Os Dois Espelhos

Pedro Camargo (Vinícius)


Um dos objectos cujo uso está mais vulgarisado na sociedade é, sem duvida, o espelho. Sua invenção data do seculo XIII quando, então, usava-se forrar a parte posterior do vidro com laminas de metal. Mais tarde, pelo século XVI, a pratica havia ensinado que estanhando-se as laminas de vidro na parte posterior, a face anterior reflectia perfeitamente a imagem que se collocava em frente.

Estava realisada a grande descoberta. Já não se fazia mais mister, como na antiguidade, recorrer ao poder reflector dos discos de aço polido. O engenho humano havia resolvido o grande problema. O homem podia mirar-se á vontade, vendo sua imagem fielmente reflectida na prancha de vidro emmoldurada em elegantes caixilios. Desde então o fabrico de espelhos constituiu rendosa industria tal a generalisação do seu emprego. Não ha lar, por mais modesto, onde se não encontre esse utensilio havido como indispensavel. Nos palacios mais sumptuosos, como nos casebres mais humildes, lá está o espelho ostentado luxuosamente nas portas dos ricos guarda-casacas, ou pendentes das paredes em singelos quadrinhos forrados de papelão.

Ninguem dispensa o seu uso : do mais pobre ao mais rico, do sabio ao insciente, do pária ao magnata. Ambos os sexos o consideram como absolutamente necessario. Sahir á rua sem consultal-o no amanho da gravata, no arranjo do cabello, na disposição geral do fato, no polimento do calçado é falta imperdoavel que a nossa elite seria incapaz de praticar. Quanto ás moças, é mais facil uma beata napolitana passar por algum altar sem persignar-se, que as senhorinhas do seculo defrontarem com espelhos sem dar um toque no cabello e no vestuario, sem correr um olhar de inspecção em seu porte e nas linhas geraes de seu plastico. O espelho é tido em tal estima por ellas, que, além de não dispensal-o em todos os commodos da casa, trazem-no, invariavelmente, comsigo em bolsas ou carteiras elegantes afim de consultal-o a cada instante e a todos os momentos.

No entanto, cumpre notar, ha um outro espelho, que não é fructo do engenho humano, mas constitue a mais preciosa das faculdades com que Deus houve por bem, em seu amor, dotar a todos os seus filhos afim de que se reflectisse nelles a divina paternidade assegurando-lhes, ao mesmo tempo, o meio certo de marcharem triumphantes na conquista de um glorioso porvir : é a consciencia.

Assim como o espelho reflecte o nosso exterior, a consciencia reflecte o nosso interior. Vemos através della a imagem perfeita do nosso Espirito como vemos no espelho a imagem real do nosso semblante. O espelho dá conta de nossa physionomia, de nosso rosto, de nosso plastico. A consciencia nos revela a alma, o caracter, os sentimentos mais intimos e reconditos. Ambos – espelho e consciencia – prestam-se ao mesmo fim : corrigir as linhas da harmonia, reparar os senões, compor, embellezar – o espelho, ao corpo, a consciencia, ao Espirito. Ambos teem a mesma funcção : reflectir com justeza, pondo deante de nosso proprio juizo e criterio, o aspecto, a figura exacta do nosso physico e de nosso moral, a forma externa e a interna de nosso ser.

Ora, assim sendo, não será extranhavel estimarmos tanto o espelho de vidro, fragil e quebradiço como a mesma materia que reflecte, desdenhando a consciencia, essa faculdade maravilhosa que reproduz a divina imagem a cuja semelhança fomos creados ? Não será uma insania curarmos, com tanto zelo, do corpo que perece, olvidando o Espirito que permanece ? Si não sahimos á rua com o cabello em desalinho, com o fato amarfanhado, com os sapatos despolidos, como, então, ousamos expor aos olhos de nossos maiores, que nos observam de cima, a alma coberta de miseros andrajos e immundas farandulagens ? Si consultamos o espelho no que respeita á belleza do corpo porque não consultar a consciencia no que concerne á belleza do Espirito ? Valerá, acaso, aquelle mais do que este ? Si recorremos diariamente, a cada hora mesmo, ao concurso do espelho para adornar o nosso physico, porque não agir assim, appellando para a consciencia constantemente afim de tornar integro e bello o nosso caracter ? Si obedecemos aos reflexos do espelho corrigindo todas as falhas que elle accusa em nosso exterior, porque não fazer outro tanto obedecendo a consciencia sempre que ella accusa, intimamente, as falhas de nosso interior ? Como nos affligimos com os reparos do corpo, desse corpo que de dia a dia, a despeito de todo o nosso esforço em conserval-o, declina, esmaece e periclita, e não nos incommodamos com o aperfeiçoamento do Espirito, sede da inteiligencia e dos sentimentos ? Trocaremos, então, a endumentaria do corpo pela endumentaria da alma, attendendo aos reclamos daquelle e despresando os rogos e clamores desta ?

É admiravel que o homem se mire tantas vezes no espelho de vidro e não se habitue a usar com a mesma perseverança e assiduidade no espelho da alma, a consciencia, essa faculdade que elle traz comsigo, que faz parte integrante de si mesmo, de sua estructura moral de modo que della não se poderá separar ainda mesmo que o quizesse !

Não condemnamos as moças porque desejam ser bellas. Essa aspiração é natural, é intrinseca na especie constituindo incentivo para o progresso. O que lamentamos profundamente é o estrabismo da mocidade buscando o bello «exterior» com menoscabo do bello «interior». Lamentamos, sim, porque a belleza é como a saude : vem de dentro para fora.

Diz a tradição que Maria, mãe de Jesus, foi um peregrino typo de belleza. Cremos piamente nessa tradição ; sim, cremos, porque podemos ver, positivamente, através das virtudes excelsas que exornam o seu caracter de mulher perfeita, o reflexo de uma belleza sem exemplo nos fastos da historia feminina. Si no interior tudo era harmonia, tudo era doçura, encanto e bondade, como o exterior não havia de objectivar taes dotes em rasgos e traços de belleza ?

Sem deixarmos, portanto, de nos olhar por fora, olhemo-nos também por dentro. Façamos uso dos dois espelhos.

* * *

(Revista Internacional do Espiritismo, Anno V, n. 9, outubro de 1929, pp. 276-7. Reproduzido, em ortografia modernizada, em Em Torno do Mestre, 4a. ed, Rio, FEB, s.d., pp. 93-6.)


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