O consumo e o tráfico de droga na lei penal portuguesa (*)

Rui Carlos Pereira

Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa

1 A punição do consumo e do tráfico de droga: anacronismo ou necessidade?

Recentemente, o consumo e o tráfico de droga constituíram tema privilegiado do debate político em Portugal. No âmbito de uma campanha eleitoral eleição da Assembleia da República em 1995 , dirigentes partidários prometeram ou exigiram o aumento das penas para os traficantes como meio de combater a insegurança. Um partido político estimou mesmo em 35 anos o limite máximo da nova penalidade a cominar.

Contraditoriamente, também têm subido de tom as denúncias da insuficiência das soluções repressivas. Num célebre editorial, o Economist advogou a legalização do comércio da droga, sugerindo que «... as actuais brigadas de droga orientem as suas energias para coisas que realmente produzam algum bem, como ajudar velhinhas a atravessar a rua» (1). Na sociedade portuguesa, estas ideias geraram viva controvérsia (2).

Iniciando esta exposição por onde, porventura, a deveria concluir, adiantarei já que sou adversário da legalização do comércio da droga mas partidário da descriminação do consumo. Em meu entender, deve manter-se a incriminação do tráfico de droga mas o consumo não merece penas públicas sobretudo, penas de prisão. Ao consumo apenas deverão corresponder sanções pecuniárias não penais (coimas) nos casos de cultivo, aquisição, detenção ou ingestão de droga em lugar público ou aberto ao público.

Na tentativa de demonstrar dialecticamente a correcção desta proposta, confrontá-la-ei com os principais argumentos que concorrem a favor da legalização do comércio da droga e da punição do consumo.

2 Uma questão de legitimidade

A favor da legalização do comércio da droga milita, em primeiro lugar, um argumento liberal ou, na sua versão mais radical, um argumento libertário , apoiado na autonomia ética da pessoa humana. Reconhecendo-se que «cada qual é o único guardião da sua saúde moral, física e intelectual», como assinalou John Stuart Mill (3), conclui-se que não há razão para compelir alguém a optar por uma vida saudável. Frequentemente, este argumento recorre ao exemplo do suicídio, que hoje não é criminalmente ilícito (4), adiantando que o consumo (ou abuso) de droga constituirá, na pior das hipóteses, um suicídio lento.

No entanto, o argumento liberal só logra demonstrar com consistência a ilegitimidade da punição do consumo nunca do tráfico de droga. Da afirmação de que cada um é o guardião de si próprio, do seu corpo e da sua saúde não se infere a permissão de uma pessoa se imiscuir na esfera de liberdade de outra, oferecendo-lhe substâncias nocivas que provocam sofrimento em elevado grau.

É precisamente nesta perspectiva que o Código Penal português incrimina, no artigo 135.º, o incitamento ou ajuda ao suicídio e criminalizou, em 1 de Outubro de 1995, a própria propaganda do suicídio (artigo 139.º), apesar de o suicídio não ser crime, nem mesmo na forma tentada (5). Quem incita ou ajuda outrem a suicidar-se como, mais remotamente, quem faz propaganda do suicídio interfere na autonomia alheia, favorecendo a tomada de decisão autodestrutiva (6).

Em suma: só por salto lógico se pode deduzir do «direito» de alguém fazer mal a si próprio o direito de fazer mal a outrem. Fazer mal a outrem constitui, precisamente, a base imprescindível da incriminação de uma conduta (7).

Há quem afirme, porém, que esta posição é hipócrita por reconhecer uma possibilidade (de consumir droga) que não pode ser exercida (devido à ausência de fornecimento legalizado) (8). Esta objecção confunde, todavia, descriminação do consumo de droga com atribuição de um direito subjectivo ao consumo. Afirma-se, simplesmente, que o consumidor não deve ser punido não que seja titular de um direito ao consumo e que a sociedade tenha o dever de lhe facultar droga.

Retomando a analogia, que parece profícua, com o suicídio, observar-se-á que a não punibilidade do suicídio tentado ou consumado não implica o direito do suicida obter meios para se matar por exemplo, armas de fogo ou substâncias venenosas ou o dever de qualquer pessoa lhe prestar ajuda. Pelo contrário, a correcta inclusão do suicídio num «espaço livre do direito» permitirá até qualificar como lícitas as ofensas corporais ou contra a liberdade cometidas contra o suicida visando evitar o suicídio, de acordo com o critério de ponderação de interesses ou bens jurídicos conflituantes próprio do direito de necessidade artigo 34.º, alíneas b) e c), do Código Penal (9).

3 O argumento de igualdade

Ainda no plano da legitimidade (em sentido estrito) da punição do consumo e do tráfico de droga é corrente adiantar-se um argumento de igualdade: partindo do pressuposto, aliás correcto, de que o legislador não pode criminalizar condutas arbitrariamente (seleccionando umas e esquecendo outras tão ou mais graves e censuráveis), sustenta-se que algumas substâncias comercializadas são tão nocivas como as proibidas. Nesta perspectiva, a punição do consumo e do tráfico de droga poderá contrariar o princípio da congruência ou concordância prática entre as ordens axiológicas constitucional e penal, de que deriva uma exigência de igualdade em sentido material: proporcionalidade entre a gravidade do crime (e a censurabilidade do agente) e a severidade da pena (10).

Assim, por exemplo, um relatório da Comissão de Inquérito sobre o crime organizado ligado ao tráfico de droga, criada no âmbito do Parlamento Europeu, equiparou o tabaco, o haxixe, o ópio e a coca como «drogas semi-suaves» e o álcool e a cannabis como «drogas suaves» (11).

Na análise desta questão, deve distinguir-se, porém, entre álcool e tabaco. Em geral, o consumo do primeiro não patenteia o abuso generalizado que se assinala no consumo do segundo. Além disso, se o fumo em recintos fechados prejudica, comprovadamente, terceiros, não é possível identificar, em sentido próprio, «bebedores passivos».

De todo o modo, nem sequer é verdade que o abuso do álcool seja penalmente irrelevante. No restrito âmbito do Código Penal, o abuso do álcool e da droga estão equiparados, por força dos artigos 20.º, n.º 4, e 295.º (282.º na versão anterior a 1 de Outubro de 1995). Assim, quem ingerir álcool para cometer um crime isto é, com intenção ou pré-ordenadamente , colocando-se em estado de inimputabilidade, será punível, a título de dolo, pela prática desse crime. Estaremos então em face de uma actio libera in causa, relativamente à qual se não exclui a imputabilidade, sem violação do princípio da culpa, porque o agente escolheu, afinal, como «meio de execução» do seu crime a própria colocação em estado de inimputabilidade (12). Diferentemente, quem ingerir álcool e se colocar negligente ou dolosamente em estado de inimputabilidade (sem actuar pré-ordenadamente) e nesse estado vier a cometer um crime, será punível com prisão até 5 anos ou multa até 600 dias (13). Nesta hipótese, o agente terá praticado um crime de «anti-socialidade perigosa», correspondente, em termos de tipicidade, à própria colocação em estado de inimputabilidade. A exigência de que nesse estado venha a cometer um (outro) crime constitui uma mera condição objectiva de punibilidade (imprópria) (14).

Para além destas situações, em que o abuso do álcool e o abuso da droga são rigorosamente equiparados, o Código Penal prevê ainda, no artigo 292.º, o crime autónomo de condução de veículo em estado de embriaguez (que antes de 1 de Outubro de 1995 era tipificado pelo artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de Abril). Desta sorte, quem conduzir veículos com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, pelo menos a título de negligência, será punível com prisão até um ano ou multa até 120 dias (15). Para hipóteses menos graves, em que a taxa de álcool no sangue seja igual ou superior a 0,5 ou 0,8 g/l, o Código da Estrada prevê uma contra-ordenação grave e muito grave, respectivamente (16).

O que caracteriza, decisivamente, a intervenção do direito sancionatório público nesta matéria é a plena liberalização do comércio do álcool, em contraste com a incriminação do tráfico de droga. A revisão do Código Penal operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, suprimiu mesmo o crime de fornecimento de bebidas alcoólicas a embriagados ou a ébrios habituais, que era punível com prisão até um ano ou multa até 50 dias, na versão originária do Código Penal de 1982 (artigo 283.º). Esta supressão dever-se-á, presumivelmente, à circunstância de a punição do agente (fornecedor de bebidas) depender de uma «condição potestativa» (de novo, uma condição objectiva de punibilidade imprópria) a cargo de outrem: requeria-se que o em-briagado ou o ébrio habitual cometessem um crime em estado de inimputabilidade. Ora, esta exigência parece afectar o carácter pessoal da responsabilidade penal, consagrado nos artigos 1.º, 25.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, da Constituição (17).

Porém, este traço distintivo (ausência de dignidade penal do comércio do álcool) encontra uma fundamentação racional óbvia: para além de constituir um hábito social arreigado, o consumo parcimonioso de álcool não provoca ofensas na saúde e até é indicado como meio de prevenir acidentes cardio-vasculares.

Por seu turno, o consumo de tabaco é objecto de uma atenção crescente do legislador. O direito de mera ordenação social intervém já em defesa do «fumador passivo», qualificando como contra-ordenação o fumo em vários locais (18). E é concebível que, no futuro, se sancione mesmo através da imposição de penas públicas a venda de tabaco a menores.

Mas também a analogia entre o ácool e a droga se afigura duvidosa. Em primeiro lugar, deve observar-se que o argumento é ambivalente: tanto justifica a descriminação do tráfico de droga como a criminalização do comércio de tabaco. Demais, o consumo de tabaco não produz as alterações de personalidade (perda do senhorio de si) que são atribuídas ao consumo de droga ou, pelo menos, de certas drogas. Por fim, importa não esquecer que existe uma diferença abissal entre a criminalização de uma conduta tolerada socialmente e a descriminação de outra repudiada com intensidade semelhante à de crimes como o homicídio, as ofensas graves, a violação, o sequestro ou o roubo condutas que, pelo consenso negativo que suscitam, contribuem para a própria definição material de crime (19).

4 Uma questão de eficácia

Às questões de legitimidade surgem associadas dúvidas pertinentes sobre a eficácia do exercício do poder punitivo no domínio do consumo e do tráfico de droga. Assinala-se que, apesar da intervenção penal, o consumo de droga não pára de crescer. Alega-se, por outro lado, que a proibição favorece o aparecimento de fortíssimas associações criminosas, que se infiltram, ao mais alto nível, no aparelho do Estado e chegam a dispor de exércitos privados, graças aos chorudos proventos que obtêm. Acresce que o «proibicionismo», pela subida de preços que origina, tem efeitos criminógenos, compelindo os consumidores à prática de crimes como o furto e o roubo. Finalmente, a política repressiva inviabiliza o controlo da «qualidade» do produto, cujos efeitos serão, por conseguinte, mais nefastos.

Também estes argumentos são recondutíveis, em última instância, ao plano da legitimidade da intervenção penal, entendida agora em sentido amplo. A necessidade das penas e das medidas de segurança com os seus corolários de eficácia e de subsidiariedade constitui requisito impostergável da legitimidade de uma incriminação, ante o disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.

A pena dispensável, ineficaz ou contraproducente é ilegítima: não é autorizada pelo contrato social que constitui pressuposto legitimador da organização democrática do Estado. A restrição de direitos decorrente da aplicação de penas públicas só pode visar a protecção de outros direitos ou interesses com dignidade constitucional.

5 A ineficácia da descriminação do tráfico de droga

O argumento da ineficácia da «solução proibicionista» assenta, no entanto, numa profissão de fé e não num processo racional de demonstração. Na verdade, propõe-se a comparação entre algo que existe e algo sobre que apenas podemos fazer conjecturas. Todos ignoramos os resultados de uma legalização do comércio de droga porque uma tal liberalização com o alcance proposto, por exemplo, no editorial do Economist nunca foi ensaiada e nem sequer pode ser empreendida, unilateralmente, por um Estado.

Quando se afirma que nos países em que o combate ao tráfico (e mesmo ao consumo) é mais intenso o consumo aumenta em vez de diminuir, confunde-se, visivelmente, causa com efeito. É por o consumo aumentar que o combate ao tráfico (e ao consumo) recrudesce não o contrário.

Numa perspectiva prognóstica, poderá sustentar-se que a legalização do comércio e a consequente diminuição substancial do preço da droga (que se verificaria quer o comércio fosse adjudicado a um monopólio estatal quer o comércio fosse puramente liberalizado) deveriam gerar um aumento sensível da procura: mesmo a preços idênticos, que não fariam então desaparecer os efeitos criminógenos assinalados ao «proibicionismo», seria mais fácil adquirir droga se se tratasse de negócio lícito.

Por outro lado, qualquer solução liberalizante que procure pre-servar os jovens com menos de 18, 16 ou 14 anos de idade pelo menos (20) se confronta com uma dificuldade. Se, na realidade, se conseguisse garantir que a droga não seria vendida a adolescentes o que é praticamente impossível , subsistiriam fenómenos marginais de tráfico e de criminalidade a ele associada.

Por fim, seria ilusório supor que a descriminação do tráfico solucionaria os graves problemas colocados às sociedades modernas pelas organizações criminosas. Como é sabido, estas organizações estão dotadas de um elevado grau de mimetismo. Quando uma actividade deixa de ser rentável, passam a dedicar-se a outra. Assim, a legalização do comércio de droga poderia ter como efeito perverso o incremento do contrabando de armas, do comércio ilegal de órgãos humanos ou do rapto de crianças para prostituição, por exemplo (21).

6 Punir o tráfico e despenalizar o consumo: a radicalidade de uma solução intermédia

A proposta, aparentemente contraditória, apresentada logo no início deste texto tem o mérito de respeitar escrupulosamente a liberdade individual. É sempre em nome da autonomia ética da pessoa humana que se defende a incriminação do tráfico e a descriminação do consumo de droga.

Quem discorda da descriminação do consumo de droga não pretende, contudo, impor hoje padrões morais às pessoas, violando o princípio da liberdade individual. O toxicodependente, enquanto tal, será punível por constituir uma «fonte de perigo», ser um mau exemplo ou até para ser tratado.

No entanto, nenhuma destas explicações é convincente. A afirmação de que o toxicodependente é passível de punição porque quebra um dever de solidariedade para com a sociedade constante de um relatório das Nações Unidas e avocada pelo legislador penal português em 1983 e 1993 (22) assenta numa presunção inilidível de perigosidade, incompatível com o carácter subsidiário da intervenção penal. Por que motivo pode ser punido com prisão até 3 meses, que se pode elevar até um ano (ou multa até 30 dias, que pode ser agravada até 120 dias), quem, em privado, fuma um cigarro de marijuana adquirido com os seus proventos? Não está provado que o consumo de droga conduza sempre a um estado (situação de dependência) em que o agente se não coíba de praticar crimes. E quando os praticar, recorde-se, não deixará de ser punível, ainda que actue em estado de inimputabilidade, segundo a lei penal geral (artigo 295.º do Código Penal).

Numa perspectiva próxima, também é possível apontar o toxicodependente como mau exemplo uma espécie de vírus social, susceptível de provocar uma epidemia e sustentar a sua consequente punibilidade. Porém, esta visão estritamente utilitária (e que, nos seus próprios termos, apela a uma comprovação empírica de eficácia) esquece o papel restritivo que o princípio da culpa desempenha no sistema penal. Se o consumo de droga não possui uma ressonância ética negativa, as necessidades preventivas não bastam para justificar a aplicação de uma pena pública. É a própria essencial dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da Constituição) entendida à luz do pensamento kantiano de que o homem constitui um fim em si mesmo e não um meio (23) que obsta a que o toxicodependente seja eleito como instrumento de combate ao consumo de droga.

Finalmente, a ideia de tratamento do toxicodependente não é conciliável com a natureza da pena de prisão. Não se vê qual o efeito terapêutico que pode produzir uma pena de prisão até 3 meses sobre um toxicodependente que careça, por exemplo, de uma dose diária de heroína. A terapia indicada é, evidentemente, o tratamento ou internamento em estabelecimentos especializados. E a atribuição à pena curta de prisão, neste caso, de um significado meramente simbólico não é satisfatória, por comprometer a eficácia global do sistema. O legislador não pode fazer bluff, cominando penalidades cuja efectiva aplicação rejeita. Ao fazê-lo, porá em causa a confiança da comunidade na validade e na vigência das normas jurídicas.

Conjugadamente, as condições de legitimidade da incriminação dedutíveis da Constituição militam a favor da solução propugnada: nem a defesa de bens jurídicos (com os corolários de eficácia e de subsidiariedade do exercício do jus puniendi), nem a ressonância ética (imposta pela dignidade da pessoa humana e pela culpa), nem a congruência entre ordens axiológico-normativas (ditada pela igualdade e inspiradora da proporcionalidade entre o crime e a pena), nem o consenso democrático justificam a imposição de penas públicas ao consumidor. Mas legitimam a punição do traficante de droga.

7 Do direito penal para o direito de mera ordenação social

A incriminação do consumo de droga na nossa ordem jurídica revela hoje, como no passado, algum «farisaísmo legislativo». Três exemplos podem ilustrar esta afirmação:

a) No âmbito do n.º 1 do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, estabelecia-se a punibilidade (com prisão até 3 meses e multa até 90 dias e a possibilidade de mera admoestação ou dispensa de pena) de quem adquirisse ou detivesse droga para consumo pessoal. O consumo, em si mesmo, não era punível. O toxicodependente que, por exemplo, fosse injectado gratuitamente por um parceiro não praticaria nenhum facto ilícito.

b) Apercebendo-se, porventura, do carácter absurdo desta «lacuna» absolutamente insusceptível de preenchimento por aplicação analógica de uma norma incriminadora, por força do disposto nos artigos 29.º, n.º 1, da Constituição e 1.º, n.º 3, do Código Penal , o legislador criminalizou o próprio consumo, no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, rectificado em 20 de Fevereiro, cominando prisão até 3 meses ou multa até 30 dias, com possibilidade de agravação para prisão até um ano ou multa até 120 dias, nos casos mais graves, e de dispensa de pena na hipótese de consumo ocasional (artigo 40.º). Porém, ante uma situação de exame médico coercivo, de resto duvidosamente conciliável com o direito à liberdade, uma vez que não é configurável como sanção ou medida de coacção processual (artigos 27.º da Constituição e 191.º do Código de Processo Penal), em que se detecta o consumo habitual, o Ministério Público, paradoxalmente, não abre inquérito. Isto apesar de ter adquirido a notícia de um crime público (não dependente de queixa ou acusação particular) por conhecimento próprio (artigo 241.º do Código Processo Penal). O Ministério Público limita-se a propor ao toxicodependente o tratamento facultativo. Se este não o aceitar, comunicará o facto ao Instituto de Reinserção Social e, eventualmente, aos serviços de saúde (artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 15/93).

c) Por fim, o Estado permite aos toxicodependentes que troquem, gratuitamente, seringas usadas por seringas novas, em farmácias. Trata-se, indubitavelmente, de uma medida de saúde pública, tendente a evitar a propagação do vírus do síndroma da imuno-deficiência adquirida. De todo o modo, é uma medida dificilmente explicável se se entender que a seringa fornecida pelo Estado se destina a cometer um crime.

Os três exemplos dados revelam, afinal, uma tensão latente na política criminal relativa à toxicodependência: o consumidor de droga é encarado como criminoso e doente. A contradição acaba por se exprimir em indicações normativas opostas.

A descriminação do consumo comporta, todavia, alguns riscos. O principal reside numa interpretação perversa da nova atitude do Estado perante a droga: poderia concluir-se que o consumo de droga corresponde ao exercício de um direito. Por outro lado, o consumo público potenciaria, previsivelmente, um efeito de alastramento, sobretudo quando praticado em locais frequentados por crianças ou jovens, como as escolas.

Mas a descriminação não implica a licitude do consumo. O consumo de droga deveria, quando praticado em público, ser, simplesmente, degradado em ilícito de mera ordenação social. Assim, o consumo em lugar público ou aberto ao público continuaria a ser ilícito e poderia ser reprimido. As sanções que lhe corresponderiam e que poderiam ser aplicadas, por exemplo, pelo Instituto de Reinserção Social teriam natureza pecuniária (coimas), estando excluída a privação da liberdade. Haveria, além disso, lugar à apreensão da droga (artigo 22.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, alterado pelos Decretos-Leis n.os 356/89 e 244/95, de 17 de Outubro e 14 de Setembro, respectivamente).

Esta proposta baseia-se ainda no princípio da liberdade individual. O consumo público de droga constitui uma interferência na liberdade alheia, convidando outras pessoas, sobretudo as mais desprotegidas (crianças e adolescentes), a aderirem ao «hábito». Constituirá, nessa perspectiva, uma infracção de perigo abstracto contra bens jurídicos pessoais a liberdade, a integridade física e a própria vida , justificando a intervenção do direito de mera ordenação social (24). Por outro lado, uma política orientada para a classificação do consumo de droga como ilícito de mera ordenação social responde adequadamente às intuições ético-sociais dominantes, que se manifestam contra a licitude do consumo mas não clamam pela aplicação de sanções privativas da liberdade.

Não se ignora, contudo, que as próprias sanções pecuniárias (coimas) são ineficazes, em regra, quanto a toxicodependentes. Por isso, elas deveriam ser utilizadas como «estímulo» ao tratamento: a coima deveria ser substituída, em todos os casos, pelo tratamento voluntário do toxicodependente, que consistiria, por exemplo, na sua apresentação periódica ou em internamento em estabelecimento da especialidade. Estando em causa consumidores ocasionais, as coimas poderiam ser substituídas, com a concordância do visado, por regras de conduta (semelhantes às previstas no artigo 281.º do Código de Processo Penal), tendentes a evitar a reincidência, como a proibição do exercício de certas actividades ou de frequência de determinados locais.

8 Um programa mínimo de política criminal

A solução preconizada para o consumo de droga evitaria um curto--circuito ético, que a descriminação pura e simples potencia. Em matéria de consumo e tráfico de droga, a política criminal deve evoluir através de passos cautelosos e seguros (25) não mediante mudanças abruptas e radicais.

Em relação ao tráfico, o Decreto-Lei n.º 15/93 agravou, ao contrário do que alguns media têm sugerido, as penalidades. Nos casos mais graves, o tráfico é punível com prisão até 20 anos (artigos 21.º, 22.º, 24.º e 28.º). Por outro lado, o legislador criminalizou o branqueamento de proventos do tráfico (artigo 23.º) e o abandono de seringas (artigo 32.º), para além do consumo propriamente dito (artigo 40.º).

A única ponta de verdade nas acusações de «laxismo» que têm sido dirigidas ao legislador resulta da diminuição dos limites mínimos das penas cominadas para o tráfico, que passaram de 6, 8 e 2 anos para 4, 5 e 1 ano de prisão (cfr. os artigos 23.º do Decreto-Lei n.º 430/83 e 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93). Não se pode, porém, identificar uma tendência geral para a atenuação da responsabilidade.

A tendência que se regista vai no sentido de permitir diferenciações de responsabilidade, em relação a um crime cuja gravidade varia, sensivelmente, de acordo com a própria natureza e a quantidade do produto. E essa tendência deve ser reforçada, através do aprofundamento de algumas distinções essenciais, que o Decreto-Lei n.º 15/93 já contempla :

a) A venda de droga a menores é mais grave do que a venda de droga a adultos [artigo 24.º, alínea a)];

b) A venda de droga adulterada é mais grave do que a venda de droga «normal» [artigo 24.º, alínea l)];

c) A venda de droga por traficantes não toxicodependentes é mais grave (ao nível do desvalor da acção) do que a realizada por toxicodependentes (artigo 26.º).

Estas devem ser linhas essenciais para reforçar, no futuro, a distinção entre casos de tráfico qualificado e de tráfico simples. A agravação prevista no artigo 26.º poderá ser, por exemplo, elevada para um terço dos limites penais, coerentemente com agravações com idêntica natureza previstas no Código Penal (26).

Por outro lado, é hoje defensável uma agravação da pena mais severa para um limite máximo de 25 anos de prisão. Tal pena, cominada para chefes ou dirigentes de associações criminosas dedicadas ao tráfico de droga (artigo 28.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 15/93) está presentemente fixada em 20 anos de prisão, em sintonia com a pena máxima prevista para o homicídio qualificado na versão originária do Código Penal de 1982 (artigo 132.º). O aumento para 25 anos deste limite, operado pela revisão do Código Penal (Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março), permite a agravação do limite máximo da pena prevista para aquelas hipóteses de tráfico de droga, sem violação do princípio da congruência ou concordância prática entre as ordens axiológicas constitucional e penal.

Numa perspectiva de prevenção geral positiva agora claramente assumida pelo artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal , estas agravações contribuiriam para reforçar a confiança da comunidade na subsistência dos bens jurídicos e mitigar um sentimento de insegurança larvar na sociedade portuguesa (cuja inevitável dimensão subjectiva não torna menos preocupante). Isto sem esquecer nunca que o sucesso de uma alteração legislativa nesta como em outras matérias depende, decisivamente, da restruturação das instituições policiais e judi-ciárias e da reforma do processo penal.

9 Algumas especificidades processuais

O tráfico e o consumo de droga constituem, reconhecidamente, a principal causa do crescimento da criminalidade e da insegurança na sociedade portuguesa. Os crimes contra o património, cometidos com ou sem violência, sobretudo nos grandes centros urbanos, apresentam como móbil principal o financiamento do consumo. Assim se explica, aliás, uma tendência para a diversificação da criminalidade, que engloba, nomeadamente, o roubo com seringa, o furto de auto-rádio e o abuso de cartões de crédito.

Esta realidade não pode, obviamente, deixar de se reflectir no plano processual. A esta luz se compreende que o legislador escolha o tráfico e o consumo de droga como campo de ensaio de soluções inovadoras e, por vezes, discutíveis que têm uma manifesta pretensão de eficácia.

Medida duvidosamente conciliável com o direito à liberdade é o «exame médico a consumidores habituais», ordenado pelo Ministério Público ao abrigo do artigo 43.º do Decreto-Lei n.º 15/93, a que já se fez referência. Por outro lado, em normas como as constantes dos artigos 46.º, 47.º e 55.º, o legislador procura conciliar a aplicação de medidas de coacção ou mesmo de penas privativas da liberdade com o tratamento do toxicodependente. Por fim, os artigos 51.º a 54.º estabelecem regimes especiais e tendencialmente mais severos sobretudo no que respeita à aplicabilidade e à duração da prisão preventiva (27).

Todavia, o aspecto mais «ousado» do regime processual consagrado no Decreto-Lei n.º 15/93 respeita à obtenção de prova. Sob a inócua epígrafe «Conduta não punível», o artigo 59.º consagra, na esteira do artigo 52.º do Decreto-Lei n.º 430/83, a figura do «homem de confiança»:

«1. Não é punível a conduta do funcionário de investigação criminal que, para fins de inquérito e sem revelação da sua qualidade e identidade, aceitar directamente ou por intermédio de um terceiro a entrega de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.

2. O relato de tais factos é junto ao processo no prazo máximo de vinte e quatro horas.»

Apenas neste domínio e no âmbito das medidas de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira (28) se contempla a figura do homem de confiança. Figura que, em geral, se há-de considerar proscrita, por consubstanciar um método proibido de prova, ante o disposto no artigo 126.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal (meio enganoso).

A admissibilidade do recurso ao homem de confiança deve ser, no entanto, directamente confrontada com o disposto no n.º 6 do artigo 32.º da Constituição: não estará sempre em causa uma ofensa da integridade moral da pessoa, que implicará a nulidade da prova obtida?

Em geral, o recurso ao homem de confiança afecta, na verdade, o direito à integridade moral, consagrado no artigo 25.º da Constituição. Porém, impõe-se fazer aqui uma distinção fundamental entre finalidades repressivas e preventivas (29). Quando o homem de confiança visar, exclusivamente, provar a prática de crimes (isto é, quando constituir um «método de prova»), cairemos no âmbito da proibição de prova. Assim sucederá se, por exemplo, um funcionário for introduzido numa cela para obter uma confissão. Mas quando, diferentemente, o homem de confiança visar impedir a consumação do crime ou a reincidência do agente (prevenção especial), já não estaremos situados no plano processual da proibição de prova, mas antes perante uma conduta cuja licitude é definida de acordo com os juízos de ponderação que enformam a justificação penal (artigo 31.º e seguintes do Código Penal). Assim, já será lícito, no exemplo anteriormente proposto, que o funcionário passe por recluso para apurar o local em que se encontra sequestrada determinada pessoa e a prova obtida poderá, posteriormente, ser utilizada.

Por outro lado, é indispensável distinguir ainda, neste domínio, duas figuras vizinhas: o agente encoberto e o agente provocador. Enquanto o primeiro se limita a «observar» a prática de crimes (ou, pelo menos, não os determina), o segundo funciona, verdadeiramente, como instigador desses crimes (artigo 26.º, parte final, do Código Penal).

Creio que este problema se situa já fora do âmbito da proibição de prova e só pode ser dilucidado através de algumas distinções essenciais:

a) O recurso ao agente provocador é admissível quanto a crimes graves, em situações de elevada fungibilidade e desde que o crime não acarrete a efectiva lesão de bens jurídicos. É neste preciso contexto que o artigo 59.º do Decreto-Lei n.º 15/93 permite ao homem de confiança que aceite droga. Já não será admissível (e, na realidade, a norma não o prevê) que o homem de confiança ofereça droga a um toxicodependente, para perseguir o crime de consumo.

b) O recurso ao agente provocador relativamente a crimes bagatelares (como, justamente, o consumo de droga) não coloca um problema de proibição de prova, mas sim de impunibilidade. O instigado beneficiará, nesta hipótese, de uma causa pessoal de exclusão da pena, por se verificar uma «perda da função do direito penal» (30). Se se reduzisse a questão ao âmbito da proibição de prova, admitir-se-ia que um toxicodependente fosse punido pelo crime de consumo de droga oferecida por um funcionário, desde que a prova carreada para o processo consistisse, por exemplo, no depoimento testemunhal de um terceiro. Por seu turno, o agente provocador (instigador) também não será punível pelo crime de tráfico de droga, na hipótese descrita, desde que prossiga finalidades puramente repressivas, mas poderá ser punido, eventualmente, pelo crime de abuso de poder, nos termos do artigo 382.º do Código Penal, se tiver a intenção de «causar prejuízo a outra pessoa».

c) Finalmente, em relação a outros crimes, o recurso ao agente provocador não obstará à punição do instigador e do autor material. Admita-se, por exemplo, que um funcionário determina os membros de uma organização terrorista a matarem um dirigente político: todos serão punidos, nos termos gerais, como autores de um homicídio (31).

(*) No essencial, as ideias apresentadas neste texto foram defendidas pelo autor em intervenções proferidas em Congressos da Associação Portuguesa de Psiquiatria, no Centro das Taipas e na Sociedade Portuguesa de Filosofia, durante os anos de 1993 e 1994.

(1) «Drugs it doesn't have to be like this», The Economist, 2 de Setembro de 1989, pp. 21-4. A tradução deste texto da autoria de Maria Júlia Paixão foi publicada no excelente número temático dedicado à droga pela Sub Judice n.º 3 (Maio/Agosto de 1992), pp. 71-4. Milton Friedman defendeu uma perspectiva idêntica, segundo a qual a proibição deveria ser eliminada e a droga deveria ser objecto de tratamento «exactamente igual ao que é dado ao álcool e ao tabaco», em entrevista à revista Der Spiegel, traduzida no Público de 20 de Abril de 1993. Por seu lado, o Libération dedicou, igualmente, um número, em Maio de 1990, à «guerra mundial perdida», que analisa em guerra à produção, ao tráfico, ao consumo e ao dinheiro, seguindo o circuito da droga.

(2) Refiro-me, evidentemente, às posições públicas assumidas, sobretudo, por Eurico de Figueiredo. Em defesa da incriminação do tráfico se pronunciaram, porém, outros psiquiatras cfr. Dias Cordeiro, «Droga na Sociedade Civil», Expresso, 30 de Maio de 1992.

(3) John Stuart Mill, On Liberty, 1859 (ed. J. M. Robson, 1966, p. 13 e ss.).

(4) Na nossa ordem jurídica, o suicídio consumado não é punível, desde logo porque as penas são intransmissíveis artigo 30.º, n.º 3, da Constituição. Apenas se pode discutir se há um verdadeiro direito subjectivo ao suicídio, a que corresponderia, no plano passivo, um dever de respeitar a vontade do suicida, ou se, diferentemente, o suicídio se insere num espaço jurídico livre. Esta última tese, que me parece preferível, é sustentada, na doutrina alemã, por Gallas, «Strafbares Unterlassen im Falle einer Selbsttötung», Beiträge zur Verbrechenslehre, 1968, p. 177 e ss., e, na nossa doutrina, por Manuela Valadão, Sobre o crime de incitamento ou ajuda ao suicídio, 1990, p. 71 e ss., e Fernanda Palma, A Justificação por Legítima Defesa como Problema de Delimitação de Direitos, I vol., 1990, pp. 558-9.

(5) Dada a já referida intransmissibilidade das penas, só a tentativa de suicídio poderia ser punível. Porém, nem mesmo na forma tentada o suicídio é incluído no elenco dos tipos de crimes. Mas a tentativa de suicídio foi incriminada em várias ordens jurídicas até um passado recente por exemplo, na Inglaterra só foi descriminada em 1961 (cfr. Fernanda Palma, Direito penal, Parte Especial, Crimes contra as pessoas, 1983, p. 92 e n.3).

(6) Cfr. Fernanda Palma, Crimes contra as pessoas, op. cit., pp. 93-4.

(7) Na exigência do «fazer mal a outrem» confluem duas condições de legitimidade da incriminação a sua necessidade para a defesa de bens jurídicos e a ressonância ética da conduta a incriminar. Cfr., sobre isto, Rui Pereira, O crime de aborto e a reforma penal, 1995, p. 71 e ss.

(8) Cfr. Francis Caballero, Droit de la drogue, 1989, p. 116 e ss.

(9) Em matéria de coacção, a nova versão do Código Penal (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março) consagra uma cláusula de não punibilidade quando o agente visa evitar o suicídio. Tal cláusula pode considerar-se uma causa de justificação especial, o que reforça a ideia de que o suicídio não corresponderá, propriamente, a um direito subjectivo.

(10) Cfr. Rui Pereira, O crime de aborto e a reforma penal, op. cit., p. 74.

(11) Cfr. o texto integral deste relatório na Sub Judice, cit., p. 95 e ss. (p. 99).

(12) Não creio que a expressão «intenção», a que o legislador recorre, no artigo 20.º, n.º 4, do Código Penal, possa ser referida a qualquer modalidade de dolo, como pretende Teresa Quintela (Crime praticado em estado de inimputabilidade auto-provocada por via do consumo de álcool ou drogas, 1991, p. 126 e ss.). Tal interpretação parece-me incompatível com o princípio da legalidade, desde logo porque o legislador refere expressamente a intenção ao dolo directo (artigo 14.º, n.º 1) e, na própria Parte Especial do Código Penal, a elementos subjectivos especiais da ilicitude estruturalmente idênticos ao dolo directo (cfr., por exemplo, os artigos 203.º e 217.º, para os crimes de furto e burla, respectivamente).

(13) Sem que, no entanto, a pena possa exceder a prevista para o facto ilícito típico praticado artigo 295.º, n.º 2.

(14) Trata-se de uma condição objectiva de punibilidade «imprópria» porque, embora exterior ao ilícito típico, documenta indirectamente a sua gravidade cfr. Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts, Allgemeiner Teil, 4.ª ed., 1988, pp. 502-3. Como condição objectiva de punibilidade «imprópria», este elemento pode considerar-se uma circunstância agravante dissimulada, dificilmente conciliável com o princípio da culpa, porque subtraído às exigências de imputação subjectiva (a título de dolo ou negligência). Porém, em última instância, esta técnica é admissível nos planos constitucional e político-criminal por maioria de razão relativamente às condições objectivas de punibilidade próprias (se o Estado pode restringir o poder punitivo por circunstâncias objectivas, porque não há-de incluir entre elas algumas que documentem a gravidade do ilícito típico ?). A verdadeira prova de fogo a que devem ser sujeitas as condições objectivas de punibilidade impróprias é a seguinte: sem elas, os respectivos ilícitos típicos subsistiriam sem ofensa do princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição) ? Só no caso de resposta negativa se comprovará a ilegitimidade da técnica legislativa (por cedência à responsabilidade objectiva).

(15) A revisão de 1995 do Código Penal vergou-se, por razões de segurança jurídica, ao objectivismo, nesta matéria, como, em geral, na determinação da gravidade dos crimes contra o património [cfr. artigo 202.º, alíneas a), b) e c)]. Não creio que seja possível, porém, fazer distinções ao nível do dolo ou da negligência referidas a quantidades exactas (sejam de percentagem de álcool no sangue, escudos ou dias de doença...) vide, neste sentido, Rui Pereira, O dolo de perigo, 1995, p. 148, n. 21. E, aliás, se essas distinções fossem viáveis, sempre seríamos confrontados com a necessidade de distinguir o punível do não punível através de uma simples unidade (um por cento, um escudo ou um dia de doença...).

(16) Cfr. os artigos 87.º, n.º 1, e 148.º, alínea m), do Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio.

(17) Na verdade, o princípio da culpa (que implica a pessoalidade da responsabilidade penal) infere-se da dignidade da pessoa humana, em conjugação com os direitos à integridade moral e à liberdade. Isto é reconhecido mesmo por quem questiona que a obediência ao princípio da culpa seja, por si só, conditio sine qua non da constitucionalidade material de uma norma penal (relativamente a imputáveis), como faz Figueiredo Dias [«O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, 2.º a 4.º (Abril-Dezembro de 1993), p. 173, n. 34]. A questão tem especial relevância para aferir a conformidade constitucional da pena relativamente indeterminada, que, em parte, é uma verdadeira medida de segurança aplicável a imputáveis (artigo 83.º do Código Penal).

(18) A Lei n.º 22/82, de 17 de Agosto, proíbe a publicidade ao tabaco (artigo 2.º) e o fumo em unidades de saúde, locais destinados a menores, estabelecimentos de ensino, recintos desportivos fechados e salas de espectáculo (artigo 3.º). Esta lei cominava mesmo multas (não coimas) para as infracções.Viria, entretanto, a ser regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 226/83, de 27 de Maio, o qual, por seu turno, foi alterado pelos Decretos-Leis n.os 393/88, de 8 de Novembro, e 287/89, de 30 de Agosto. O sentido destes diplomas foi alargar o âmbito das proibições de fumar e convertê-las em contra-ordenações (sancionadas com coimas de 1.000$00 a 100.000$00).

(19) Cfr., neste preciso sentido, o Acórdão n.º 426/91 do Tribunal Constitucional, D.R., II Série, de 6 de Novembro de 1991.

(20) Qualquer destas ideias seria, a priori, plausível: aos 18 anos atinge-se a maioridade (artigo 130.º do Código Civil); aos 16 anos, a imputabilidade penal e a idade núbil [artigos 19.º do Código Penal e 1601.º, alínea a), do Código Civil]; a partir dos 14 anos pode consentir-se, relevantemente, na ofensa de interesses jurídicos livremente disponíveis e prestar trabalho subordinado (artigos 38.º, n.º 3, do Código Penal e 123.º, n.º 1, do Decreto--Lei n.º 49408, de 21 de Novembro de 1969).

(21) A saga dos Corleone, imortalizada por Francis Ford Coppola, retrata bem este mimetismo: o patriarca da família é vítima de um atentado (O Padrinho I), justamente por não compreender que o fim da lei seca impunha uma mudança de actividade (para o tráfico de droga...).

(22) Cfr. os preâmbulos dos Decretos-Leis n.os 15/93 e 430/83.

(23) Pensamento que se exprime no conhecido imperativo prático formulado por Kant: «Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio» (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Trad. Paulo Quintela, reimp. 1992, p. 69).

(24) Sobre a necessidade de distinguir materialmente crimes de contra-ordenações, elegendo como paradigma dos primeiros, no âmbito do perigo, o crime de perigo concreto (com dolo de perigo), cfr. Rui Pereira, O dolo de perigo, op. cit., p. 147 e ss.

(25) Foi este o caminho seguido, recentemente, em Espanha (desde a entrada em vigor do Decreto n.º 1079/93, de 2 de Julho) e em Itália (na sequência do referendo de 17 de Abril de 1995), países em que o consumo de droga é qualificado agora como ilícito administrativo.

(26) Cfr., por exemplo, os artigos 146.º, n.º 1, 158.º, n.º 4, 160.º, n.º 3, 177.º, n.os 1, 2 e 4, e 197.º do Código Penal.

(27) O n.º 1 do artigo 51.º do Decreto-Lei n.º 15/93 equipara a «terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada» os crimes de tráfico (não privilegiado), desvio de precursores, branqueamento e associação criminosa (artigo 1.º, n.º 2, do Código de Processo Penal). Por outro lado, em todos estes casos se aplica o regime dos artigos 209.º, n.º 1, e 215.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (ex vi do artigo 54.º do Decreto-Lei n.º 15/93). Assim, o juiz deve, no despacho sobre medidas de coacção, indicar os motivos que o levam a não aplicar a prisão preventiva (artigo 209.º, n.º 1) exigência que não se tem como inconstitucional, por não afastar a subsidiariedade da prisão preventiva (artigos 28.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) nem dispensar a justificação positiva da medida de coacção (distinta da prisão preventiva) que o juiz vier a aplicar. Os prazos de duração máxima da prisão preventiva são alargados, nos termos do disposto no artigo 215.º, n.º 3.

(28) Com alguma ambiguidade e sob a epígrafe «Actos de colaboração ou instrumentais», o artigo 6.º da Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro, dispõe o seguinte :

«1 É legítima, com vista à obtenção de provas em fase de inquérito, a prática de actos de colaboração ou instrumentais relativamente aos crimes previstos no n.º 1 do artigo 1.º do presente diploma (corrupção, peculato, participação económica em negócio, administração danosa no sector público, infracções organizadas com recurso à informática e infracções internacionais ou transnacionais).

2 Os actos referidos no número anterior dependem sempre da prévia autorização da autoridade judiciária competente.»

(29) Neste sentido se pronunciam, na doutrina alemã, Wolter, «Repressive und präventive Verwertung tagebuchartger Aufzeichnungen», StV, 1990, p. 175 e ss., e, na nossa doutrina, Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, 1992, pp. 232-3.

(30) Não se concorda, neste ponto, com o privilegiamento da dimensão processual do problema, sustentada por Costa Andrade (op. cit., p. 229). O tratamento da questão no plano do direito material é defendido na doutrina alemã, nomeadamente, por Roxin, Strafverfahrensrecht, 20.ª ed., 1987, p. 125 e ss.

(31) Não me parece que seja de excluir, nestes casos (e só neles...), o tratamento da questão em sede de medida de pena, ponderando, na sua determinação judicial, o papel determinante do funcionário, que tenderá a mitigar a responsabilidade do autor material. Criticamente sobre este ponto (analisando a orientação da jurisprudência alemã) se pronuncia, contudo, Costa Andrade, op. cit., p. 226.


Este texto da autoria do Prof. Rui Carlos Pereira
foi publicado no numero 65 da Revista do Ministério Público
a qual está disponivel online em http://www.smmp.pt/rmp.htm

Publicado com o consentimento do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público

Agosto de 1997

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