Estava
realisada a grande descoberta. Já não se fazia mais mister,
como na antiguidade, recorrer ao poder reflector dos discos de aço
polido. O engenho humano havia resolvido o grande problema. O homem podia
mirar-se á vontade, vendo sua imagem fielmente reflectida na prancha
de vidro emmoldurada em elegantes caixilios. Desde então o fabrico
de espelhos constituiu rendosa industria tal a generalisação
do seu emprego. Não ha lar, por mais modesto, onde se não
encontre esse utensilio havido como indispensavel. Nos palacios mais sumptuosos,
como nos casebres mais humildes, lá está o espelho ostentado
luxuosamente nas portas dos ricos guarda-casacas, ou pendentes das paredes
em singelos quadrinhos forrados de papelão.
Ninguem
dispensa o seu uso : do mais pobre ao mais rico, do sabio ao insciente,
do pária ao magnata. Ambos os sexos o consideram como absolutamente
necessario. Sahir á rua sem consultal-o no amanho da gravata, no
arranjo do cabello, na disposição geral do fato, no polimento
do calçado é falta imperdoavel que a nossa elite seria incapaz
de praticar. Quanto ás moças, é mais facil uma beata
napolitana passar por algum altar sem persignar-se, que as senhorinhas
do seculo defrontarem com espelhos sem dar um toque no cabello e no vestuario,
sem correr um olhar de inspecção em seu porte e nas linhas
geraes de seu plastico. O espelho é tido em tal estima por ellas,
que, além de não dispensal-o em todos os commodos da casa,
trazem-no, invariavelmente, comsigo em bolsas ou carteiras elegantes afim
de consultal-o a cada instante e a todos os momentos.
No
entanto, cumpre notar, ha um outro espelho, que não é fructo
do engenho humano, mas constitue a mais preciosa das faculdades com que
Deus houve por bem, em seu amor, dotar a todos os seus filhos afim de que
se reflectisse nelles a divina paternidade assegurando-lhes, ao mesmo tempo,
o meio certo de marcharem triumphantes na conquista de um glorioso porvir
: é a consciencia.
Assim
como o espelho reflecte o nosso exterior, a consciencia reflecte o nosso
interior. Vemos através della a imagem perfeita do nosso
Espirito como vemos no espelho a imagem real do nosso semblante. O espelho
dá conta de nossa physionomia, de nosso rosto, de nosso plastico.
A consciencia nos revela a alma, o caracter, os sentimentos mais intimos
e reconditos. Ambos – espelho e consciencia – prestam-se ao mesmo fim :
corrigir as linhas da harmonia, reparar os senões, compor, embellezar
– o espelho, ao corpo, a consciencia, ao Espirito. Ambos teem a mesma funcção
: reflectir com justeza, pondo deante de nosso proprio juizo e criterio,
o aspecto, a figura exacta do nosso physico e de nosso moral, a forma externa
e a interna de nosso ser.
Ora,
assim sendo, não será extranhavel estimarmos tanto o espelho
de vidro, fragil e quebradiço como a mesma materia que reflecte,
desdenhando a consciencia, essa faculdade maravilhosa que reproduz a divina
imagem a cuja semelhança fomos creados ? Não será
uma insania curarmos, com tanto zelo, do corpo que perece, olvidando o
Espirito que permanece ? Si não sahimos á rua com o cabello
em desalinho, com o fato amarfanhado, com os sapatos despolidos, como,
então, ousamos expor aos olhos de nossos maiores, que nos observam
de cima, a alma coberta de miseros andrajos e immundas farandulagens ?
Si consultamos o espelho no que respeita á belleza do corpo porque
não consultar a consciencia no que concerne á belleza do
Espirito ? Valerá, acaso, aquelle mais do que este ? Si recorremos
diariamente, a cada hora mesmo, ao concurso do espelho para adornar o nosso
physico, porque não agir assim, appellando para a consciencia constantemente
afim de tornar integro e bello o nosso caracter ? Si obedecemos aos reflexos
do espelho corrigindo todas as falhas que elle accusa em nosso exterior,
porque não fazer outro tanto obedecendo a consciencia sempre que
ella accusa, intimamente, as falhas de nosso interior ? Como nos affligimos
com os reparos do corpo, desse corpo que de dia a dia, a despeito de todo
o nosso esforço em conserval-o, declina, esmaece e periclita, e
não nos incommodamos com o aperfeiçoamento do Espirito, sede
da inteiligencia e dos sentimentos ? Trocaremos, então, a endumentaria
do corpo pela endumentaria da alma, attendendo aos reclamos daquelle e
despresando os rogos e clamores desta ?
É
admiravel que o homem se mire tantas vezes no espelho de vidro e não
se habitue a usar com a mesma perseverança e assiduidade no espelho
da alma, a consciencia, essa faculdade que elle traz comsigo, que faz parte
integrante de si mesmo, de sua estructura moral de modo que della não
se poderá separar ainda mesmo que o quizesse !
Não
condemnamos as moças porque desejam ser bellas. Essa aspiração
é natural, é intrinseca na especie constituindo incentivo
para o progresso. O que lamentamos profundamente é o estrabismo
da mocidade buscando o bello «exterior» com menoscabo do bello
«interior». Lamentamos, sim, porque a belleza é como
a saude : vem de dentro para fora.
Diz
a tradição que Maria, mãe de Jesus, foi um
peregrino typo de belleza. Cremos piamente nessa tradição
; sim, cremos, porque podemos ver, positivamente, através das virtudes
excelsas que exornam o seu caracter de mulher perfeita, o reflexo de uma
belleza sem exemplo nos fastos da historia feminina. Si no interior tudo
era harmonia, tudo era doçura, encanto e bondade, como o exterior
não havia de objectivar taes dotes em rasgos e traços de
belleza ?
Sem
deixarmos, portanto, de nos olhar por fora, olhemo-nos também por
dentro. Façamos uso dos dois espelhos.
* * *
(Revista
Internacional do Espiritismo, Anno V, n. 9, outubro de 1929, pp. 276-7.
Reproduzido, em ortografia modernizada, em Em Torno do Mestre, 4a.
ed, Rio, FEB, s.d., pp. 93-6.)