A BIENAL DE VENEZA

Paulo Menezes

Arte em S�o Paulo n� 35, mar�o de 1987, p. 30-35


A Bienal de Veneza � sempre esperada com grande expectativa. E, sem sombra de d�vida, junto com a Documenta de Kassel, a mostra coletiva mais importante do mundo: � o lugar onde convergem todos os olhos e ouvidos que buscam saber o que h� de novo na arte internacional. Se n�o bastasse isso, ela acontece numa das mais belas cidade que o homem j� construiu. Cidade sem ve�culos, cortada por estreitos canais e por onde se anda em total despreocupa��o .

De imensas propor��es, com a participa��o de 40 pa�ses, a Bienal acaba se espalhando em cinco sedes, al�m de usar a Riva dei sette martiri que acompanha a sinuosidade a beiramar at� a Piazza San Marco. Local aberto por onde se distribu�ram as esculturas participantes dos v�rios pa�ses. Pela quantidade de obras reunidas numa exposi��o deste tipo, sua dispers�o pode parecer negativa � primeira vista, for�ando o p�blico a um intervalo obrigat�rio entre uma e outra parte � descanso visual necess�rio que seria imposs�vel se todas as obras ficassem em um mesmo edif�cio. A sede principal, situada no Giardini de Castello atesta e comprova tal necessidade. Cada pa�s tem sua pr�pria sede, pequenas constru��es espalhadas em meio a um parque � o que faz com que o visitante passeie entre as �rvores e relaxe at� chegar a um outro pavilh�o. Com essa infra-estrutura, � muito dif�cil que a Bienal n�o seja, no m�nimo, extremamente agrad�vel.

As participa��es nesta XLII exposi��o internacional, entretanto, n�o foram coerentes com as expectativas. Duas coisas merecem aten��o. Primeiro, o retorno em massa � op��o de se expor telas e esculturas invertendo-se a tend�ncia que vinha desde 1980 onde as instala��es predominaram. E depois, o privil�gio concedido ao reconhecido em detrimento do novo, por mais question�vel que ele seja ap�s o vale-tudo que imperou nos �ltimos anos.

A grande maioria dos curadores preferiu n�o arriscar. Enviou artistas de renome para, no caso de errar no varejo, acertar no atacado. Assim, o que se viu foi uma imensa repeti��o de artistas j� conhecidos e por demais vistos pela Europa e at� no Brasil. Esse ato de re-conhecer pode levar � falsa (?) impress�o de que pouca coisa nova vem surgindo ap�s a onda neo- expressionista que passou por l� h� alguns anos, antes de passar por aqui, e que trazia novidades tamb�m question�veis. Nesse sentido, a Bienal de Veneza somou pouca coisa ao imagin�rio do p�blico acostumado a acompanhar os caminhos e descaminhos da arte desta era " p�s" .

Por�m, algumas coisas merecem destaque. A Inglaterra optou, ao contr�rio da maioria dos pa�ses por apresentar apenas um artista A exposi��o de uma quantidade significativa de obras permitiu ao p�blico um aprofundamento visual que seria imposs�vel com apenas dois ou tr�s quadros de um pintor. Assim, as telas de Frank Auerbach, com seus tra�os espessos e vigorosos, insinuavam imagens que a sensa��o percebia e que eram refor�adas pela experi�ncia em torno de motivos semelhantes retrabalhados incansavelmente.

A Austr�lia seguiu o mesmo caminho, apresentando a obra de Imants Tillers que, por sinal, j� passou pelo Brasil na Xlll Bienal, em 75, quando tinha apenas 25 anos. Suas pinturas s�o compostas de pequenas telas retangulares que, agrupadas lado a lado, vertical e horizontalmente, v�o compondo imagens que acabam tomando conta de toda a superf�cie da parede. "Cada pintura deriva de imagens reproduzidas total ou parcialmente de cat�logos e revistas" (Tillers). Tal processo permite que uma imagem n�o resolvida em uma composi��o- pintura possa ser "transportada" para outro contexto pict�rico onde ir� adquirir nova significa��o. Tillers, devedor das observa��es de Walter Benjamin, tenta reinstaurar a "aura" perdida das obras-de-arte pela sua reprodutibilidade t�cnica, onde a reprodu��o chega e assume o lugar do original, abstraindo-o de seu lugar pr�prio, de suas cores originais e de suas dimens�es verdadeiras. Quem de n�s nunca foi surpreendido, num museu qualquer, ao se deparar com uma obra que j� admirava h� anos e que j� Ihe era familiar, e descobrir, estupefato, que aquele quadro que imaginava imenso n�o s� � de min�sculas dimens�es como tamb�m suas cores n�o s�o bem aquelas. Os caminhos de nossa imagina��o seguem caminhos que n�o se iludem com os n�meros abstratos da dimens�o real que acompanham toda reprodu��o. Pensar que "As Meninas" de Vel�zquez tem 3,18 X 2,76 metros quando olhamos uma reprodu��o de 20 X 25 cm d� a nossa imagina��o tudo menos a sensa��o que � olhar este quadro isolado, numa pequena sala do Museu do Prado, com ilumina��o a meia-luz. Esta � sua real grandeza.

Imants Tillers - acr�lico e pastel oleoso sobre 132 peda�os de tela.
279 x 457 cm.
Imants Tillers - acr�lico, �leo e pastel oleoso sobre 130 peda�os de tela.
279 x 462 cm.

Ao propor a re-leitura de imagens reproduzidas em subst�ncia, com escala e textura totalmente diferentes de seus originais, os trabalhos acabados de Tillers tornam-se partes de uma pintura "sempre em expans�o e na qual cada novo trabalho � absorvido". Ao mesmo tempo, conseguem propiciar a curiosa possibilidade de empilhar as partes remov�veis da parede num canto qualquer da sala. "Como simples massa, volume e substancial isso permite um descanso das imagens j� trabalhadas� o que Tillers reputa fundamental para seu processo criativo. Ao tentar inverter o processo descrito por Benjamin, suas grandes composi��es abrem para novos caminhos a serem trilhados e percorridos por suas investiga��es visuais.

No pavilh�o japon�s, o artista Isamu Wakabayashi, usando rolos de borracha e placas de metal distribu�das pela sala, enquanto Maita expunha no exterior suas esculturas de ferro retorcido, propunha uma interessante reflex�o sobre o espa�o e sua apropria��o. Seu retorno a mat�rias-primas � expressivamente significativo, levando-se em conta a sociedade japonesa atual, totalmente absorvida em seu espa�o e tempo pela cibern�tica e a inform�tica.

Daniel Buren ocupou todo o pr�dio de seu pa�s. Recentemente, causou pol�mica com sua instala��o de colunas pretas de v�rios tamanhos, pintadas com faixas brancas, organizadas quadricularmente na pra�a do Palais Royal em Paris. Sempre com suas estreitas faixas verticais, como aquelas que vimos na arma��o labir�ntica de panos brancos com tiras amarelas que dominavam o mezzanino da �ltima Bienal de S�o Paulo. O mais surpreendente nesta nova edi��o de Buren � sua extrema criatividade, sempre trabalhando com as mesmas refer�ncias visuais. Desta vez, com faixas, de espelhos na fachada de entrada, numa meia sala sem o reboco da parede, deixando os tijolos � mostra, e em outra sala onde s� o rodap� era tomado pelas faixas verticais. O resultado mostrou que as combina��es agora extrapolam as cores e o comprimento das faixas, podendo ser levadas ao infinito. Sempre, sem fugir de seu par origin�rio: faixas de mesma largura, uma positiva-presen�a, outra negativa-aus�ncia de interven��o, mat�ria, cor.

Uma curiosa sinfonia de pingos de �gua podia ser vista no pavilh�o grego onde uma centena de torneiras, com tr�s metros de altura, pingando cada uma com uma freq��ncia pr�pria em baldes de metal, traziam ao espectador uma estranha sensa��o de musicalidade aqu�tica. Express�o de uma cultura profundamente marcada por refer�ncias ao azul da �gua do mar que envolve a Gr�cia, obras tridimensionais onde a separa��o entre o espa�o interno das telas e o espa�o f�sico no qual estavam era dilu�da: este foi o testemunho do artista Costa Tsoclis. E no rito de passagem entre Arte e Ci�ncia (tema da Bienal), uma outra s�rie de esculturas merece ser lembrada.

28 esculturas espalhadas entre o pavilh�o da Isl�ndia e Holanda

Ernest-Pignon-Ernest

Mais do que esculturas, uma verdadeira interven��o na natureza, segundo seu autor Ernest-Pignon-Ernest. O ponto de partida central de sua obra � o fen�meno da fotoss�ntese (transforma��o da luz em energia). Modelando c�lulas vegetais imobilizadas em poliuretano, foram criadas 28 esculturas em forma humana que se espalhavam pelos troncos e copas das �rvores entre o pavilh�o da Isl�ndia e da Holanda. Corpos Humanos Verdes se confundiam com a pr�pria folhagem das �rvores e ressaltavam a id�ia do artista que pretendia que qualquer realismo desse lugar � pr�pria osmose com o vegetal. Osmose esta que n�o se reduzia somente ao aspecto pl�stico, mas � pr�pria concep��o e sobreviv�ncia destes personagens. Pois, como qualquer planta, estas esculturas precisam de sol e de �gua para n�o morrer. Esculturas vivas. A cria��o desse espa�o pl�stico-vegetal tinha como pressuposto que, "pela inser��o de esculturas-vegetais, o espa�o vegetal se transforma ele mesmo em escultura". Id�ia interessante e que curiosamente n�o foi notada pela maioria das pessoas. As esculturas vegetais estavam camufladas no alto das �rvores, passando despercebidas pelo p�blico que, de forma geral, andava sem olhar para cima.

E a participa��o brasileira n�o foi, de resto, incoerente, com a dos outros pa�ses que privilegiaram artistas j� consagrados. Mas um fato merece reflex�o. Com o nome de "A Arte do Povo Brasileiro", foram reunidos, lado a lado, Renina Katz, Geraldo de Barros, Gast�o Manoel Henrique e a Arte Ind�gena Brasileira. A presen�a inusitada da arte plum�ria numa Bienal pode causar algum espanto. Afinal, mais do que um suposto reconhecimento da produ��o art�stica ind�gena, ela parece mais a express�o de um certo complexo de culpa diante da impot�ncia de se transformar as condi��es miser�veis em que vivem as popula��es ind�genas no Brasil. Nossos �ndios parecem ter finalmente adquirido uma certa cidadania. Fora de lugar.

C. Tsocllis. Gr�cia. Instala��o, 250 x 750x 400 cm.

O cat�logo brasileiro apresenta alguns esclarecimentos: "A exig�idade de tempo, contudo (dois meses), convenceu-me de que o pesquisador deveria ceder lugar ao tema oferecido, restringindo-se ao seu papel de criador de um espa�o correspondente � sua pr�pria cosmovis�o. Na verdade, toda escolha depende de vari�veis de base est�tica, afetiva, t�cnica e outras. Uma delas por�m parece-me importante, por refletir um sentimento do pr�prio cr�tico que percebe no modismo e na aus�ncia de profissionalismo art�stico uma doen�a estimuladora do subdesenvolvimento e da castra��o do crescimento intelectual de seu povo. Por isso defini crit�rios a partir dos quais procurei apreciar obras n�o tuteladas pelos modismos propostos pela guarda pretoriana do novismo art�stico, a mais pat�tica das academias algoz da livre express�o e estrangulador do ide�rio inventivo particular de cada artista. As obras aqui apresentadas correspondem, ao contr�rio, a um longo processo de trabalho, �rduo e silencioso, que sempre de certa maneira estiveram um tanto � margem da moda dos �ltimos anos. Seus autores, indiferentes �s explos�es de vendagem de obras conceituais ou neo-expressionistas, trabalham movidos apenas pela livre express�o, pela pronta concretiza��o de suas inven��es e dos seus sistemas de cria��o art�stica (...). Estas obras t�m em comum o tra�o tentativo de um bom e equilibrado artesanato art�stico e uma norma correspondente, oriunda de uma inven��o particular para seu processo de cria��o". Radha Abramo - curadora).

Algumas coisas aqui merecem ser ressaltadas. A primeira � que parece existir uma certa confus�o entre o processo artesanal de estudo e a execu��o cuidadosa de uma obra de arte, com o artesanato produtor de arte plum�ria. Ressaltar suas identidades de processo sem discernir as diferen�as que a unidade processo obra final engendra faz perder de vista a temporalidade distinta de dois g�neros de obras produzidos ao e no mesmo tempo. No sentido que, como � �bvio, a temporalidade de uma obra � dada pela forma de percep��o que a informa, e n�o pela sua data de fabrica��o.

Quanto aos modismos e ao novismo art�stico, a quest�o � um pouco mais delicada. Ao associ�-los � aus�ncia de profissionalismo, portanto � aus�ncia de pesquisa cuidadosa de elabora��o, podemos ser levados a crer que n�o existe, nas gera��es de artistas posteriores � dos escolhidos, nenhum que n�o "estrangulou seu ide�rio inventivo" e que n�o se rendeu � "guarda pretoriana", ou que a exig�idade de tempo n�o permitiu que estes fossem encontrados. Alguns passeios pelas exposi��es somente de S�o Paulo j� levantariam s�rias d�vidas a esse respeito. Pois encontrar�amos sem d�vida artistas cuidadosos que tamb�m estiveram � margem do homogenismo acachapante que os pre�os de vendagem do mercado acaba realizando na produ��o de obras. Da mesma forma, acreditamos que existam artistas conceituais e neo- expressionistas movidos apenas pela livre express�o de sua sensibilidade art�stica. Afinal, selecionar tamb�m � um longo processo, �rduo e trabalhoso, mesmo que n�o muito silencioso. N�o estamos entrando no m�rito das obras escolhidas, mas o que deve ficar claro � que a tend�ncia � cr�tica generalizada e generalizadora pode carregar um germe de incompreens�o. Pois o modismo n�o atinge a todos e nem todos que est�o na moda s�o obrigatoriamente levados pela �nsia de prest�gio. Da mesma forma, n�o podemos esquecer o papel da cr�tica em rela��o ao refor�o de certos modismos. Esperamos que, na Bienal de 1987, o Brasil, atacado por alguma esp�cie de populismo deslocado, n�o participe enviando rendas de bilro ou est�tuas de barro dos mestres de Caruaru (por mais representativas que sejam), junto com uma somat�ria de artistas � cada um com poucas obras, sem qualidade e tornando a representa��o brasileira um conjunto fraco e desconexo.

Outro ponto alto desta Bienal de Veneza foram as exposi��es paralelas. Em torno do tema " Arte e Alquimia", foram apresentados nomes que fizeram a arte moderna deste s�culo. De Picasso a Jasper Johns, passando por Max Ernst, Dali, De Chirico, Man Ray, Kandinsky, Arp, Duchamp, Tanguy, Picabia, Mir�, Klee, Brancusi, Giacometti, entre outros. Com isso, um grande panorama da arte moderna p�de ser visto ao lado das participa��es nacionais.

A rela��o entre arte e maravilha era a interroga��o constante dos trabalhos reunidos em "Wunderkammer". Foi reconstru�do o arm�rio das maravilhas de Domenico Tessari, doutor em medicina (s�c. XVI�P�dova), lugar onde se colecionavam curiosidades: corais, f�sseis, objetos ins�litos, minerais raros, animais empalhados, instrumentos, vasos, cornos de rinoceronte, e outros objetos pouco convencionais. Do s�culo XVI at� hoje, foram expostos obras e materiais que alimentaram a imagina��o dos artistas, e cuja produ��o questionava os limites do mimetismo entre arte e natureza.

Quadros da escola de Arcimboldo onde frutas, verduras e legumes s�o organizados para compor figuras humanas; o arm�rio-farm�cia de Joseph Cornell; um par de sapatos de salto alto, brancos e amarrados, servidos em uma bandeja de a�o inoxid�vel (da cole��o de Andr� Breton); uma motocicleta com um guid�o feito com chifres de touro, de M�rio Merz; um "Pellemondo", globo terrestre feito com pele de vaca por Cl�udio Parmiggiani; duas bicicletas em torno de uma mesa, totalmente cobertas por fragmentos de pl�stico (Tony Cragg) e v�rias outras obras compunham este passeio onde se acumulavam e se conciliavam os mais estranhos materiais colecionados pelos artistas e que expressam a liga��o entre imagina��o, curiosidade, maravilha e arte.

N�o deixa de dar inveja ter museus t�o pr�ximos, o que permite a montagem de exposi��es de tal envergadura e a obten��o de recursos necess�rios para sua efetiva��o. Exposi��es dignas da expectativa de uma Bienal como a de Veneza, e que serviram como sedutora porta de entrada para o que est� sendo produzido em arte, hoje.

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