqüência, amadureci antes do que devia. Que país é este, que nos passa a
irresponsabilidade de uma promiscuidade sem fim?" A carta é o grito de revolta de alguém que teve a infância roubada pela
aética guerra de audiência das emissoras de televisão.
As campanhas de prevenção da aids e da gravidez precoce batem de frente com inúmeros programas vespertinos que fazem da
exaltação das fantasias eróticas uma alavanca de audiência. A
iniciação sexual precoce, o abuso sexual e a prostituição infantil,
que, cada vez mais, ocupam espaço no nosso noticiário, são,
insisto, o resultado da cultura da promiscuidade disseminada pela
irresponsabilidade da mídia eletrônica.
Fala-se muito, e com razão, da corrupção que castiga a
sociedade. Mas já não é possível ocultar a raiz do câncer que,
lentamente, vai tomando conta do organismo social: a crise ética e
a falta de limites do negócio do entretenimento. É preciso repensar
os caminhos da TV brasileira. O telespectador não quer, por óbvio,
uma TV de água benta. Quer uma programação de qualidade. Mas
a qualidade não se esgota na competência técnica. Exige também
responsabilidade social. A televisão brasileira precisa receber um
choque de responsabilidade ética.
Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo para Editores e professor de Ética
Jornalística, é
representante da Faculdade de Comunicação da
Universidade de Navarra no Brasil E-mail:
[email protected]
O Estado de São
Paulo, 7 de agosto de 2000
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