Exegetando Romanos 3:10-18
Texto
O apóstolo Paulo, em sua carta aos cristãos de Roma, constituída de ambos judeus e gentios, pergunta, no capítulo três, se existe vantagem em ser judeu, ou na prática da circuncisão. Ele responde: "Muita, em todo sentido!" (Rm 3:2). Ele explica que aos judeus foram confiados por Deus as suas palavras e promessas, e que só porque eles foram majoritariamente infiéis, isto não nulifica a fidelidade ou promessas de Deus (Rm 3:3).
Porém, e este é o ponto crucial pelo qual Paulo escreverá em Romanos 3:10-18, o povo judeu não tem vantagem eterna ou salvífica sobre os gentios. A situação eletiva dos judeus não era uma de eleição incondicional para fé e salvação. Os judeus foram eleitos ou escolhidos por Deus para serem o veículo pelo qual Ele traria salvação para o mundo mediante Seu Filho Jesus Cristo. Paulo escreve: "Pois já demonstramos que, tanto judeus como gentios, todos estão debaixo do pecado;" (Rm 3:9d AR). O indivíduo judeu precisa do Salvador tanto quanto o indivíduo gentio. Este é o ponto de Paulo. Paulo, usando diversas passagens do Antigo Testamento, escreve:
[10] como está escrito: Não há justo, nem um sequer.
[11] Ninguém há que entenda, ninguém há que busque a Deus.
[12] Todos se desviaram, e juntamente se tornaram inúteis. "Não há quem faça o bem, não há um sequer". {Sl 14:1-3, 53:1-3; Ec 7:20}
[13] "Suas gargantas são sepulcro aberto; com suas línguas enganam"; {Sl 5:9} "veneno de serpentes está sob seus lábios". {Sl 140:3}
[14] "Suas bocas estão cheias de maldição e amargura". {Sl 10:7}
[15] "Seus pés são velozes para derramar sangue.
[16] Destruição e miséria há em seus caminhos,
[17] e não conheceram o caminho da paz". {Is 59:7-8}
[18] "Diante dos seus olhos não há temor a Deus". {Sl 36:1}
{Romanos 3:10-18 BLIVRE}
O estudante da Escritura deve observar estas passagens individualmente, considerando o contexto de Romanos capítulo três e as Escrituras que Paulo cita, em oposição a despreocupadamente concluir que todos os seres humanos são na realidade tão abomináveis e depravados quanto poderiam ser. Mesmo que todos os pecadores inequivocamente sejam depravados e careçam de inerente bondade, eles não são, pela graça de Deus, tão malignos ou depravados quanto podem ser, nem são todos eles igualmente depravados. Eu tenho lido e ouvido algumas interpretações calvinistas destas passagens para o fim de que elas demonstram que todas as pessoas são igualmente depravadas. Esta interpretação não deveria ser válida.
Eu também tenho testemunhado alguns cristãos, supondo-se ser humildes, citando estes versos e aplicando-os a si mesmos. Esta interpretação também não deveria ser válida. Nós simplesmente não podemos ignorar a intenção de Paulo ao citar estas passagens em particular nem seu uso da interpretação judaica conhecida como Midrash (explicada abaixo). Tivéssemos feito isto, concluiríamos com muitos erros teológicos.
Contexto
O contexto de Romanos capítulo três é que todas as pessoas, judeus e gentios, estão debaixo do pecado e injustiça de e em si mesmos – todos necessitavam da justiça de Deus que Ele oferece mediante fé em Cristo Jesus (Rm 3:21-31). James D. G. Dunn, Emeritus Lightfoot Professor of Divinity na Universidade de Durham, Inglaterra, comenta: "A questão de abertura é o final espasmo da diatribe que dominou a maior parte de 2:1-3:9, mas que já tinha começado a perder a mão na seção correspondente. A resposta sumariza a afirmação de Paulo: judeus bem como gregos, possuidores da lei não obstante, estavam igualmente debaixo do pecado. 1
Os judeus porém pensavam que tinham monopólio salvífico, sendo o povo eleito de Deus mediante a Lei, mas eles estavam errados. E só porque alguns deles eram infiéis, sua infidelidade não nulificaria a fidelidade de Deus (Rm 3:3-4). Qual é a conclusão de Paulo? Judeus tinham alguma vantagem salvífica sobre os gentios? "De forma alguma" (Complete Jewish Bible) 2. Paulo escreve: "Pois já delatamos que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado" (Rm 3:9d BLIVRE).
Intenção Autoral
Neste ponto, é pertinente entender que Paulo usa uma interpretação judaica das Escrituras conhecida como drash, ou midrash (ainda que isto seja contestado por alguns calvinistas, esta é a minha opinião bem como a de outros). Midrash, de acordo com o crente judeu messiânico David H. Stern, é a criatividade usada para buscar o texto em relação ao restante da Bíblia, outra literatura ou vida a fim de desenvolver uma aplicação alegórica [i.e. figurativa] ou homilética [i.e. instrutiva] do texto. Isto envolve eisegese – ler os próprios pensamentos no texto – bem como exegese, que é extrair de um texto o seu real significado. 3
Paulo escolhe passagens brutais de Salmos, Eclesiastes e Isaías, que magnificam a pecaminosidade e depravação de certos seres humanos ou grupos de pessoas, a fim de expor todas as pessoas, judeus e gregos, para a sua falta de retidão inerente, que é o que qualquer um precisa a fim de ser declarado inocente ou sem culpa diante de Deus. Isto é verdade não apenas para gentios mas também para judeus – algo que os judeus particularmente não apreciam, desde que eles consideram-se a si mesmos o povo eleito ou os escolhidos de Deus.
O raciocínio deles era de que, desde que Deus os escolheu como Seu povo especial, então não havia nada para eles fazerem a fim de ganhar a Sua aprovação. Por que os judeus deveriam confiar em Jesus o Cristo? Os judeus eram os eleitos de Deus! Eles certamente seriam mostrados em Sua presença na morte. Paulo informa o judeus que todos estão debaixo do pecado e portanto todos precisam da retidão de Deus mediante fé em Jesus Cristo.
Quando nós olhamos para as passagens individuais que Paulo cita em Romanos 3:10-18, porém, nós entendemos mais claramente o estilo da midrash que ele emprega. Dunn comenta: "O ponto torna-se mais claro quando é relembrado que todas as citações de Salmos pressupõem uma antítese entre o justo (o membro fiel da aliança) e o injusto" 4. Vamos observar cada passagem individual e contextualmente.
1 O tolo diz em seu coração: Não há Deus.Eles têm se pervertido, fazem obras abomináveis; não há quem faça o bem.
2 O SENHOR olhou desde os céus para os filhos dos homens, para ver se havia alguém prudente, que buscasse a Deus.
3 Todos se desviaram, juntamente se contaminaram; não há quem faça o bem, nem um sequer.
4 Será que não têm conhecimento todos os que praticam a maldade? Eles devoram a meu povo como se comessem pão, e não clamam ao SENHOR.
{Salmo 14:1-4 BLIVRE}
[1]O tolo diz em seu coração: Não há Deus.Eles se corrompem, e cometem abominável perversidade, ninguém há que faça o bem.
[2] Deus olhou desde os céus para os filhos dos homens, para ver se havia alguém prudente, que buscasse a Deus.
[3] Todos se desviaram, juntamente se fizeram detestáveis; ninguém há que faça o bem, nem um sequer.
[4] Será que não tem conhecimento os praticantes de maldade, que devoram a meu povo, como se comessem pão? Eles não clamam a Deus.
{Salmo 53:1-4 BLIVRE}
De quem Davi está falando no Salmo 14? Ele está falando dos néscios citados no verso 1. Ele diz que estes são corruptos e suas obras são malignas, etc. Após comentar da pecaminosidade universal de todas as pessoas, nos versos 2 e 3, ele retorna aos praticantes da malignidade no verso 4. Certamente, mesmo dentro do contexto dos versos 2 e 3, Davi entendia e buscava o Senhor como outros o fazem, e como outros foram comandados a fazer.
Verdadeiramente não há homem justo sobre a terra, que faça o bem, e nunca peque.{Ec 7:20 BLIVRE}
Arminianos concordam neste ponto – não há controvérsia aqui. Porém, eu gostaria de apontar que Paulo não cita o verso como ele está estabelecido na passagem de Eclesiastes, que acrescenta "e nunca peca". Mais uma vez, porém, todos nós concordamos com esta afirmativa.
[8] SENHOR, guia-me em tua justiça, por causa dos meus adversários; prepara diante de mim o teu caminho.
[9] Porque não há verdade na boca deles; seu interior são meras destruições; a garganta deles é uma sepultura aberta; com suas línguas elogiam falsamente.
[10] Declara-os culpados, ó Deus, e que caiam de seus próprios conselhos; expulsa-os por causa da abundância de suas transgressões, porque eles se rebelaram contra ti.
{Salmos 5:8-10 BLIVRE}
De quem Davi está falando? É de todas as pessoas em geral, ou de seus inimigos? Nós estamos corretos em admitir que ele está falando de seus inimigos e não de pessoas em
[1] Livra-me do homem mau, SENHOR; guarda-me dos homens violentos,
[2] Que pensam maldades no coração; todo dia se reúnem para fazerem guerra.
[3] Eles afiam suas línguas como a cobra; veneno de serpentes há debaixo de seus lábios. (Selá)
{Salmos 140:1-3 BLIVRE}
Mais uma vez, o salmista está falando não de todas as pessoas em geral, mas sobre os malignos e violentos. Ele está fazendo clara distinção entre aqueles que seguem o Senhor e os que não seguem – mas ele não está fazendo uma afirmativa geral sobre toda a humanidade.
[1] Por que, SENHOR, tu estás longe? Por que tu te escondes em tempos de angústia?
[2] Com arrogância o perverso persegue furiosamente ao miserável; sejam presos nas ciladas que planejaram.
[3] Pois o perverso se orgulha do desejo de sua alma; ele bendiz ao ganancioso, e blasfema do SENHOR.
[4] Pela arrogância de seu rosto o perverso não se importa; Deus não existe em todos as seus pensamentos.
[5] Em todo tempo seus caminhos atormentam; teus juízos estão longe do rosto dele, em grande altura; ele sopra furiosamente todos os seus adversários.
[6] Ele diz em seu coração: Eu nunca serei abalado; porque de geração após geração nunca sofrerei mal algum.
[7] Sua boca está cheia de maldição, e de enganos, e de falsidade; debaixo de sua língua há sofrimento e maldade.
{Salmos 10:1-7 BLIVRE}
De quem o salmista está falando? Ele está escrevendo sobre os ímpios, nos versos de 2 a 7.
Está notando um padrão aqui? O apóstolo Paulo seria tachado de tomar estas escrituras fora de seu contexto hoje em dia pelos padrões de muitos estudiosos e ministros, mas isto é o que a técnica da drash ou midrash representa: exageração para fazer um ponto. Vamos continuar.
[7] Seus pés correm para o mal, e se apressam para derramarem sangue inocente; seus pensamentos são pensamentos de injustiça, destruição e ruína há em suas estradas.
[8] O caminho da paz eles não conhecem, nem há justiça em seus percursos; entortam suas veredas para si mesmos; todo aquele que anda por elas não experimentará paz.
{Isaías 59:7-8 BLIVRE}
Sobre quem Isaías está escrevendo? Resposta: aqueles em Israel que eram assassinos e mentirosos (Is 59:3,5,6) e injustos (Is 59:4). Esta era uma afirmação incluindo todo indivíduo da terra, igualmente? Não. Frédéric Louis Godet (1812-1900), teólogo protestante suíço e professor de teologia em Neuchâtel, concorda:
O apóstolo está traçando [estas figuras], que estão apenas traçando um agrupamento de partes de escritos, feitos por mãos de salmistas e profetas, certamente não querendo dizer que cada uma destas características é igualmente desenvolvida em cada homem. Algumas, mesmo a maioria delas, podem permanecer latentes em muitos homens; mas eles todos existem em germe no egoísmo e orgulho natural do ego, e a menor circunstancia pode causá-los a acontecer no estado ativo, quando o temor de Deus não governa o coração. 5
Finalmente, Salmo 36:1 estabelece: "A transgressão fala ao ímpio no íntimo do seu coração; não há temor de Deus perante os seus olhos".
É claro que todas essas passagens da Escritura abordam os malignos, um grupo particular de pessoas malignas, e não a humanidade em geral. Mas o ponto de Paulo em Romanos 3:10-18 era demonstrar aos judeus que todas as pessoas estão debaixo do pecado, a fim de trazê-los ao entendimento de que "pelas obras da lei nenhuma carne será justificada diante dele" (Rm 3:20), porque "todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus" (Rm 3:23). Mas graças a Deus, Ele propôs Jesus "como propiciação, pela fé no seu sangue, para declarar a sua justiça" (Rm 3:25).
Nós não cremos que o não regenerado tenha capacidade de buscar o Senhor por si mesmo. Mesmo assim, buscar Deus é algo que o próprio Deus deseja. O apóstolo Pedro escreve: "Na verdade reconheço que Deus não faz acepção de pessoas; mas que lhe é aceitável aquele que, em qualquer nação, o teme e pratica o que é justo"(At 10:34-45). Nós cremos que é a graça de Deus que auxilia a pessoa a buscá-Lo: " Ora, sem fé é impossível agradar a Deus; porque é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe, e que é galardoador dos que o buscam"(Hb 11:6, Cf. 2Cr 12:24, 19:3, 30:19; Sl 34:10; Zc 8:21-22); e definiu as coisas "para que buscassem a Deus, se porventura, tateando, o pudessem achar, o qual, todavia, não está longe de cada um de nós" (At 17:27).
Mas nós devemos rejeitar como imprecisa qualquer noção de um crente nascido de novo usando qualquer parte de Romanos 3:10-18 como um epíteto de si mesmo. Você, crente, é nova criatura, feita à imagem e semelhança de Cristo. Sua garganta não é sepulcro aberto (Rm 3:13). Sua língua não pratica engano (Rm 3:13). Veneno de serpentes não está em seus lábios (Rm 3:13). Devemos também rejeitar qualquer noção sugerindo que todos os seres humanos são igualmente culpados de cometer cada um dos pecados mencionados em Romanos 3:10-18. A Escritura e a prática mostram o contrário.
META
Footnotes:
James D. G. Dunn, Word Biblical Commentary, Romans 1-8, ed. Bruce M. Metzger (Nashville: Word, Inc., 1988), 145.
David H. Stern, Jewish New Testament Commentary (Clarksville, MD: Jewish New Testament Publications, Inc., 1999), 342. Stern comenta: "Por que então os judeus não são totalmente privilegiados? Porque, como Sha'ul [Paulo] já dissera, todas as pessoas, gentios e judeus igualmente, são controlados pelo pecado. Verdade, ter as próprias palavras de Deus é uma vantagem que os judeus têm (versos 1-2); e a infalibilidade das promessas de Deus, mesmo que ninguém creia nelas, é outra. Mas a mesma palavra de Deus, a Tanakh, nos lembra das más novas que todos pecam, judeus inclusos (veja também os versos 22 e 23); neste sentido judeus não tem vantagem alguma".
David H. Stern, Messianic Jewish Manfiesto (Clarksville, MD: Jewish New Testament Publications, Inc., 1991), 106.
Dunn, 145.
Frédéric Louis Godet, Commentary on St. Paul's Epistle to the Romans, trans. and ed. Rev. A. Cusin and Talbot W. Chambers (New York: Funk & Wagnalls Publishers, 1889), 142.