Pequena autobiografia de Francisco Cândido Xavier –
talvez a única existente –, que preparou, a pedido de Manuel Quintão, para a
introdução de Parnaso
de Além-Túmulo, seu primeiro livro, cuja primeira edição é de 1932. Transcrita
da 8a edição, Rio, FEB, 1955, pp. 21-26.
(Clique aqui para ver foto do
jovem Chico, reproduzida na p. 21 do texto.)
Nasci
em Pedro Leopoldo, Minas, em 1910. E até aqui, julgo que os meus atos perante a
sociedade da minha terra são expressões do pensamento de uma alma sincera e
leal, que acima de tudo ama a verdade; e creio mesmo que todos os que me
conhecem podem dar testemunho da minha vida repleta de árduas dificuldades, e
mesmo de sofrimentos.
Filho
de um lar muito pobre, órfão de mãe aos cinco anos, tenho experimentado toda a
classe de aborrecimentos na vida e não venho ao campo da publicidade para fazer
um nome, porque
a
dor há muito já me convenceu da inutilidade das bagatelas que são ainda tão
estimadas neste mundo.
E,
se decidi escrever estas modestas palavras no limiar deste livro, é apenas com
o intuito de elucidar o leitor, quanto à sua formação.
Começarei
por dizer-lhe que sempre tive o mais pronunciado pendor para a literatura;
constantemente, a melhor boa vontade animou-me para o estudo. Mas, estudar
como? Matriculando-me, quando contava oito anos, num grupo escolar, pude chegar
até ao fim do curso primário, estudando apenas uma pequena parte do dia e
trabalhando numa fábrica de tecidos, das quinze horas às duas da manhã; cheguei
quase a adoecer com um regime tão rigoroso; porém, essa situação modificou-se [21] em 1923, quando então consegui um emprego
no comércio, com um salário diminuto, onde o serviço dura das sete às vinte
horas, mas onde o trabalho é menos rude, prolongando-se esta minha situação até
os dias da atualidade.
Nunca
pude aprender senão alguns rudimentos de aritmética, história e vernáculo, como
o são as lições das escolas primárias. É verdade que, em casa, sempre estudei o
que pude, mas meu pai era completamente avesso à minha vocação para as letras,
e muitas vezes tive o desprazer de ver os meus livros e revistas queimados.
Jamais
tive autores prediletos; aprazem-me todas as leituras e mesmo nunca pude
estudar estilos dos outros, por diferençar muito pouco essas questões. Também o
meio em que tenho vivido foi sempre árido, para mim, neste ponto. Os meus
familiares não estimulavam, como verdadeiramente não podem, os meus desejos de
estudar, sempre a braços, como eu, com uma vida de múltiplos trabalhos e
obrigações e nunca se me ofereceu ocasião de conviver com os intelectuais da
minha terra.
O
meu ambiente, pois, foi sempre alheio à literatura; ambiente de pobreza, de
desconforto, de penosos deveres, sobrecarregado de trabalhos para angariar o
pão cotidiano, onde se não pode pensar em letras.
Assim
têm-se passado os dias sem que eu tenha podido, até hoje, realizar as minhas
esperanças.
Prosseguindo
nas minhas explicações, devo esclarecer que minha família era católica e eu não
podia escapar aos sentimentos dos meus. Fui pois criado com as teorias da
igreja, freqüentando-a mesmo com amor, desde os tempos de criança; quando ia às
aulas de catecismo era para mim um prazer.
Até
1927, todos nós não admitíamos outras verdades além das proclamadas pelo
Catolicismo; mas, eis que uma das minhas irmãs, em Maio do ano referido, foi
acometida de terrível obsessão; a medicina foi impotente para conceder-lhe uma
pequenina melhora, sequer. Vários
dias consecutivos foram,
para nossa casa, horas de amargos padecimentos morais. Foi quando decidimos
solicitar o auxílio
de um distinto amigo, espírita convicto, o Sr. José [22] Hermínio Perácio, que caridosamente se
prontificou a ajudar-nos com a sua boa vontade e o seu esforço. Verdadeiro
discípulo do Evangelho, ofereceu-nos até a sua residência, bem distante da
nossa, junto à sua família, onde então, num ambiente totalmente modificado,.
poderia ela estudar as bases da doutrina espírita, orientando-se quanto aos
seus deveres, desenvolvendo, simultaneamente, as suas faculdades mediúnicas.
Aí, sob os seus caridosos cuidados e da sua exma. esposa D. Cármen Pena
Perácio, médium dotada de raras faculdades, minha irmã hauria,, para nosso
benefício, os ensinamentos sublimes da formosa doutrina dos mensageiros divinos;foi
nesse ambiente onde imperavam os sentimentos cristãos de dois corações
profundamente generosos, como o são os daqueles
confrades a que me referi, que a minha mãe, que regressara ao Além em 1915,
deixando-nos mergulhados em imorredoura saudade, começou a ditar-nos os seus
conselhos salutares, por intermédio da esposa do nosso amigo, entrando em
pormenores da nossa vida íntima, que essa senhora desconhecia. Até a grafia era
absolutamente igual à que a nossa genitora usava, quando na Terra.
Sobre
esses fatos e essas provas irrefutáveis solidificamos a nossa fé, que se tornou
inabalável. Em breve minha irmã regressava ao nosso lar cheia de saúde e feliz,
integrada no conhecimento da luz que deveria daí por diante nortear os nossos
passos na vida.
Resolvemos,
então, com ingentes sacrifícios, reunir um núcleo de crentes para estudo e
difusão da doutrina,. e foi nessas reuniões que me desenvolvi como médium
escrevente, semi-mecânico, sentindo-me muito feliz por se me apresentar essa
oportunidade de progredir, datando daí o ingresso do meu humilde nome nos
jornais espíritas, para onde comecei a escrever sob a inspiração dos bondosos
mentores espirituais que nos assistiam.[1]
[23] Daí a pouco, a nossa alegria aumentava,
pois o nosso confrade José Hermínio Perácio, em companhia de sua esposa,
deliberou fixar residência junto a nós, e as nossas reuniões tiveram resultados
melhores, controladas pela sua senhora, alma nobilíssima, ornada das mais
superiores qualidades morais e que, entre as suas mediunidades, conta com mais
desenvolvimento a clariaudiência. Nossas reuniões contavam, assim, grande
número de assistentes, porém, a moral profunda que era ensinada, baseada nas
páginas esplendorosas do Evangelho de Jesus, parece que pesava muito, como
acontece na opinião de grande maioria de almas da nossa época, quase sempre
inclinadas para as futilidades mundanas, e, decorridos dois anos, os
assistentes de nossas sessões de estudos escassearam, chegando ao número de
quatro ou cinco pessoas, o que perdura até hoje.
Não
desanimamos, contudo, prosseguindo em nossas reuniões, constituindo para nós
uma fonte de consolações isolarmo-nos das coisas terrenas em nosso recanto de
prece, para a comunhão com os nossos desvelados amigos do Além. Continuei
recebendo as idéias dos mesmos amigos de sempre, nas reuniões,
psicografando-as, e que eram continuamente fragmentos de prosa sobre os
Evangelhos. Somente duas vezes recebi comunicações em versos simples.
Em
Agosto, porém, do corrente ano, apesar de muito a contragosto de minha parte,
porque jamais nutri a pretensão de entrar em contacto com essas entidades
elevadas, por conhecer as minhas imperfeições, comecei a receber a série de
poesias que aqui vão publicadas, assinadas por nomes respeitáveis.
Serão
das personalidades que as assinam? – é
o que não posso afiançar.
O que posso afirmar, categoricamente, é que, em consciência, não posso dizer
que são minhas, porque não despendi nenhum esforço intelectual ao grafá-las no
papel. A sensação que sempre senti, ao escrevê-las, era a de que vigorosa mão
impulsionava a minha. Doutras vezes, parecia-me ter em frente um volume
imaterial, onde eu as lia e copiava; e, doutras, que alguém mas ditava aos
ouvidos, experimentando sempre [24] no
braço, ao psicografá-las, a sensação de fluidos elétricos que o envolvessem,
acontecendo o mesmo com o cérebro, que se me afigurava invadido por
incalculável número de vibrações indefiníveis. Certas vezes, esse estado
atingia o auge, e o interessante é que parecia-me haver ficado sem o corpo, não
sentindo, por momentos, as menores impressões físicas. É o que experimento,
fisicamente, quanto ao fenômeno que se produz freqüentemente comigo.
Julgo
do meu dever declarar que nunca evoquei quem quer que fosse; essas produções
chegaram-me sempre espontaneamente, sem que eu ou meus companheiros de trabalho
as provocássemos e jamais se pronunciou, em particular, o nome de qualquer dos
comunicantes, em nossas preces. Passavam-se às vezes mais de dez dias, sem que
se produzisse escrito algum, e dia houve em que se receberam mais de três
produções literárias de uma só vez. Grande parte delas foram escritas fora das
reuniões e tenho tido ocasião de observar que, quanto menor o número de
assistentes, melhor o resultado obtido.
Muitas vezes, ao
recebermos uma destas páginas, era necessário recorrermos a dicionários, para
sabermos os respectivos sinônimos das palavras nela empregadas, porque tanto eu
como os meus companheiros as desconhecíamos em nossa ignorância, julgando minha
obrigação, frisar aqui também, que, apesar de todo o meu bom desejo, jamais
obtive outra coisa, na fenomenologia espírita, a não ser esses escritos.[2]
[25] Devo salientar o precioso concurso da,
bondosa médium Sra. Cármen P. Perácio,
que através da sua maravilhosa clariaudiência me auxiliou muitíssimo,
transmitindo-me as advertências e opiniões dos nossos caros mentores
espirituais, e ainda o carinhoso interesse do distinto confrade Sr. M. Quintão,
que tem sido de uma boa vontade admirável para comigo, não poupando esforços para
que este despretensioso volume viesse à luz da publicidade.
E
aqui termino.
Terei
feito compreender, a quem me lê, a verdade como de fato ela é f Creio que não.
Em alguns despertarei sentimentos de piedade e, noutros, rasinhos
ridiculizadores. Há-de haver, porém, alguém que encontre consolação nestas
páginas humildes. Um desses que haja, entre mil dos primeiros, e dou-me por
compensado do meu trabalho.
A
todos eles, todavia, os meus saudares, com os meus agradecimentos intraduzíveis
aos boníssimos mentores do Além, que inspiraram esta obra, que generosamente se
dignaram não reparar as minhas incontáveis imperfeições, transmitindo, por
intermédio de instrumento tão mesquinho, os seus salutares ensinamentos.
Pedro Leopoldo. Dezembro
de 1931.
[1] Só nos últimos dias de
1931, com a graça de Deus. desenvolveram-se em mim, de maneira clara e mais
intensamente, a vidência, a audição e outras faculdades mediúnicas. – (Nota do
médium para a 4a edição, em 1944.)
[2] Ao escrever estas
palavras, o Autor não se lembrou de que as suas relações constantes com
Espíritos desencarnados, mantidas desde os 5 anos de idade, pertencem
igualmente à fenomenologia espírita. Pensou em fenomenologia somente como
prática consciente da mediunidade nas sessões espíritas; mas todas as pessoas
de sua intimidade sabem que ele, desde a infância, confunde os habitantes dos
dois mundos e muitas vezes pergunta ao amigo que esteja passeando com ele:
“Estás vendo ali um homem de barbas brancas, etc.?” Pela resposta do companheiro
é que ele fica sabendo se está diante de um habitante do nosso mundo ou de
habitante do mundo espiritual. Também isso são fenômenos espíritas. – A Editora.