Calvinismo e Deuteronômio 29:29

Texto

As coisas secretas pertencem ao SENHOR nosso Deus: mas as reveladas são para nós e para nossos filhos para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei.

{Deuteronômio 29:29 BLIVRE}

Calvinistas costumam apelar para Deuteronômio 29:29 quando pegos num dilema teológico. Pergunte a um calvinista como Deus pode exaustivamente determinar todas as coisas e ainda assim não ser o autor do pecado, e você talvez obtenha um apelo ao mistério e uma referência rápida ao versículo acima. Pergunte a um calvinista como a eleição incondicional de Deus não faz Sua escolha de alguns sobre outros para salvação arbitrária e provavelmente obterá mais do mesmo. Sim, calvinistas amam Dt 29:29 pois proporciona aquela conveniente escapatória teológica quando eles são chamados a explicar os aspectos de seu sistema doutrinário que aparentam ser irremediavelmente contraditórios . Mas será que eles têm pensado cuidadosamente no ensino de Dt 29:29 e o problema que ele representa para sua hermenêutica particular?

Não ensina-nos esta passagem que as "coisas secretas" pertencem ao Senhor? Isto não sugere que as coisas secretas não nos pertencem? Se elas não nos pertencem, isto não sugere que certamente não deveríamos tentar construir teologias em tais coisas secretas? Mas, não é justamente isto que o calvinismo faz? Não é tal sistema teológico construído na fundação de "decretos secretos eternos", os quais estão longe de serem encontrados nas páginas da Escritura?

Me parece que os calvinistas põem as "coisas secretas" que não lhes pertencem antes das "coisas reveladas". Este é exatamente o oposto da mensagem de Dt 29:29. Por esta razão as coisas reveladas (o amor de Deus pelo mundo e seu desejo em salvar todos, as advertências contra a apostasia, e a declaração pura e simples de que Deus não se compraz na morte do ímpio etc.) são descartadas, tornadas inúteis, e submetidas a exegeses torturantes em nome das "coisas secretas" que os calvinistas afirmam tanto dominar.

Walls e Dongell realçam esta realidade muito bem em Why I Am Not A Calvinist:

Pressionando este entendimento [do decreto divino secreto da eleição incondicional] parece um projeto de um custo proibitivo, uma vez que a cada momento as palavras da Escritura devem ser lidas de maneiras as quais a maioria dos leitores jamais imaginariam. Por exemplo, tome as palavras de Deus por intermédio de Jeremias a Judá:

[15] Escutai e ouvi: não sejais arrogantes, pois o SENHOR falou.

[16] Dai glória ao SENHOR vosso Deus, antes que ele faça escurecer, e antes que vossos pés tropecem nos montes no meio da escuridão, e espereis luz, e ele a torne em sombra de morte e cause trevas.

[17] Mas se não ouvirdes isto, minha alma chorará em segredo por causa de vossa arrogância; e chorando amargamente, meus olhos se desfarão em lágrimas, porque o rebanho do SENHOR foi levado cativo.

{Jeremias 13:15-17 BLIVRE}

Sabendo que Judá não se voltaria e ouviria, o calvinista conclui que Deus já havia escolhido reter Sua graça transformadora deles, embora Ele poderia ter facilmente lhes concedido. Então, enquanto o texto parece identificar o orgulho de Judá como a causa raiz da punição, o calvinista em vez disso conclui que a capacidade de Judá se arrepender depende do propósito eternamente prefixado de Deus. Novamente, como o texto parece identificar salvação como o desejo mais profundo de Deus, o calvinista conclui que em um nível mais profundo Deus jamais pretendia conceder a graça transformadora nos ouvintes de Jeremias. Em outras palavras, as verdadeiras intenções de Deus não podem ser discernidas de Suas palavras.

Em algum momento ao longo do caminho, o ônus da leitura de uma miríade de passagens por toda a Bíblia desta maneira contraintuitiva deveria ansiosamente nos trazer a este tipo de questão: desde que a visão calvinista da soberania divina requer rotineiramente que se faça tal 'decodificação' totalmente descabida dos textos bíblicos, não devemos reexaminar a visão calvinista da soberania divina em si mesma? (Pgs. 56,57, ênfase deles)

O ensino de Dt 29:29 tem como referência primária os mandamentos de Deus, mas também estabelece um importante princípio. Aquele que quer conhecer e obedecer a Deus não precisa olhar além do que Ele nos revelou de Seu caráter, intenções e desejos nas páginas da Escritura. Igualmente, no Novo Testamento, somos advertidos a não ir "além do que está escrito" (1Co 4:6).

Calvinistas, obviamente, acreditam que ganharam discernimento destes eternos decretos secretos pelo que a Bíblia revela em passagens acerca da depravação, eleição e predestinação. O problema óbvio é que o entendimento deles de os leva a abraçar uma teologia que faz os "decretos secretos" e as intenções contrárias "escondidas" encobrirem demais aquilo que Deus revelou na Sua palavra (como a citação acima de Jeremias). Não seria mais sensato reavaliar cuidadosamente se o secreto deve determinar o revelado, ou se o revelado deve determinar e controlar a sua teologia?

Se tomarmos as palavras de Deus em Dt 29:29 seriamente, a resposta seria óbvia. Mas talvez exista algum significado oculto nesta passagem também. Se este for o caso, precisaremos esperar até os calvinistas nos revelarem tal segredo, já que parece que as "coisas secretas" pertencem não apenas ao "SENHOR nosso Deus" como também aos calvinistas.

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Created: 2022-04-08 Fri 22:19

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