DECIFRANDO O ABISMO

Paulo Roberto Arruda de Menezes

Professor do Departamento de Sociologia da FFLCH/USP

Autor de �A Trama das Imagens�, EDUSP



Folha de S�o Paulo, jornal de resenhas, 10/01/97, p. 7.



Desde sua capa, que cont�m um orif�cio pelo qual dois olhos misteriosos nos interrogam, nos perguntamos o significado da proposta deste livro, que � desde logo explicitada pelo seu autor: �pensar a quest�o da loucura em rela��o � arte a partir da perspectiva dos receptores que entram em um campo amb�guo instaurado pelas obras�.

Utilizam-se, como material primordial de elabora��o, as entrevistas realizadas com o p�blico da exposi��o de �Arte Incomum�, da XVI Bienal de S�o Paulo (1981), que reunia em sua maioria �artistas� advindos ou internados em institui��es psiqui�tricas. N�o sendo propriamente uma novidade, pergunta-se que novos campos de indaga��es a inser��o de uma exposi��o com este formato traria aos olhos do p�blico de ent�o, da mesma forma que n�s n�o podemos deixar de indagar que tipo de desdobramentos a reflex�o sobre este tema, quinze anos depois, poderia trazer para os olhos do leitor de agora.

Ao lermos a s�rie de depoimentos, ficam claras algumas das percep��es do p�blico em rela��o �s obras expostas, que reunia alguns nomes conhecidos do p�blico internacional, como o Facteur Cheval, Scottie Wilson e W�lffli, ao lado de Antonio Poteiro, Emygdio e Raphael, entre outros.

Raphael, (!912-1979), sem t�tulo,
47 x 32 cm.Nanquin sobre papel.

A primeira delas � uma completa dificuldade em conseguir tra�ar a linha que distinguiria o �louco� do �n�o-louco�, e que poderia ser transformada em crit�rio de valida��o da pr�pria obra de arte como tal.

Uma outra, ainda mais instigante, � a que faz deslizar o discurso dos que estavam naquele espa�o para rela��es com as obras de outros autores que �pareciam� estar l�, numa curiosa e sintom�tica ilus�o espacial; ou dos que �poderiam� estar l�, numa interessante dissolu��o dos crit�rios que separam e hierarquizam saberes diferenciados. Assim, apareciam lado a lado, na mem�ria visual dos espectadores artistas como Cheval e Gaudi, Raphael e Klee, Heinrich M�ller e Paul Delvaux.

Esse tr�nsito sem fronteiras acabava por causar espanto no momento em que os entrevistados eram alertados de que ali estavam vendo a obra de �internados�. Este dado causava uma instant�nea ressignifica��o do que era visto e apreciado. Da mesma forma que o fazia com aqueles que entravam no espa�o da exposi��o, sabendo de antem�o de que �artistas� se tratavam. O que os depoimentos ressaltam � que, dado este �alerta�, o discurso explicativo dos observadores acabava por girar em torno dos limites poss�veis das defini��es do que seria arte, do que poderia ser concebido como loucura e do que poderia ser compreendido pelo termo �arte incomum�. Em ambos os casos os limites se esboroavam, e os visitantes ficavam a se perguntar o que definiria os lugares, os espa�os e os saberes. O ponto de encontro da maioria dos depoimentos era aquele que se referia � empatia que eles estavam tendo com aquelas obras e as sensa��es que neles eram despertadas.


Facteur Cheval (1816-1912), Pal�cio Ideal, 1879-1912.

Mas, ao lado destas, outras quest�es que daqui se desdobram demandam um olhar cuidadoso.

As vis�es que relacionam arte e loucura s�o investigadas sob duas entradas: a do lugar te�rico desse tema na Modernidade, e por meio das obras da Bienal de S�o Paulo e do Museu de Imagens do Inconsciente. Pode-se ent�o chegar ao momento crucial do livro, que foi chamado pelo autor de maneira muito apropriada de �Abismo�.

Este abismo nos � mostrado em v�rias dimens�es, todas articuladas por uma delas, que � o verdadeiro cora��o do livro: a que redimensiona a obra de arte como um �trabalho�. Momento desvelador, � aqui que se revelam os pressupostos que permitem a coexist�ncia de olhares num campo marcado pela inseguran�a e pela indefini��o, pois se coloca em quest�o a leitura das obras e as suas possibilidades de interpreta��o.

Dois campos opostos se constroem: o que d� prioridade interpretativa e ontol�gica ao autor, e o que acaba por priorizar o outro lado da rela��o, o p�blico. Ali, temos um observador �neutro�, que buscaria pelo maior aprimoramento de seu instrumental de aprecia��o, fazer surgir por si s� uma verdade que seria constituinte da pr�pria obra e que l� estaria aguardando para ser corretamente investigada e decifrada. No p�lo oposto ter�amos uma atitude �subjetiva� que, partindo das condi��es hist�ricas do observador, buscaria confirmar ou recusar as suas pr�prias posi��es.

Entre elas se encontraria o que Lascault chamou de �desventuras da abordagem psicanal�tica�, que reduziriam as obras a sintomas mascarados de uma certa condi��o mental que exigiria um saber espec�fico e especial (o psicanalista) para a sua interpreta��o. O ponto de uni�o destas posi��es aparentemente inconcili�veis � o pressuposto, comum a todas, de que existe uma �verdade da obra�, j� dada e esperando para ser �descoberta�. Assim, por um lado ou por outro, a preexist�ncia de um �sentido verdadeiro� demanda do observador a arg�cia e a paci�ncia de um decifrador, que, com o olhar munido de aparatos poderosos, saberia como ningu�m separar o ouro do cascalho.


W�lffli (1864-1930), Vis�o Geral da Ilha Neveranger, 1911.
L�pis e l�pis de cor sobre papel jornal, 98,8 x 71,2 cm.

A quest�o fundamental est� posta: quem � que define quem fala e de onde se fala a �verdade� das obras de arte e, portanto, o que est� por tr�s da constitui��o desses saberes? Este problema, suscitado pelos olhares dos visitantes da Bienal, coloca em relevo a atualidade das perguntas que o autor nos prop�e, ao mesmo tempo que redimensiona os significados que dali desdobram.

Ao expor os v�rios saberes que demandam legitimidade ao tentar definir o que � arte, o que � loucura, o que � cria��o, o que temos, n�o � a gradativa aproxima��o de algo que nos levasse cada vez mais perto de uma suposta �verdade� intr�nseca das obras, mas exatamente ao seu oposto, ao pensar o significado das obras como um eterno vir a ser que pode assumir tantas fei��es quantos os pontos de vistas das perguntas que o olhar a elas formula: ressalta-se o lugar diferencial que elas ocupam na busca de constitui��o de um saber que se legitimaria sobre os outros, desqualificando-os, como saberes e como obras.

Esta proposi��o nos remete a outros momentos do abismo: o que tenta dar conta da rela��o problem�tica entre arte e loucura e o que poderia criar um campo diferenciado das obras elaboradas por dois �tipos� de artistas diferentes. Aqui, busca-se reconstituir um caminho que, desde tempos antigos associa �cria��o� a um escapar das amarras que nos ligam � nossa vida cotidiana opressora em busca de nossa interioridade mais profunda, lugar de encontro do Homem com o Mundo. Assim, del�rio, sonho, afastamento da raz�o, escapar do consciente, encontrariam no que Foucault chamou de �experi�ncia tr�gica� a ascens�o e a queda que nos permitiriam perceber o diferente no seio do sempre igual. Se Klee nos disse que �escolhidos s�o os artistas que penetram a regi�o daquele lugar secreto onde a for�a primeva alimenta toda a evolu��o�, a diferen�a � que os artistas �incomuns� chegam a isso de uma maneira espont�nea e n�o por meio de artif�cios, como as intermin�veis sess�es de trabalho de C�zanne, que, entre duas pinceladas, se esfor�ava para esquecer tudo que a �hist�ria� da pintura havia lhe ensinado. O que interessa ressaltar � que os produtos, as obras, s�o indissoci�veis se n�o conhecemos o seu contexto: dos �loucos�, de Klee, das vanguardas do come�o do s�culo.

Jean Dubuffet (1901-1985), Corps de Dame, 1950.
Nanquin, 27 x 21 cm.


Isto nos remete �s �ltimas perguntas. A primeira delas, feita pelo autor, � se este tipo de exposi��o, que recoloca e ressignifica obras que at� ent�o eram tidas como marginais, n�o acabaria por esmaecer as suas potencialidades questionadoras, refor�ando a exclus�o social do �louco� na mesma dimens�o de sua aceita��o como um �artista� que agora se confunde com os outros. Assim, a quest�o da alteridade estaria novamente colocada de lado ao se encontrar um registro que refor�aria apenas as similitudes. H� de se pensar se esta exclus�o, realizada pela m�o do especialista que lhe deu voz e lugar, n�o condenaria o �louco� definitivamente a um sil�ncio ainda mais profundo do que aquele ao que antes ele era relegado.

E a derradeira, que eu deixo no ar: se um Museu de Imagens do Inconsciente, que abriga obras dos internados de uma institui��o, n�o estaria ele mesmo recriando uma �tradi��o� de refer�ncia � constitui��o das obras, um outro lugar no qual estaria surgindo uma �hist�ria da cultura visual�, novos �c�nones� de refer�ncia a trabalhos dos quais eles deveriam estar desligados.

Pois, afinal, �existem momentos na vida em que a quest�o de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se v�, � indispens�vel para continuarmos a olhar ou a refletir� (Foucault).


Escuta/Fapesp 188 p�gs.

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Folha de S�o Paulo, jornal de resenhas, 10/01/97, p. 7.



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